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Ampliando seu campo de ação na cena cultural nacional, a Automatica lança em 2007 os dois primeiros volumes de sua bem-sucedida Coleção ARTE BRA. Iniciada com os livros dedicados à carreira de Marcos Chaves e Raul Mourão, ARTE BRA tornou-se uma referência na pesquisa sobre artes visuais brasileiras por documentar de forma criteriosa e generosa a carreira de artistas contemporâneos brasileiros atuantes desde os anos 1980.

Pela sua perspectiva editorial abrangente, ARTE BRA consegue equilibrar leveza e profundidade, com projetos gráficos arejados e informações consistentes. São edições bilíngues e ilustradas que contam com a participação de importantes críticos brasileiros.

 

Cada volume inclui ainda o caderno do artista, com material inédito, fortuna crítica, entrevistas feitas especialmente para a publicação, cronologias detalhadas e referências bibliográficas. No volume da coleção ARTE BRA Raul Mourão, os textos são de Paulo Herkenhoff, Agnaldo Farias e Paulo Venâncio Filho.

SOBRE O ARTISTA

RAUL MOURÃO nasceu no Rio de Janeiro, em 1967, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV-Parque Lage) e apresenta seu trabalho desde 1991. Sua obra abrange a produção de desenhos, esculturas, vídeos, fotografi as, textos, instalações e performances.

As coisas do mundo cotidiano, a velocidade das notícias digitais, a paisagem urbana – arquitetura, objetos e personagens da cidade – são pontos de partida para a criação de seus trabalhos. Placas de sinalização de trânsito, grades de segurança, o campo de futebol, o noticiário político e o mundo dos botequins cariocas são algumas das referências que compõem sua poética.

“Raul institui a mobilidade como programa aberto e coletivo: todos circulam pelo espaço da cidade, que é ao mesmo tempo sensorial e mental. Ela é o conjunto de todas as frações disponíveis que, articuladas, formam a vivência cotidiana. Profundamente engajada, a relação, diríamos intimamente recreativa, que se estabelece entre artista e cidade é um jogo total e constantemente renovado. E assim cada trabalho se revela um modo possível de recriar o lazer espontâneo e a inteligência do cotidiano – um entretenimento que articula crítica e humor, opondo-se à insipidez alienada da rotina.”

Paulo Venancio Filho

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

Luiza Mello
 

A GENTIL ARTE DE BURLAR

Paulo Herkenhoff

OS SIGNOS ÁSPEROS

Agnaldo Farias
 

PEQUENAS FRAÇÕES

Paulo Venancio Filho

TEXTOS DO ARTISTA

CADERNO DO ARTISTA

ENTREVISTA


CRONOLOGIA


BIBLIOGRAFIA

APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Luiza Mello

Esta publicação apresenta a obra do artista Raul Mourão por meio de uma seleção de textos e imagens produzidos desde o início de sua carreira, nos anos 1990, até os dias de hoje.

Paulo Herkenhoff foi convidado a refletir sobre o conjunto da obra e analisou trabalhos referenciais, tais como Luladepelúcia, A grande área e a série Grades. Os textos “Os signos ásperos”, de Agnaldo Farias, e “Pequenas frações”, de Paulo Venancio Filho, interpretam diferentes mo- mentos da produção do artista e compõem um panorama de leitura crítica sobre sua obra.

A entrevista, realizada no ateliê de Mourão em dezembro de 2006, contou com a participação do artista Carlos Vergara, da crítica de arte Luisa Duarte e da arquiteta Ana Paula Pontes. A presença de três gerações de profissionais ligados às artes enriqueceu o debate sobre questões importantes para o trabalho do artista: o humor, os processos de criação, o público e a circulação da arte.

O caderno do artista é composto por imagens inéditas dos vídeos Cão/Leão e Nova Capela. A publicação conta ainda com uma seleção de textos do artista, escritos entre 1992 e 2003.

A cronologia, organizada por Débora Monnerat, apresenta os principais acontecimentos de sua trajetória.

As citações, imagens de obras de diferentes fases da carreira e fotografias darão ao leitor a oportunidade de conhecer melhor o percurso multidisciplinar do artista.

A Coleção ARTE BRA apresenta de forma dinâmica obras de artistas contemporâneos brasileiros e pretende ampliar a reflexão sobre esta produção no país. Raul Mourão diz em um de seus textos que, para compreender a arte contem- porânea, foi obrigado a experimentá-la e que, depois, não pôde mais voltar atrás. Este livro é um convite à experiência.

A GENTIL ARTE DE BURLAR

A GENTIL ARTE DE BURLAR

Paulo Herkenhoff

Um conjunto heterogêneo de obras de Raul Mourão enlaça o olhar com ironia. Mourão opera com a subtração da regra e formas gentis de sua transgressão. O artista desestabiliza. Tudo será objeto de ironia, do poder ao medo. Cada obra parece querer atuar como um aparelho para a prática dessa perversidade. Em seu repertório, existe o confronto com a ordem jurídica, leis da Física, estruturas comportamentais, normas e mores, cânone estético, regras do jogo, grade, malha ou a grid cubista. Para a transgressão, o artista aborda a física da maciez, a elasticidade, a geometria do medo, o desenho sólido, a cultura da sobrevivência nas ruas do Rio de Janeiro e a política da forma.

 

Desenhos em longa manus

 

Malgrado o domínio da linguagem do desenho, Mourão realizou algumas obras que são textos executados por um pintor- letrista (1997). Na expressão jurídica, como no crime em que se utiliza da ação física de terceiros, o artista usa uma longa manus para o desenho. A vontade matérica, modo bachelardiano de organizar o mundo, está transferida a um terceiro, anônimo e alienado na divisão do trabalho na produção artística:

“Tenho dois filhos e ninguém sabe. Ninguém conhece.

(...) Poesia come tudo. Aguardando sol para lavagem".

Alguns são uma escritura da suspeita. Já não é do artista que se suspeita (uma hipotética falta de virtuosismo resolvida com o convite a um outro para operar a artesania), mas da agenda de significados: os filhos mantidos em segredo, a devoração pela poética, a lavagem. Há um teor de desregulamentação infiltrado no desenho.

 

90 minutos de escultura

Raul Mourão produziu esculturas e objetos para um espaço temporal determinado: os 90 minutos do tempo regulamentar de um jogo de futebol. Em 1863, a Football Association estabeleceu as regras que definem o espaço do campo, os tiros de meta e pênalti, o impedimento e a proibição de toque da mão na bola, as exceções. A regra e a disciplina do jogo subvertem-se na investigação sensível. É nesse campo com duração de 90 minutos que Mourão estabelece uma poética do espaço em que os elementos da ordem do futebol são permanentemente submetidos a uma desregulamentação.

Cartões (2001) são dois planos (placas retangulares em acrílico sólido) em amarelo ou vermelho, numa caixa. Os planos monocromáticos formam um jogo concretista. O lúdico nesta obra se aproxima de alguns objetos com partes móveis de Abraham Palatnik, Osmar Dillon ou Paulo Roberto Leal na tradição construtiva brasileira. Vermelho e amarelo, com a solaridade dos acordes cromáticos de Hélio Oiticica, são as cores protocolares da advertência e da expulsão de campo num jogo de futebol. Na caixa, os movimentos planares da cor teimam em não ajustar os “cartões” de cor, mantendo dada indisciplina geométrica, uma instabilidade e certo descontrole. É o espectador que se depara com a hipótese da sanção, símbolos de censura e castração, do domínio da regra.

Nesse jogo entre dimensões, o desenho de Mourão pode ser um corpo sólido. Como certo desenho linear de Franz Weissmann no início da década de 1950, que dava corporeidade de escultura à imagem virtual dos sólidos, Mourão constituiu uma geometria de sólidos do futebol. A grande área (2001) conforma, em tubo de aço, um desenho do campo do jogo. Outra grande escultura tem as mesmas dimensões da situação do pênalti, entre a marca e os extremos da trave. Há duas linhas oblíquas à linha de meta a 16,5 m de distância. O desenho final será dado pelo pé, pelo chute. A bola descreve o desenho. A estrutura única e contínua que põe a nu a unidade entre os opositores.

Trata-se de um aparelho para demarcar tensão: em torno da bola, goleiro e cobrador do pênalti são o Um antagônico, frente a frente. Mourão expõe a incontornável oposição entre Dois que se fundem e se dividem na atração dos opostos. A bola-olho é, agora, cega. Vai sem ver. Ver não será enxergar, mas perceber para além dos cinco sentidos e calcular com exatidão.

Defesa ou ataque relacionam-se com um exagero absurdo. “Meio gol” (Esporte, 1994) é uma hipótese. Cento e trinta e quatro (134) é número para o estranhamento. Refere-se ao “quase”. “Meio gol é a expressão para quando o jogador dá um passe ao seu companheiro que é quase um gol”, diz Mourão. Essa

é a altura (134 cm) de uma escultura correspondente à metade da altura total das traves (268 cm). Na obra de Mourão, a largura mantém-se idêntica: 768 cm. O desenho do campo de futebol de Mourão não se constrói por relações perturbadoras entre arquitetura e anamorfose, como Cildo Meireles introduziu na arte brasileira, mas pelo estranhamento e pelo humor.

No espaço da grama, um sólido não rola. Uma bola em ferro fundido está no campo (Bolas 1 e 2, 1999). Pesa dezenas de quilos (bem mais que os 410 a 450 gramas previstos pela FIFA). Está ali para confundir o olhar diante do inapreensível pela retina: o peso. Aqui, a referência histórica é Eurekablindhotland, de Cildo Meireles, com suas bolas com forma e material idênticos, mas pesos diversos. No entanto, a diferença crucial é a dinâmica. Enquanto os sons na instalação de Meireles são índices de leitura de velocidade, na escultura de Mourão, a esfera é pura imobilidade. Isto é, neste caso, futebol não é bola rolando. A invisível diferença transforma a bola em olho, com sua dupla falácia: a ilusão de ótica do espectador e as trajetórias imprevisíveis da bola que não rola. Pede-se um olho em estado de magia, pois a arte permanece entre o Logos (a razão cartesiana, inclusive a técnica do esporte e as regras da FIFA) e Sobrenatural de Almeida, que é

o nome do Imponderável encontrado por Nelson Rodrigues. Digamos que em algum momento o trabalho perseguisse a geometria da folha seca, isto é, uma exata imprecisão de uma desmedida enganosa e certeira.

(I)mobilidade ativa

Plantar um jardim num carro e transportá-lo pela cidade (Carro/Árvore/Rua 1 e 2, 1999). É a mobilidade do imóvel. Teríamos aqui, então, uma metáfora sobre a própria metáfora como deslocamento semântico (a usurpata translatio medieval). Mourão desloca o código verbal para a condição de um locus inconstante. Com sua relação espaço/tempo infixa, o jardim deambulante poderia ser um capítulo de A história da eternidade, de Jorge Luis Borges.

Na obra Surdo-mudo (1999), uma grande pedra abafa o surdo, instrumento musical de percussão. O surdo é peça-chave na bateria das escolas de samba cariocas, introduzida por Bidê na Estácio de Sá na virada dos anos 1920 para 1930. É o instrumento de marcação, que determina todo o andamento da escola, conduz o carnaval. Em Surdo-mudo, Mourão realiza uma dupla operação antitética de alteração do significado, mantido o significante “surdo”. O substantivo (o instrumento musical) converte-se em adjetivo (“surdo”, como a incapacidade de ouvir sua música impossível). É da arte de Mourão levar o olhar a calçar-se na disfuncionalidade de objetos conhecidos. Se o surdo define o tempo no carnaval, no trabalho de Mourão ocorre um congelamento do próprio tempo, seu aprisionamento na mudez.

No vídeo Cão/Leão (2002), uma câmera acompanhou ininterruptamente um vira-lata na rua por doze horas, das 6 da manhã às 6 da tarde, do amanhecer ao anoitecer, sem fim. O filme é mais que uma paródia de um reality show. Num mundo em que as liberdades civis estão mais que nunca ameaçadas pelo controle e vigilância do Estado, os reality shows são a proposta ao revés das companhias de comunicação de massa: celebrar o desejo alienante de ser vigiado permanentemente em busca dos quinze minutos de fama warholianos em troca da busca do juiz e do censor – o público consumidor. É um desejo de um estado fascista de existência produzido pelos meios de comunicação no jogo perfeito de voyeur-exibicionista. O olho eletrônico de Cão/Leão, em filmagem onisciente, é o superego deste cão humano, como o cão em A peste de Albert Camus e Baleia, a cachorra de Vidas secas de Graciliano Ramos, foram índices da miséria e grandeza do sujeito. O homem, diz Louise Bourgeois sobre seu vocabulário simbólico, é “como um inventário dos animais” de um lugar . O embate do cachorro contra a câmara, produzido por Cão/Leão, abre o olho da consciência. “Hoje, sente-se que não é mais necessário uma guerra para matar a realidade do mundo”, diz Paul Virilio em La bombe informatique. O cão da Lapa sabe disso. Raul Mourão diz que basta o confronto entre um cão e uma câmera.

 

Quase

A desconcertante agenda política de Luladepelúcia (2005) e suas variantes numéricas ou modais colocam esta produção de Raul Mourão no limite da caricatura tridimensional5. Se fosse caricatura, o Luladepelúcia seria da família da redução e da geometria do humor fino de J. Carlos, Nássara e Cássio Loredano na cultura brasileira.

A função do humor, fenômeno econômico psíquico, é distender tensões. O inconsciente em manifestações de riso foi abordado por Freud em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927). Os objetos de Mourão rompem a norma social e recorrem à lógica dos sentidos. Olho e tato estão a serviço dos impulsos agressivos ou sexuais envolvidos no humor sobre o fofo – a materialidade da pelúcia estofada é constitutiva do caráter da obra. Em Le rire (1899), Henri Bergson nota que “a matéria resiste e se obstina”, justamente no capítulo em que analisa o “cômico das formas”. Ao deslocar sua ironia em Luladepelúcia para a própria instância material do objeto (e menos para a instância da forma), Mourão estabeleceu seu foco na materialidade de pelúcia com ácida ironia. Montou um pa- radoxo direto para instalar um estranhamento intimista. Seu convite háptico ao fofo, em exercício das pulsões do toque e do riso, é a chave do dispositivo erótico da obra.

O artista fundiu dois personagens das lutas de transformação política da América Latina: Lula e Guevara. Lula ressignifica o Che num aggiornamento histórico. Há um outro “quase”, agora fisionômico, que desloca para a fusão por ambivalência. Ainda sendo um e já sendo o outro. Paralelamente à fusão de duas imagens/personalidades no retrato individual Luiz Inácio Guevara da Silva (2006) de Raul Mourão, Douglas Gordon realizou o díptico Louise Duchamp et Marcel Bourgeois, um par de retratos que alterna os rostos dos dois artistas transgressores nas fotos mais conhecidas de cada um. Para Mourão, no entanto, Lula não está à altura da obra de Guevara. Seu movimento foi fundir dois fenômenos da comunicação, convertidos em ilustração de camisetas. Lula inscreve-se na nova operação de guerra das campanhas de telemarketing das eleições presidenciais, com a commodification do ideário (conversão do candidato em produto), enquanto Che Guevara, desde a década de 1960, é o único símbolo pop de circulação mundial produzido pela América Latina.

Raul Mourão Lula

História elástica da arte

 

Luladepelúcia corresponde àquela área da Física que estuda as propriedades dos materiais elásticos. Sobre elas, Mourão projeta significados, deslocando-as do comentário político para fenômenos propriamente visuais, plásticos e perceptivos. O objeto de pelúcia é elástico porque se deforma sob pressão externa, mas depois retorna à sua forma original terminada a pressão. É uma lei da Física (Lei de Hooke) com a qual Mourão constitui o regime poético do objeto. É como o hímen complacente. Pressão externa pode ser indiferentemente um afago de criança ou um murro na boca do estômago. O boneco sempre volta à forma original. É então que a obra pede uma fenomenologia dos sentidos, pois é tão visual quanto tátil.

É na história da arte que Luladepelúcia simula pertencer à ordem da maleabilidade de O dentro é o fora (1963) e da Obra mole (1964) de Lygia Clark. Se a Obra mole emborrachada de Clark tem relações com o movimento da forma barroca, mas sobretudo com a noção de “dobra da alma” na geometria da interioridade do ser (a referência deliberadamente desconhecida por Luladepelúcia é A dobra, Leibniz

e o barroco, de Gilles Deleuze), aqui, o que se amassa é o corpo e sua dobra será externa. Vê-se com clareza na transparência do estojo de Lulacaixa (2006). O título denota o duplo e a desregulamentação contábil. Blindado em sua caixa, aí, não se pode tocar o intocável. Depois da experiência háptica, sabe-se que o objeto Luladepelúcia só tem recheio. Não é a monada que é cada indivíduo barroco em sua singularidade. As malas-estojos Lulacaixa (2005), Lulacaixa2 e Lulacaixa10 (2005) deixam tudo às claras. Só cabe o boneco. Em duas obras de Antonio Dias, Um pouco de prata para você (1965) e Cabeças (1968), um bando de cubos-cofres proliferados, as relações entre capitalismo e esquizofrenia estão evisceradas para quem quiser ver.

Na apreensão pelo aparato perceptivo, Luladepelúcia permite o reconhecimento de uma forma conhecida no cotidiano, como nos caso dos volumes estofados de Claes Oldenbourg, Jorge de la Vega e Antonio Dias. O Telefone macio (Soft pay-telephone, 1963), a Privada macia (Soft toilet, 1966) e a Bateria musical macia (Grand soft drum set, 1967) de Oldenbourg são simulacros pop de um som inexistente. Cada um é a antítese de si mesmo: a bateria é o som que não se toca. O Luladepelúcia abafa. É, tecnicamente, um equipamento acústico com a propriedade de abafar sons, inclusive vozes e rumores. Esta é a propriedade acústica do volume elástico estofado. No campo da percussão, Luladepelúcia é tão mudo como o Surdo-mudo de Mourão. Ambos são significantes dotados da capacidade de anular qualquer ruído. A capacidade de deformação é uma qualidade física do objeto Luladepelúcia. É do caráter de sua plasticidade. Na arte latino-americana, a proximidade de Luladepelúcia seria com a ironia de La indecisión, quadro de Jorge de la Vega (1963, col. MAM-RJ). O estofamento no bestiário do argentino produz a visceralidade pungente, própria da estética do grupo Otra Figuración nos anos 1960. A elasticidade do Luladepelúcia deve ser justa- posta às distorções anamórficas de La indecisión. O sentido ambivalente dessa Esquizobestia formula  uma  visão crítica do sujeito. Na obra de Jorge de la Vega, segundo Mercedes Casanegra, as anamorfoses moldam-se conforme uma atitude de vitalidade interior: estremecimento, abatimento, tensão, recepção do choque, surpresa. Em Luladepelúcia, a elasticidade estofada não cria tensões e dissolve toda energia do choque. Está próxima da impotência. Vingança antecipada de artista contra o corintiano pé-frio da seleção canarinho, o personagem Luladejardim (2006) de Mourão está vestido com uniforme azul e branco, cores da Argentina. No jogador da pelada, falta o desejo que está investido nos objetos parciais – língua e falo – de Dans mon jardin (1967), o corpo sem órgãos de Dias.

A violência erótica da obra de Antonio Dias nos anos 1960 está nas vísceras e volumes fálicos, alguns como restos organizados de um banquete canibal. Luladepelúcia parece estar em condições de dispensar a lei do pai, transferindo-o para seu duplo: o Luladegeladeira (2006) (o duplo de Luladepelúcia não é, definitivamente, o igual na produção industrial em série). Por uma distorção ontogenética, o bico deste pingüim lustroso cresceu distorcidamente como o nariz do Pinóquio. Luladegeladeira não mente. É o que se vê – como na regra do mercado: “what you see is what you get”. Sua matéria dura insiste em restaurar a elasticidade. A verdade é que agora ele aponta como um falo assanhado. A inadequação simbólica do objeto kitsch é patente, mas o sexo cabe no sistema de arte, como o índice onanista Solitário (1967) de Dias. Sexo explícito não cabe sobre a geladeira moral da classe média, ainda que o Luladegeladeira se esforce por restaurar dissimuladamente a ordem fálica adormecida em Luladepelúcia.

 

Deu na Playboy

Talvez desde Juscelino que presidentes não se interessaram tão genuinamente por uma obra de arte como o Luladepelúcia. “Gostei muito do boneco porque ele é como o Lula real: se amolda a tudo”, disse Fernando Henrique Cardoso, numa análise político-fenomenológica da obra de Mourão, em entrevista na revista Playboy em período da campanha eleitoral.

 

Narcisismo

Por que o retratado quis ter o Luladepelúcia? Por que não quis o Luladegeladeira? Poderíamos, com Lacan, estar no caso específico do estágio do Luladepelúcia como formador da função do eu (Je), tal como nos foi revelado na experiência analítica?

Equação: se fosse um espelho, Luladepelúcia só seria fiel a um. O que seria esse um? O modelo ou o eleitor?

 

Teoria da representação

Na teoria política e constitucional da representação, Luladepelúcia representa o “eleitordepelúcia”?

 

Brinquedos

 

A elasticidade de Luladepelúcia resulta numa similitude maior com o João Teimoso do que com o Luladegeladeira, já que sempre volta à situação original. A razão é dupla: ambos os volumes são dinamizados pelas leis da Física e os dois têm a aparência de brinquedo.

Luladepelúcia parece ter escapado do sistema de objetos de Jean Baudrillard. O destino de muitos brinquedos de pelúcia, alvo deslocado da afetividade, é se converterem em fetiche. Em O fetichismo (1927), Freud explica o fetiche como um substituto do falo materno. Sua função é sustentar a crença infantil na existência do pênis da mãe.

Walter Benjamin, sem desconsiderar as condições de produção artesanal e industrial, assinala com outro Freud (Para além do princípio do prazer) que os brinquedos, por um lado, tendem a certas realizações da libido; por outro, tendem a absorver projeções dos adultos, inclusive ideoló- gicas. Nesse sentido, “as crianças são duras e estão afasta- das do mundo”, raciocina Benjamin em Historia cultural del juguete (1928). No campo lúdico e psíquico, o brinquedo cumpre tarefas que Luladepelúcia poderia, pois, se dispor a executar. No entanto, Luladepelúcia não é um brinquedo. Sendo uma “imitação”, atando no campo da representação política, está no campo do “jogo”, não do brinquedo, numa interpretação calçada ainda em Benjamin.

 

Par

O Luladepelúcia de Raul Mourão e o Retrato de Lula (2005, coleção MNBA, Rio de Janeiro) de Piotr Uklanski indicam como uma obra de arte pode acolher uma significação conjuntural. Em 2005, no dia em que os jornais brasileiros destacavam as primeiras notícias do escândalo das propinas dos Correios envolvendo congressistas, o artista polonês Piotr Uklanski tinha um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para fotografá-lo. O olhar de Uklanski fazia as conexões Lula/Lech Walesa, o operário que acedera à Presidência de seu país. Quando estoura o mensalão, o retrato já pronto por Uklanski mostrava um Lula evanescente no ar, mas precisa era sua imagem espelhada sobre o vidro do tampo da mesa de trabalho. Era um mergulho, quase como uma carta de baralho num espelhamento infiel. O elo entre as duas imagens de Lula especulares era as mãos firmes, sobrepostas, que não escondiam a falta de um dedo perdido no trabalho. É um signo ético. O Luladepelúcia só pode aportar perplexidade.

 

Absurdos

Raul Mourão pensa uma espécie de teoria do estranhamento da cultura de massa. Não lhe interessa tanto esse unheimlich freudiano no plano individual quanto a proposição de impacto social amplo. Daí, trabalhar com o futebol (“o esporte mais praticado no mundo”), com a imagem de um presidente da República específico ou com a segurança da propriedade.

Em nova sintaxe gráfica, Mourão passou a desenhar no computador em softwares de desenho técnico, conferindo uma série de serigrafias um acabamento semelhante à representação gráfica dos projetos de arquitetura. Não há nonsense nessas obras de Mourão, mas exercícios de perversão arquitetônica. Tampouco seriam distorções do manual Arte de projetar em arquitetura, de Ernest Neufert, que regula grande parte da arquitetura profissional ocidental. A regra não é rompida; são as expectativas que se burlam. Maracanã enterrado só mostra a cobertura, continua sendo um campo de futebol, mas sem o ruído da torcida, sem o maracanã etimológico em seu sentido de barulheira produzido em reunião de papagaios. Raul cria uma arquitetura delirante. No projeto de um monumento de blocos de pedra para Waly Salomão no mar, a cabeça é uma ilha (EsculturaparaWaly, 2003). O poeta é uma ilha. Pode ser o próprio delírio da linguagem.

Raul Mourão mata-mata

No extremo das perversões arquitetônicas, Mata-mata (2003), cujo título homicida sai do linguajar das mesas de sinuca, propõe uma área de lazer para um edifício. Mata-mata tem relação com as questões de arte e melancolia no desenho do artista austríaco Werner Reiterer. Com um humor psicanalítico vienense, um desenho de Reiterer propõe dois trampolins para o terraço do antigo pavilhão do Kunsthallewien: “Se está triste, pule; se está feliz, voe”. Para a primeira hipótese, há uma rede para se divertir; para a segunda, a certeza do suicídio. É um trabalho de

crítica institucional. A ironia de Mourão é propor vantagens terapêuticas à moda de anúncio de lançamentos imobiliários. Os equipamentos de seu edifício se propõem a curar depressão de um modo radical. Há um trampolim para o abismo no corredor do sexto andar e um escorrega no terraço do prédio que lança o morador diretamente para o térreo em queda livre. É sua sutil crítica ao capital imobiliário.

 

Entropia do documento

“Fiz mais de mil fotos. Fazem parte de uma pesquisa. Elas não eram originalmente em preto-e-branco. Um dia digitalizei imagens em baixa resolução, imprimi também em baixa, fiz uma xerox da imagem numa máquina ordinária e depois levei ao Photoshop para manipular” – é o processo tecnológico do grupo de imagens da série de fotografias drama.doc (2003). O arquivo documental das cenas de grades não foi produzido para a mera consignação de existência, o passo anterior a seu imediato esquecimento. Não existe aqui o “mal d’archives” da análise de Derrida. O artista criou um processo de transmigração da imagem entre técnicas vulgarizadoras para produzir um ponto ambivalente da identidade do lugar e dos objetos. Elas foram insistentemente ativadas no processo das passagens. No limite, a imagem final ainda é quase grade e já é quase grid cubista (malha). A legibilidade das fotografias beira à anatomia de fantasmas arquitetônicos. A definição e a resolução da imagem foram violentadas. Com o resultado da operação semiológica (cada técnica da imagem oferece seu “grão” visual), as fotografias finais de Mourão requalificaram os resultados entrópicos da perversão tecnológica como uma qualidade crítica da imagem.

 

Geometria do medo

De certos ângulos, o ateliê de Raul Mourão parece uma serralheria. São dezenas de estruturas de ferro, de diferentes formatos. Cada uma é uma. As estruturas de Mourão, no entanto, evitam a precisão minimalista da geometria da percepção de Sol LeWitt. Para Mourão, uma dose de improviso é fundamental para manter a espessura do tecido social de onde provêem estes paradigmas geométricos.

“Muitas vezes já não tem mais o aparelho de ar condicionado. Só tem o vazio”, diz Raul Mourão sobre a situação de grades nas casas. A falta, assinala o artista, é vazio e não calor. São melancólicos fantasmas que  teimam  em  moldar uma ausência. A melancolia é não ter o eletrodoméstico, a propriedade do objeto. O vazio bastardo – mais uma perversidade de Mourão – afasta-se do viés psicológico do “vazio interior” e do “vazio pleno” de Lygia Clark ou da metafísica do vazio do mundo (“vuoto del mondo”) de Mira Schendel.

Raul Mourão trata de uma geometria do medo em contexto histórico preciso. O medo é o sintoma da violência social brasileira, da exclusão social e da miséria surgido como reação psíquica ao furto, ao roubo e ao latrocínio. As esculturas são monumentos do tempo presente. Nesse sentido, a escultura de Mourão indicia a História. Décadas de ausência de um projeto social de incorporação de grandes massas ao mercado de trabalho e consumo geraram uma tensão social, em parte resolvida por uma violência civil difusa, sobretudo com crimes contra a propriedade. Essas estruturas de Raul Mourão têm correlação com os muros de Ivens Machado e objetos com cacos de vidro de Machado e Bispo do Rosário. Na exposição Obstáculos/Medidas, na Área Experimental14 em 1975, Ivens Machado apresentou uma instalação composta pela remontagem, em altura crescente, de muros na cidade. Uma coluna vertical de fotografias apresentava, na altura de cada um, os muros originais. Para Bispo do Rosário, o desejo de ter uma casa se fixa num longo objeto de madeira coberto por cimento com cacos de vidros, com uma legenda: “434 – como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa”. Cobrir muros com cacos de vidro pontiagudos é uma técnica construtiva popular que impede a intrusão. Na divi- são entre o público e o privado, nas obras dos três inscreve- se a defesa da propriedade. Mourão, Machado e Bispo do Rosário produzem objetos aflitos.

O trabalho de Raul Mourão desloca a malha cubista para a experiência de poder e a lógica da arquitetura vernacular da classe média, incluindo seus mecanismos de proteção do capital, símbolos de status, instrumentos de trabalho e aparelhos domésticos contra o roubo e o vandalismo. De imediato, é necessário admitir que o trabalho segue uma lógica de relações periféricas do capital. Mourão refere-se a essas esculturas como “acontecimentos das grades”. “São estruturas lineares de segurança.  Escapei disso para outros objetos que se espalham pela cidade, como barracas de camelô. (...) Algumas estruturas eu reproduzo. Outras, transformo”, conclui. Raul Mourão produziu um conjunto de esculturas do medo (e da previdência). Outra escultura proposta por Mourão é a barraca de um vendedor de 

rua, um emblema da economia informal, indicativo de outra atividade marginal no capitalismo periférico.

Há um medo que é simétrico, implica numa oposição de alteridades. É a partir dele que Mourão monta a malha. Os Obstáculos/Medidas de Ivens Machado tratavam dessa confusão entre domínio e prisão. Sempre direto, Bispo do Rosário não permitia a entrada de qualquer pessoa em sua cela no hospital psiquiátrico. Segregou o mundo fora de sua cela. Em 1993, Iñigo Manglano-Ovalle desenvolveu o projeto Video neighbors’ network com as gangues juvenis, que dividem a cidade de Chicago em territórios, a fim de utilizar o vídeo para a construção da identidade coletiva da vizinhança. As estruturas em grades de ferro, nas quais os vídeos eram exibidos, eram a metáfora transparente dos próprios territórios de cada grupo. A obra expunha o território como domínio e prisão da gangue. A extraterritorialmente estava cassada. As esculturas de Mourão se constituim como aparatos do medo, disparadores de paranóia. Algumas de suas obras são definidas pela lógica da forma do objeto, como o carro-grade e o ar-condicionado-grade.

Se o objeto está confinado por uma forma, o resultado final monta uma malha do medo. Em sua dureza brutalista, as grades, na instância da arte, enformam um outro volume. Do trabalho com a ausência dos objetos protegidos, acaba por criar uma escultura do ar e do impalpável. No ateliê, as esculturas se misturam. Integram-se umas nas outras, como se seguissem o plano da instalação Entonces. Mais que isso, buscam-se como máquinas desejantes. Formam conjuntos aleatórios.

No limite da saturação formal, essas esculturas revertem seu sentido mecanicista regulamentador e se convertem em objetos parciais. No plano psíquico, o que se condensa simbolicamente no corpo sem órgãos já não é o vazio, mas a falta (manque). As esculturas estão empilhadas, articuladas, interpenetradas, justapostas. O espectador defronta-se com fluxos de ausências. É neles que deve situar seu olhar.

OS SIGNOS ÁSPEROS

OS SIGNOS ÁSPEROS

Agnaldo Farias

Arte Bra Raul Mourão

Pensemos no jogo de futebol, esporte que o artista cultua e pratica com denodada bravura, na alegria antecipada da carona, na fila do ingresso, no alarido da turba abalroando-se, apressada em descobrir os lugares correspondentes, nos olhares excitados convergindo para o gramado, na entrada dos jogadores enfileirados, nos estrondos, nas luzes e na fumaça dos fogos e flashes, nas vozes estridentes irradiadas pelos radinhos colados aos ouvidos, na dispersão dos exercícios de aquecimento seguida da pausa ordenada e marcial, no apito do juiz e na bola que finalmente rola.

Pensemos agora no estádio vazio, nas linhas imaculadamente brancas que demarcam o gramado verde em porções regulares, nas longas linhas retas que definem aos combatentes os limites exteriores e interiores da área da porfia; na linha circular que consagra o meio de campo, ponto de partida de tudo e região central onde, calculada ou estabanadamente, são montadas as estratégias de ataque; e nas duas meias-luas, dois arcos que se distendem a partir das traves, talvez por efeito das unidades basculantes que os compõem, os goleiros, cujos movimentos são por elas balizados. Pensemos nas traves, nesses retângulos que se erguem abruptos, graves e sólidos nas duas extremidades do campo, na qualidade de materializações das linhas desenhadas com exatidão sobre a extensa superfície verde. Pensemos, por fim, em como elas emolduram o vazio, dois vazios, dois limbos, metas e destinos da bola, esta que talvez só não desapareça dentro das traves porque fica retida nas redes, essas teias delicadas – há quem se refira a elas como véus – que estremecem para em seguida abrigar com docilidade a bola, deixando-a repousar por alguns segundos até que alguém a pegue para que o jogo possa recomeçar. As traves são a encarnação do diagrama derramado sobre o chão, o momento em que a idéia se corporifica e aflora no mundo, pórtico para a vitória e que, por isso mesmo, justifica toda a energia despendida.

Há algo de incompreensível no futebol, como em qualquer jogo, no modo como arrebata as formiguinhas arrelia- das e barulhentas como se suas vidas dependessem daqui- lo; em nosso aceitar tácito de regras tão arbitrárias quanto sutis, e que no futebol se traduz em coisas como impedimento, obstrução, falta em dois toques... No entanto, esse carisma repousa na profunda identificação entre nós, espectadores, e nossa imanente necessidade de regras. Com seus rituais, suas normas rígidas, seus limites e penalidades, com o elenco de gestos que ele propicia e cuja prática continuada termina por ampliar, o jogo de futebol, como outro jogo qualquer, diz da nossa disposição em criar regras e viver por meio delas. Nada diferente, já se vê, das relações interpessoais e de tudo que é criado a partir delas, das cidades às casas, das coisas às palavras. E embora o tema do futebol enseje simpatia e até entusiasmo, a questão dos jogos que criamos para neles nos enredarmos, como nos ensina o artista variando entre o humor e a perversidade, é muito mais complexa, implicada que está com a natureza dos limites e com as punições derivadas de sua transgressão.

Raul Mourão leva o esporte a uma dimensão transcendente. Para ele, tudo é jogo. E todos nós, bem ou mal, com maior ou menor desenvoltura, atletas praticantes. O jogo começa já nas palavras, atravessa tudo o que há para desembocar no território da arte. E seu papel como artista consiste em fazer notar a espessura desse fato, transportá-lo para o universo da arte, igualmente entendido como uma instância proponente de jogos e, portanto, pródigo em malícias e ardilosidades. Mourão, por assim dizer, desfuncionaliza os elementos que compõem alguns dos jogos, a começar pelo próprio futebol, tema de um trabalho apresentado na terceira edição da Bienal do Mercosul, em 2001, e que consiste na confecção de uma “grande área” com as dimensões oficiais integralmente realizadas – linhas divisórias, meias-luas, marca do pênalti e traves – com a mesma tubulação metálica pintada de branco. Mantém-se a beleza da geometria em branco sobre o piso verde, que, transformada em obstáculo capcioso, apenas impede a fluência do jogo.

Ao invés de se comportarem com docilidade, ao invés de desaparecerem impregnados e  esquecidos  dentro  de nós, os signos deslocados pelo artista e corporificados em materiais variados adquirem aspereza, perdem a transparência, a univocidade de sentido que até ali possuíam. E mesmo o mais prosaico dos utensílios domésticos, assim como alguns dos símbolos mais familiares, já não respondem à desejada funcionalidade. Soam surdos e,  quando não nos frustram por terem sido inviabilizados, retrucam aos nossos apelos às vezes com humor, outras vezes com violência. Criados por nós, insurgem-se contra nós, rompem a relação doméstica e subserviente que havíamos estabelecidos com eles. Desse circuito, sequer a figura romântica do artista, cultuada por todos como modelo do indivíduo liberto, recheado de sonho, escapa. Em um trabalho devidamente intitulado 7 Artistas, Raul Mourão convidou seus colegas artistas a vestirem cintos de alpinismo fixados nas paredes. Suspensos, desconfortáveis, com os movimentos tolhidos, dessa vez os artistas é que eram expostos. E, afinal, por que deveriam eles escapar? O que os levaria a pensar que as regras e limites não se aplicariam a eles? O que os leva- ria a pensar que os feiticeiros estariam a salvo dos feitiços?

Na lógica dos signos, a cidade, lócus de todos os jogos, sementeira de signos, do aprisionamento e das ilusões a que eles nos levam, ocupa uma posição essencial. Vai daí ter sido muito natural que Raul rumasse para ela.

Apresentado em primeira versão no Instituto Tomie Ohtake, Entonces compreende um sem número de esculturas ocas, realizadas a partir de vergalhões de ferro cru, soldados e limados nos pontos de encontro. Entonces, trabalho pertencente a um raciocínio maior – a série Grades –, que envolve esculturas, instalações, serigrafias, vídeos e fotografias, nasceu aparentemente da constatação do avanço dos sistemas e estruturas de controle sob o corpo da grande cidade brasileira, o que é o mesmo que dizer sobre o cidadão, e que tanto acontece a partir de dispositivos imperceptíveis, como aquele só denunciado pelo aviso que cinicamente nos solicita “Sorria, você está sendo filmado”, quanto por elementos muito mais palpáveis e agressivos, como as grades que hoje literalmente engaiolam as casas

e pequenos edifícios suburbanos ou situados em área de alta periculosidade. Enquanto antigamente essas grades se comportavam quase como signos de segurança e de afirmação do caráter privado de um terreno e da casa situada dentro dele, só eventualmente se estendendo até as janelas das suas fachadas, hoje se proliferaram não só sob a forma de planos, mas de volumes, verdadeiras proto-arquiteturas vazadas na hostilidade que recobrem tudo quanto é área de serviço, recuos frontais e laterais, fortificando vedações já existentes, incorporadas não só pelas habitações como também largamente adotado pelo comércio miúdo das far- mácias, mercados, bares e dos armazéns de secos e molha- dos cujos donos e empregados atendem do lado de lá, como prisioneiros em regime domiciliar.

Separadas umas das outras por pequenos corredores, o corpo do visitante transita lento e cauteloso por entre as celas de ferro de dimensões variadas de Entonces como se caminhasse pelas ruas de uma cidade em escala reduzida e hostil. Assim, diminuídos os edifícios, de imediato se convertem em cifras da violência, em espécie de raio x que descortina o modo como tais edifícios são eficazes no controle do corpo de quem os habita e no constrangimento daqueles que ousam circular pelas ruas. Ao artista, não escapa se- quer o efeito da iluminação que incide sobre essa urbe de arapucas metálicas: o sol que se eclipsa nas malhas opacas, derramando-as no chão, nas paredes e nos visitantes. Uma atmosfera dramática para melhor lembrar os limites estritos da vida que vivemos.

Mas eis que o convívio com o trabalho vai aos poucos, senão desfazendo a agressividade da malha, ao menos demonstrando sua natureza ambígua e até mesmo divertida. Do hachurado denso, reconhecemos ou pensamos reconhecer cadeiras, sofás, lixeiras, outros objetos, ecos de objetos familiares. De abstrato, escorado que é numa certa visão esquemática das cidades, o aglomerado de feixes de ferro ganha os contornos de uma narrativa, uma paisagem abrutalhada cujos personagens sumiram. Quem habitava essas construções deixadas vazias e em silêncio? O clima contribui para que se eleve a sensação de absurdo e insolitude. Homologamente ao campo de futebol, ponto de par- tida deste texto em que se pretende demonstrar a especial afeição do artista em pensar nossa capacidade em engendrar jogos, signos que variam do intangível das palavras à materialidade das grades metálicas, Entonces termina por nos revelar também a vã tentativa do controle e da ordem, o fracasso das normas que deveriam ser obedecidas para

que a vida em sociedade fosse um fluxo constante e organizado, mas que, ao menos nas nossas experiências, nunca, sequer Brasília, logrou ser. A mobilidade latente dessas estruturas abertas atulhadas entre si alude a uma cidade perpetuamente em processo, que cresce para cima, para baixo e por dentro das sobras de uma cidade anterior, a começar, por exemplo, com as enfáticas linhas tracejadas em branco sobre o asfalto novo e negro com que os serviços de água, esgotos, telefonia ou congêneres, avisam sobre a construção iminente de uma trincheira. Detalhes como este são suficientes para deixar claro que a existência de qualquer uma das nossas cidades, consoante sua precariedade, será por sua vez efêmera. O desejo de durabilidade, que em Entonces está latente na dureza do material, esbarra no ostensivo inacabamento das partes dessa cidade que, como um enorme jogo de dados composto por peças de conformações variáveis, parece existir por uma obra de um deus menor. Um deus que, diante das desocupadas tardes da eternidade, não encontrou nada melhor a fazer a não ser arremessá-las ao acaso sobre o território, à espera de que fizéssemos uso delas.

PEQUENAS FRAÇÕES

PEQUENAS FRAÇÕES

Paulo Venancio Filho

Arte Bra Raul Mourão

O que está nesta exposição de Raul Mourão provém, com certeza, de um sensor em movimento constante pelo ambiente social altamente saturado que, após captar determinado objeto ou situação, e inspecionar detidamente materiais, dimensões, formas, localizações etc., procede imediatamente a uma sintética apreensão global do visado. Coloca-o numa espécie de programa de reestruturação plástica. O raciocínio aplicado é elástico, flexível, irônico e forma um conjunto de instruções sobre a visualidade urbana atual. O tempo é o presente imediato. A intimidade conspícua com a cidade fixa a cada instante uma fração qualquer e a equaliza à estrutura contemporânea da imagem. A legibilidade está socialmente dada; é o mundo pop, ou pós. A pretensão do trabalho não é, contudo, reproduzir este mundo, mas traduzi-lo num padrão conciso de apresentação. Raul mede o ritmo de emissão informacional do objeto e equaciona sua aleatoriedade numa forma icônica. Seu método, essencialmente democrático, aplica-se a qualquer coisa – placas, sinais, grades, futebol, arquitetura – e, ainda que esbanje uma versão própria da espirituosidade local, tem um compromisso “científico” com o resultado final. Imprescindível é a clara definição técnica do trabalho que aceita o improviso, mas não o improvisado.

Raul institui a mobilidade como programa aberto e coletivo: todos circulam pelo espaço da cidade, que é ao mesmo tempo sensorial e mental. Ela é o conjunto de todas as frações disponíveis que, articuladas, formam a vivência cotidiana. Profundamente engajada, a relação, diríamos intimamente recreativa, que se estabelece entre artista e cidade é um jogo total e constantemente renovado. E assim cada trabalho se revela um modo possível de recriar o lazer espontâneo e a inteligência do cotidiano – um entretenimento que articula crítica e humor, opondo-se à insipidez alienada da rotina. A economia visual construtiva localiza nitidamente no caótico o humor subjugado e o entrega, sem custo, ao desprendimento do dia-a-dia da vida coletiva.

Esse observador ativo fraciona a cidade local/global sem parar, de modo que o trabalho só pode ser múltiplo e o vocabulário plástico, um programa que se aplica igual- mente a desenhos, esculturas, vídeos, objetos, fotografias e instalações. Igualmente às grandes e pequenas frações.

Arte Bra Raul Mourão
TEXTOS DO ARTISTA

TEXTOS DO ARTISTA

Arte Bra Raul Mourão

Sem título

Na tentativa de compreender a arte contemporânea, fui obrigado a experimentá-la, agora e sempre não se volta atrás. Desenho que aponta os problemas e dificuldades de sua existência, que se afasta para chegar mais próximo, para voltar com força. Contar uma história a partir de uma idéia. Braço inchado, água morna, corrida de cavalos. Arte como força. Ambiente hostil. O pensamento deve ser importante. Anzol e rede. Dois vasos ou duas cabeças. Integridade com o trabalho. Idéias-problema que poderiam estar numa escultura, filme, conto etc. para nos conhecermos ou para não nos conhecermos. Água sai, sangue vira um mel. Não são mistérios para serem decifrados. Talvez problemas e dúvidas, mistério nunca. Um homem se alimentando. Desenhos sem título. O campo de futebol, duas traves brancas e o gramado verde. Pequenas esculturas, somadas a uma grande, formam um conjunto ou uma outra escultura. Compromisso com a música. Reflexão, especulação. Esclarecimento: os desenhos são tentativas de auto-retrato em escala real, as três figuras humanas sou eu.

 

RUA

Ver algo sobre o trabalho das jóias. | 28 frases prontas. O material é entregue finalmente. | Agora aguardo pelos desenhos. 1 semana é suficiente. | Mudança de pobre. | Cerveja no balcão. | No espelho do bar, a cabeça de um policial.

| De costas para a rua. Drogado. Droga leve. | Droga leve bem pesada. | Se chegar depois das 18h, o dono já foi embora e ele (Miltom) pode fazer outro preço. | 2 irmãos gêmeos numa sala. Um chupa o pau do outro. | Andava pensando. | Homem pede copo. | Sonho. Para comer rãs, o que é mais importante: penetração ou ejaculação? Ou o contrário? | Diálogo entre um casal em volta de uma piscina. | Uma minissaia com muito pouco pano. | Figura negra e fundo bastante escuro. | Uma idéia a partir da borracha. | Poesia come tudo. | Agradece: muito obrigado. | Tenho dois filhos e ninguém sabe. | Ninguém conhece. | A mulher da loja que vende canos. | Ele precisa dela. | 5 minutos. | Acordo de paz. | Viajando pelo mundo. Jogando a vida fora. | Não comeu ninguém. | Bebeu todas. | Aguardando sol para lavagem.

Veículo rastreado

 

Não precisa de mais nada. Não precisa de ninguém. Linhas no computador. Cinco imagens na tela em frente ao nariz. Dois cartões no bolso traseiro esquerdo: um vermelho e o outro amarelo. | Cupim come a madeira. Música com buracos. | Os talentos precoces amadurecem lentamente, quando amadurecem. | Poucos amigos. Péssima pescaria. Sangue ruim. | Disse que não vai se repetir. Tudo irrita. A pele queima. Liga a televisão duas vezes. O soldado que nunca lutou, o atleta que nunca competiu. | Estará lá novamente quando voltar. Trinta dias, seis cidades diferentes. | Acorda perto da Central do Brasil sem documentos e sujo. Volta até o cinema da noite anterior. Ônibus e depois barca até Niterói. Encontra a mãe morta. Pára e pensa. Não tem dinheiro. Nenhum. | Na parede, o chão. Na janela, o poste. Vai cortar o cabelo e diz que ama o aprendiz. Comprou uma máquina fotográfica. Idéia nova (zero). | Poltrona da sala de estar. A lembrança de uma criança. Em casa, permaneço lendo o campo, o campo de futebol. | Ruído. Segura minha mão. Tudo vai explodir. Alguém desce pelas escadas correndo. O dia está amanhecendo. As estrelas vão embora. Ninguém se importa. Existe diferença. | Banco do bar. Banco do assalto. | Pais olham seus filhos. Nervosos. Vão descobrir um caminho melhor, longe das drogas. As boates de sacanagem não prestam mais. Tudo vai melhorar no ano que vem. | Tristes e tortos, todos foram feitos de borracha.

 

Tragédia-tédio, ética-titica

 

Segunda

A reunião de trabalho do AGORA acontecia no bar Aurora, em Botafogo. Na televisão, as imagens do bandido que tomou conta do ônibus na Rua Jardim Botânico. Depois ligaram o som. Primeiro, na Rede Globo e, em seguida, na Rede Record (com narração do ex-repórter esportivo Datena e trilha sonora original). Mais uma vez, a violência vira espetáculo ao vivo para todo Brasil. Mais tarde, para o mundo inteiro. Ao lado, o garçom resmungava: todo dia tem cano de revólver na boca, todo dia morre alguém estupidamente, todo dia matam um inocente. A reunião andava mal. A TV dominou o ambiente. Todos ligados. A exposição de Tatiana Grinberg, na Lapa, foi adiada para 8 de julho.

O medo e mais um sujeito tocando o terror.

Quem vai transformar a brutalidade em arte? Vai ficar só no noticiário?

Alguém vai subir o morro como Hélio Oiticica?, perguntou Eduardo.

 

Basbaum interrompe dizendo que precisa se retirar. Afirma ter sido uma das melhores reuniões do grupo. Tenho minhas dúvidas.

 

Terça

O governador Garotinho reconhece a estupidez de sua polícia.

Em São Paulo, há a volta de Celso Pitta. Diversão garantida. Na página 16 do primeiro caderno do Globo, a legenda da foto dizia: “Com a arma na cabeça da refém ajoelhada, o bandido ameaça atirar”. Ele cantava música funk, aparentemente drogado ou enlouquecido.

No canto inferior, um quadro destacava SAIBA COMO AGIR. Evitar pânico. Relembre as crises. Rezar. Conversar. Voltar à realidade. Reação. Gestos bruscos. Ajuda. Tiros.

Até quando os veículos de comunicação, autoridades e empresas vão ficar nos passando instruções de como se comportar em seqüestros, caixas de banco 24h e sinais de trânsito na madrugada?

O bandido era um dos sobreviventes da Candelária. “Boa gente”, alguns vão dizer. Cresceu nas ruas, sem pai nem mãe, nem educação. A maioria lamenta que ele não tenha morrido em cima da banca de jornal.

Por telefone, a conversa com Eduardo foi mais ou menos assim: “Entre uma escola de arte e um clube militar, a violência atacou a sociedade. Os militares falharam: faltou olho (mira), ouvido (comunicação), garganta (voz de comando) e cérebro (estratégia de ação e eficiência). Da arte se espera uma lucidez, além da interpretação dos fatos. O que fazer com esse material, esse monte de realidade que temos que driblar para não parar no trânsito? No trânsito das armas, apropriadas ou não, no momento certo ou não… João Moreira é um artista condenado, enquanto no Quintal do Garotinho os mocinhos treinam dar tiros. Balas fazem mal aos dentes. E nesse olho por olho temos uma responsabilidade enorme: o inimigo não tem cara, nem corpo, nem nome. Ele aparece dos sentidos que damos às coisas, pelo que extraímos da realidade e afirmamos como indagação. É papel do artista fazer do chão um instável caminhar. A arte não tem a ver nem com um lado nem com o outro da moeda, mas sim com seu peso.

Na tragédia, todos saíram perdendo: bandido, polícia, imprensa, população, políticos, eleitores e especialmente a professora Geisa. Tudo segue igual. Nada vai mudar.

 

Cego só bengala

1. Mais cego que o cego. Tão cego como uma bengala. Só a bengala, sem o cego, sem o cachorro, sem vida. Um toco de madeira. Um toco encostado num poste. Cego como o poste. O próprio poste. O pó e o poste. Droga. 2. Um grupo de 3 fotografias e 12 esculturas se encontra e organiza a instalação Cego só bengala. Um trabalho para a visão. Exercício: o globo ocular malhando abdominais. 3. A população não enxerga as grades que cercam as construções, apreende apenas a função defensiva.

 

Visita à camarada F.

Sábado à noite. Um pulo na casa de Fernanda Gomes para conversar e conhecer trabalhos recentes. E também para enfrentar copos e garrafas. Nada de música. Boca-fumo-pulmão, narina-napa. Fernanda mora em Copacabana e não tem tempo nem paciência para a bosta que anda por aí. A casa e o ateliê se confundem. Há um quarto que seria o ateliê, mas, na verdade, os trabalhos vão ocupando a casa toda.

No corredor, o fio dental usado por Fernanda e Fernando é agora um trabalho na parede. O trabalho não tem título, nenhum trabalho de Fernanda Gomes tem ou terá título. No meio da sala, está faltando um taco, Fernanda encheu com sementes de cravo. Quando se fala em cravo, se pensa em canela. No nosso caso aqui, acho que a canela é mais embaixo. Aquele pedaço da perna que serve para localizar os móveis na escuridão. No quarto, pequenas caixas, fios, linhas, a bancada, um pequeno travesseiro repousa em um velho livro aberto, bola feita de cabelos, o papel dos cigarros, agulhas, um saco pendurado no teto, copo.

Como Paulo Venancio escreveu em “A história do pó”: “Até onde é possível fragmentar? E depois de tudo fragmentado como voltar à totalidade? Da insignificância se pode retornar ao mundo significante? Fernanda Gomes submete seus objetos a um teste dessa ordem. Recolhe aquilo cujo destino é a insignificância. Coisas mínimas, irrisórias, quase imperceptíveis, raramente observadas são colocadas no lugar daquilo que merece uma atenção. Retiradas da insignificância e deslocadas para uma única função; serem vistas. Pois o olhar parece ser a única forma de tocá-las, o único possível contato antes que desapareçam [...]”.

Depois de três ou quatro horas no sofá, resolvemos fazer nova arrumação na sala. Em apenas quatro minutos, tudo está mudado. Nova paisagem. Cada trabalho está impregnado de raiva, força e graça. Cada trabalho está impregnado de vida. Fernanda Gomes é assim: tá com sede? Toma um copo de poeira.

Saí do prédio confuso, perdido. Peguei a contramão. Colisão. O carro capotou. As quatro rodas pra cima. Parou um caminhão, saltaram cinco caras. Desviramos o carro e segui em frente, um pouco amassado.

O caroço com caroço

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua.”

JOÃO DO RIO | A alma encantadora das ruas

 

Passa a carroça na Rua Joaquim Silva vendendo pamonha, pipoca e cocaína. Cada coisa no seu lugar. | Ano da Copa sem Romário e com Ronaldos. Ano eleitoral. Ano da Bienal de Arte de São Paulo. Bienal sem bolas. | Artistas se reúnem para declarar o amor pelo Rio, pela Lapa. Decidem ocupar o Hotel Love’s House. (13 quartos. 11 dias.) Poderia ser o estacionamento da Rua Camerino, a sinuca da esquina, o Cor-

dão do Bola Preta ou a funerária Último Adeus. Ano que vem ocuparemos a Hospedagem Canarinho. Melhor trocar com os vizinhos. Nossa rua. Nosso lado. | Sobreposição de cargos e funções, uma estrutura de trabalho que acumulou concepção, curadoria, produção e conteúdo. Produção independente.

| A academia reclamou falta de clareza, reflexão e método. O povo prossegue insatisfeito com as autoridades (sempre). | O vira-lata é o rei da rua. A pulga manda atrás da orelha. Ação pública em ambiente privado. Caroço com caçapa.

 

Novo de novo

A exposição chama-se Estímulo Puro e os trabalhos só estarão prontos poucos instantes antes da inauguração. Não há ateliê nem desenho. Não há projeto, apenas um roteiro com imagens. Arte só idéia e ação. Arte sem matéria, sem pista. Um avião na contramão. João solta o balão para o alto. Na galeria, colar e cortinas. Perfume com madeira. Piso fora do nível. Plano fora do prumo. O cisne é o lago. O lago é o mar. O mar é o sal. Diariamente, precariedade e delicadeza irão transformar a exposição. João Modé pela terceira vez tentará construir a torre de madeira em direção ao céu. Pés enterrados no chão. Travesseiro de manteiga. Cama de cabelos. Pedaços de unhas enchem o pequeno pote até a boca, até o topo. A linha atravessa o espaço. A flor lentamente devora o cavalo branco. João Modé acorda cedo todo dia. Raiz, tronco e membros. Som sem som.

CADERNO DO ARTISTA

CADERNO DO ARTISTA

ENTREVISTA

ENTREVISTA

Rio de Janeiro, 4 de dezembro de 2006.

Participantes: Luisa Duarte, Ana Paula Pontes, Carlos Vergara, Débora Monnerat e Luiza Mello.

Arte Bra Raul Mourão

Carlos Vergara

Sabemos que existem relações entre o humor e a arte. O humor pode passar pelo cínico, pelo desagregador, pela diluição. Como você vê a questão do humo no seu trabalho?

 

Raul Mourão

Talvez o humor esteja presente desde os meus primeiros trabalhos. Não foi algo programado, resultado de uma reflexão, foi uma coisa que se incorporou intuitivamente. O humor é uma categoria fascinante do pensamento humano. Há o humor no cinema, na imprensa. As piadas que correm livremente o mundo e fazem dele um local mais viável. E também há o humor na história da arte, no dadaísmo, na obra do Magritte.

Luisa Duarte

Acho que o Vergara perguntou mais que isso. Ele falou em palavras como cinismo, diluição, de um elemento desagregador que o humor pode ter e de como você enxerga isso. Tem um questionamento que vai além de pensar o humor na história da arte. Acho que você pode usar o Luladepelúcia, seu último trabalho, para pensar essa questão.

Raul Mourão

Não entendi o desagregador. Desagregador do trabalho?

 

Carlos Vergara

Na verdade, as artes plásticas pretendem quase sempre, a não ser quando tem um elemento desagregador objetivo colocado para fora, ser grande arte. Comporta-se na própria questão da artesania ser grande arte. A entrada do humor desagrega essa pretensão.

 

Raul Mourão

O humor como algo vulgar, ordinário, banal.

 

Ana Paula Pontes

De não levar tão a sério a coisa. Acho que o Vergara perguntou mais que isso. Ele falou em palavras como cinismo, diluição, de um elemento desagregador que o humor pode ter e de como você enxerga isso. Tem um questionamento que vai além de pensar o humor na história da arte. Acho que você pode usar o Luladepelúcia, seu último trabalho, para pensar essa questão.

Carlos Vergara

E isso joga para outro risco, que é o eventual esvaziamento, um gesto que provoque riso. Na verdade, a pergunta tem um sentido. Quando você faz arte, você pretende fazer um gesto para não ser esquecido. O humor, muitas vezes, tem esse caráter efêmero, fugaz. Me interessa saber como o Raul lida com essa questão dentro do seu projeto artístico.

Luisa Duarte

A questão é você pensar diante desses questionamentos, usando o Luladepelúcia para abordar a questão, como você se coloca diante dessas encruzilhadas.

 

Raul Mourão

É difícil para mim pensar nisso agora. Essa pergunta abre uma reflexão sobre a qual talvez eu não tenha a resposta. É uma coisa que eu começo a pensar agora. O humor está presente no vídeo 7 artistas, quando eu penduro os artistas na galeria e tem ali uma brincadeira meio cruel com os colegas, pensando uma troca, o artista no lugar da obra. Depois, na própria A grande área, tem um pouco isso, que é a escultura com as dimensões da grande área, um futebol com obstáculos. O Surdo-mudo, que é uma pedra de granito em cima de um surdo, o Cartoon, e alguns outros momentos que agora me escapam. São trabalhos em que o humor está presente. No caso do Lula, isso foi além, é quase um cartoon mesmo, é um trabalho que se você descrever já é suficiente, não precisa nem ver. Eu acho que a diferença é que, nesse caso, é mais do que humor, é uma piada e ganhou velocidade de piada.

 

Ana Paula Pontes

O Luladepelúcia foi muito discutido fora do meio da arte. Como você se sentia com o trabalho sendo discutido não como objeto de arte, mas como uma piada?

Raul Mourão

Foi a coisa mais interessante do trabalho. Ele é um objeto de arte na medida em que foi apresentado numa galeria, foi formulado no ateliê, em conversa com outros artistas, dentro do meu processo. Mas ele circulou por outro ambiente que não é o da arte. Os cadernos de economia, política, as revistas de fofocas e celebridades.

Ana Paula Pontes

O que foi discutido foi a situação do Lula no país e o Lula como um boneco. Mais a metáfora do trabalho do que propriamente o trabalho.

Raul Mourão

Com certeza.

 

Luisa Duarte

Acho que é da natureza do objeto que você criou, ele dá muito o que falar e não sei se dá muito a ver. Os trabalhos da série Grades, que também tratam de uma questão social, de um tema como a insegurança nas cidades, nos grandes centros urbanos, entretanto, tem uma preocupação com a forma, com a visualidade, em como isso se resolve visualmente, muito grande a meu ver. A gente pode discutir, se pegarmos desde o início da sua produção na década de 1990 até hoje, como se dá a questão da resolução visual formal no seu trabalho.  Mesmo quando você lida com temas e conte dos que podem ser tratados de maneira literal, em que a parte visual se encontra realmente amortecida. Mas em um trabalho como Grades acho que isso acontece de uma forma muito potente.

 

Raul Mourão

Para mim, é difícil articular cada um desses mo- mentos. Ao mesmo tempo, penso neles como crônicas. Em um dado momento, vejo o crescimento prédios, uma coisa meio caótica, descaracterizando a arquitetura e criando nela apêndices, uma coisa desordenada. Essa é uma motivação que gera uma pesquisa grande, gera fotos, desenhos, um trabalho que toma seis anos. Em outros momentos, me vejo mais como um autor de ficção; em outros, mais documental. Não sei se no caso das Grades é uma crônica ou um documento. Trabalho com os dois gêneros: a ficção e o documentário. Me vejo circulando, migrando de um para o outro.

 

Carlos Vergara

Queria falar algo sobre o começo da série Grades. Percebe-se que o motor inicial do trabalho é uma questão literária, o aprisionamento. Mas tem um momento em que isso se perde por uma conquista do visual do trabalho. De repente, você se vê fora da questão literária, numa questão plástica. Mas você volta para a questão literária porque o trabalho está ancorado. Acho, como conheço você e venho conhecendo cada vez mais, que essa questão do humor pertence a uma forma tua de raciocinar. Eu tenho uma forma de raciocinar completamente ao contrário, porque sou filho de um pastor protestante, cheio de culpa. Então, quando vou fazer arte, o humor não entra, fico olhando, admirando e fico temeroso comigo por não ter o humor e temeroso contigo por rir demais. Mas acho que o trabalho das grades tem uma questão plástica interessante que de repente tira fora a questão literária  do trabalho. E vira artes plásticas no apogeu.

 

Ana Paula Pontes

Você fez um projeto especial da série Grades no Museu Vale do Rio Doce e depois não fez mais. Por que essa opção por usar a grade como um elemento escultórico, por um agrupamento de esculturas que geram um espaço e menos como uma intervenção, usando a idéia de barreira, mais da sensação corporal. Na maioria dos casos, ela é fechada nela mesma.

Carlos Vergara

Eu vou responder essa pergunta. Esse deslocamento que ele faz dá o caráter visual, estético para essa questão e retira da situação literária.

 

Raul Mourão

O trabalho realizado no Museu Vale do Rio Doce foi diferente. Um lugar que você entra e que não deixa você entrar, que aprisiona. Isso aconteceu, fiz um ambiente em que as pessoas entravam e a porta mecânica fechava. A pessoa se via lá dentro sem ter como sair, até que o segurança da exposição acionava o controle e abria novamente. Na verdade, eu tive oportunidade de fazer isso lá. A série das grades ainda não se esgotou, eu tenho anotações, desenhos. Existem várias coisas em processo que não tenho idéia de quando vão acabar. Certamente vou retomar e uma das coisas que penso são exatamente situações como essa que você descreveu, de ambientes, percurso, travamento, relação com a arquitetura, ou a construção de um espaço que se assemelha a um espaço arquitetônico. Isso é uma coisa que experimentei e à qual pretendo voltar.

 

Ana Paula Pontes

O que te trouxe esta oportunidade lá foi circunstancial ou o espaço propriamente?

 

Raul Mourão

Foi um conjunto de coisas. Tanto o espaço solicitava, quanto me foram oferecidas condições de prazo e recursos para realizar a obra. O espaço despertou o interesse em trabalhar naquela escala e pensando essa interatividade do espectador. Mas é uma coisa que certamente eu pretendo fazer novamente. Eu entendo isso que você fala de extrapolar a questão literária, esse drama que é a justificativa para dar o start. O trabalho fica maior que isso e de repente você experimenta essa questão com mais potência, porque o acontecimento plástico é maior.

Arte Bra Raul Mourão

Luisa Duarte

Lembro agora de uma passagem do Marco Veloso sobre seu trabalho, quando ele diz: gosto muito do fato de que o Raul valorize as idéias. Ele não te leva simplesmente para um ateliê e apresenta uma série de objetos numa performance convincente, ele te fala de idéias. Continuando nesse raciocínio, para entrarmos em uma outra seara da sua obra, acho que essas idéias têm a ver com as histórias, gêneros literários e essas histórias vão ser uma outra imagem que você gosta de usar. O Cildo Meireles fala do que seria uma biografia do trabalho. Que história está por trás, o que foi vivido para que aquele trabalho existisse. Esse voltar atrás seria a biografia do trabalho. No seu caso, essas biografias têm muito a ver com a experiência da rua, da cidade, essa experiência da vivência no ambiente urbano. De o seu caminhar ser a observação da vida, da experiência e transformação no trabalho de arte, essa intervenção é um dos caminhos que eu enxergo no seu processo. Você poderia falar se isso faz sentido e qual o papel que a cidade cumpre estando sempre voltando.

 

Raul Mourão

Desde o começo, a cidade sempre foi minha escola, meu maior interesse e certa facilidade que eu sempre tive de transi- tar, de estar aberto para conhecer e investigar, percorrer sem medo, sem pudor de estar me misturando. De uns anos para cá, depois da experiência do AGORA, eu me afastei um pouco do circuito de arte, debates, dos textos.

Luisa Duarte

E se aproximou de quê?

 

Raul Mourão

Acho que eu me dispersei pelo mundo comum, das coisas ordinárias, do que sai no jornal, do Maracanã. A teoria da arte ou a história da arte não estão nesses lugares. Não sei se foi uma coisa antagônica, de querer dar um tempo. Na verdade, hoje estou sentindo falta, não do circuito de arte, que está muito chato, muito cheio de esquemas, muitas jogadas. A idéia de estudar, de trocas qualificadas, de viajar, de percorrer, entrar em contato. Isso é uma coisa que estou querendo. Acho que a internet é um canal para gerar isso, me aproximar de certas pessoas, grupos e pensamentos. Identificar onde está acontecendo algo que tenha troca com o trabalho.

 

Luiza Mello

Eu acho que sua relação com a cidade, seu contato com profissionais de outras áreas, da música, do cinema, com o pessoal da Lapa, sempre trouxe uma vida para o seu trabalho que muitas vezes a gente não vê em artistas que estão mais ligados a certa postura intelectualizada. Talvez seu interesse em viver trocas qualificadas, estudar, seja um amadurecimento dessa vivência na rua, na cidade, uma retomada de questões ligadas ao projeto do AGORA, que foi importante, porque promoveu idéias, exposições.

 

Raul Mourão

Acho que o AGORA mexeu no circuito e ajudou a viabilizar as iniciativas como A Gentil Carioca, e outros projetos têm esse mesmo espírito. Havia oportunidade para aquilo acontecer ali, pessoas que já trabalharam juntas, que tinham afinidade.

 

Carlos Vergara

Um vento fresco. Contra um ranço acadêmico, institucional.

 

Raul Mourão

Tem muito a ver com o do it yourself do movimento punk. O computador viabilizou que as pessoas fizessem os livros e as revistas em casa, os discos, e por que não os artistas plásticos organizarem exposições? Ficou mais fácil e barato reunir as pessoas. Alugar um espaço e convidar um artista. Foi o que a gente fez.

Talvez a internet tenha me chamado atenção para isso. Lendo certas coisas, acompanhando determinados movimentos como o Overmundo e os blogs. Você está vendo pessoas independentes, fora de instituições ou de grandes veículos colaborando, discutindo. Um cara posta um artigo e gera cem comentários. Outro dia eu li alguém falando sobre a cena decadente de Recife. Logo em seguida, veio uma galera combater e ali você tem uma discussão real de quem está fazendo. As pessoas se colocam mais.

Esse momento da revolução digital é muito interessante, o que está acontecendo na música, no cinema, não sei como isso vai se refletir nas artes plásticas, mas eu acho que vai refletir, inclusive no mercado. Eu acho um momento maravilhoso da história. Um momento de grandes modificações, grandes avanços tecnológicos, as coisas diminuindo e se popularizando. Acho fantástico poder acompanhar e vivenciar esse momento.

 

Luisa Duarte

Você acha que essas transformações vão trazer mudanças, porque você foi sempre muito preocupado com a questão do público da arte contemporânea. Seria bom que mais pessoas estivessem interessadas nesse alargamento do público para arte. Isso vai se desdobrar também num alargamento dessa troca, não só entre os que fazem arte e vivem no circuito de arte.

 

Raul Mourão

Até agora eu não vi nenhuma indicação de que isso vai acontecer. Mas pode acontecer. Eu acho que as artes plásticas e a arte contemporânea podem atingir um público maior. O novo consumidor, um garoto que tem 18 anos e usa computador desde os cinco, joga game, fala no messenger, vê televisão. Ele vive num mundo de imagens.

 

Ana Paula Pontes

Por que você acha que esse carinha vai ter paciência para as questões da arte, quando ele tem tanta coisa interessante, estimulante acontecendo, tanta troca? Porque eu não acho, sinceramente.

 

Raul Mourão

Eu acho que esse é o novo consumidor de cultura.

Ana Paula Pontes

É cultura ou entretenimento?

 

Raul Mourão

O que eu estava descrevendo é mais entretenimento. Mas não vejo problemas. Eu me aproximei das artes plásticas depois de consumir cinema, literatura e música. Cultura. Para mim foi o caminho. Não é que todo jovem vai se interessar, mas uma parte, que já está envolvida, consumindo música, show, festas, pode migrar para consumir cultura. Você tem mais gente com certos hábitos, é uma questão de volume, estatística. A questão do entretenimento está presente para um número maior de pessoas e essas pessoas podem virar consumidores de cultura. Pelo simples hábito de estar ligado em imagem, cinema, televisão, festa, show, música eletrônica.

 

Luisa Duarte

O que você acha de um artista como Jeff Koons?

 

Raul Mourão

Eu não conheço muito o trabalho dele, mas o pouco que eu conheço acho muito interessante. Adoro aquela série com as bolas de basquete. Eu acho que ele é da escola do Andy Warhol, do Keith Haring, do Vik Muniz, esses grandes caras que constroem imagens-síntese. A imagem do cachorro na frente do Guggenheim de Bilbao do Jeff Koons vira um cartão-postal, em qualquer lugar do mundo. O chocolate do Vik, se for reduzido e colocado numa tampa de refrigerante, imprime bem. São artistas extremamente pop.

 

Carlos Vergara

Uma das questões que penso em relação ao Jeff Koons é de uma ironia que se dissolve. A gente tem uma plêiade de exemplos que operam nessa área que atinge o pensamento por meio de imagens que quase se transformam em clichês ou que são clichês, que se dissolvem no espaço. Na minha última viagem, eu vi uma exposição do Rauschenberg e ele frustra essa relação entre humor, clichê, entre a expectativa do gesto artístico da grande arte do momento. Porque ele faz um trabalho que tem humor, mas é como se fosse um sanduíche de algodão, que você morde e ele chupa a saliva. Não conseguimos dar a segunda mordida. Eu acho estranhíssimo e maravilhoso. Você disse que há uma possibilidade de grande público e eu acho que não é necessário.

 

Raul Mourão

Talvez não seja.

 

Carlos Vergara

A necessidade de grande público é uma falsa necessidade. A necessidade de densidade é uma real necessidade. Eu vejo no seu trabalho, às vezes, mais do que uma questão de grande público, uma questão que está em A grande área, que é a escala, em que o tamanho é documento. Gostaria de ver a série Grades, por exemplo, numa escala que se prolifere. Essa é uma questão de numerário e não de falta de idéias. É porque eventualmente você vai ter numerário para voltar a essas idéias numa outra escala. Vejo, por exemplo, que seus cachorros anseiam por uma escala maior.

 

Raul Mourão

Isso que você falou da escala é perfeito. A Grande Área é um trabalho que comunica, o cara bate o olho, entendido, iniciado em arte ou não, ele chega ali e se aproxima para ver. O cara está passando, um leigo, e aquilo é um acontecimento no parque, uma imagem que ele conhece e é estranha.

 

Quando eu falava em grande público, estava falando nessas movimentações digitais, facilidades que hoje você tem de falar com o público. Hoje em dia, tem músicos que estão reconstruindo a carreira, que estavam sem gravadora, esquecidos, fazem site e vão lá.

 

Luisa Duarte

Mas concordo com o Vergara que falta densidade.

Raul Mourão

Eu não acho que o problema da arte contemporânea seja de que tenha pouco público. Para o cara da periferia, fora do eixo cultural principal, imagina um cara que morava em Belém ou Marabá na década de 1940. Para o cara receber a Veja ou a Art Forum do momento, tinha que esperar o comissário amigo dele trazer para o Rio, para alguém xerocar e colocar no correio. Os caras da periferia sempre foram curiosos, pesquisadores, ávidos por informação, enquanto a gente aqui é empurrado goela abaixo, jornal, televisão. Quando vem a internet, ela que é interativa, o curioso ou o cara da periferia é mais pesquisador do que eu, porque ele sempre foi pesquisador, sempre correu atrás da informação. Nós estamos no meio da informação.

 

Luisa Duarte

Sei que você tem uma produção de contos muito curtos, aforismos, escritos. Você tem cadernos, livrinhos, o livro RUA. Nele, você descrevia certas cenas, como se tivesse parado num bar, num bania uma cena, o bêbado caído no chão. Vira uma fotografia, um instantâneo que você traduz em palavras. Gostaria que você falas-se que papel tem esse momento como artista plástico.

 

Raul Mourão

O meu texto é isso. São cenas. O texto dialoga com a produção das fotos, com o próprio trabalho das grades. É uma cena. Toda essa série pode ser entendida como uma cena que eu vi e gerou uma série grande. Uma grade fechando uma janela, uma outra grade fechando um prédio e no meio, entre um prédio e outro, uma outra grade, e em cima da marquise uma outra grade.

 

Luisa Duarte

O banco do botequim que vira uma escultura.

 

Raul Mourão

Essa é uma ligação interessante. O texto se parece com o trabalho, fala com o trabalho, viabiliza o trabalho em algum momento. É uma anotação.

 

Ana Paula Pontes

Você está sempre preocupado com a circulação da arte, veiculação, colocar isso no mundo, fazer circular. De que maneira isso volta para o seu trabalho, contamina ou informa?

 

Raul Mourão

De nenhuma maneira. Eu nunca faço uma coisa pensando em como vai ser a repercussão, a circulação.

 

Ana Paula Pontes

Você pode estar falando da repercussão de mídia. Por exemplo, aquela garrafinha de Coca-Cola em que o Cildo pôs um texto.

 

Raul Mourão

Ninguém falou isso ainda, mas eu acho que a série Luladepelúcia estabelece conexão com a Coca-Cola e a idéia de inserção em circuitos ideológicos.

 

Carlos Vergara

No caso do Cildo, era um trabalho de garrafas jogadas ao mar, não tinha a preocupação de grande mídia. Era ao acaso, imprimir na Coca-Cola, e que algum dia alguém pegasse e se impregnasse daquela situação.

 

Luisa Duarte

Provocar esse desvio, mas com o acaso gerindo o processo.

 

Raul Mourão

Acho que a vocação do trabalho de arte é sair do ateliê. Porque acho que tem que ir para algum lugar, para alguém ver, porque quem vem aqui no ateliê além de nós? O Ricardo Basbaum sempre falou isso, a vocação do trabalho de arte é circular. Ir para o Museu 1, o Museu 2, o Museu 3, para a casa de um e da casa de um ir para a casa de outro. As pessoas têm que ver, ter o contato, se emocionar ou não gostar. Isso é uma preocupação, um desejo que eu tenho, de que o trabalho circule. Mas em nenhum momento isso contamina a criação. Vou fazer isso porque vai ser mais fácil de circular. É sempre para o outro atendendo a um impulso interno.

 

Ana Paula Pontes

Tem artistas que fazem a serviço do outro e outros que dizem “eu não quero nem saber”.

Arte Bra Raul Mourão

Raul Mourão

Eu penso as duas coisas. Eu faço para ser visto, para circular, para acontecer na vida de alguém. Eu acredito na esfera pública do acontecimento de arte. Acredito na história da arte. Acredito que estou ligado às pessoas que vieram antes. Você está conectado com o passado, querendo construir o futuro. Eu não me acho sozinho, acho que as coisas têm um encadeamento. O trabalho também tem a dimensão de estar construindo uma coisa maior.

 

Ana Paula Pontes

Você tem o desejo de se inserir nesse contexto e transformar esse contexto. É a própria definição de arte para o Giulio Carlo Argan. Transformar o contexto, estar dentro dele e ser um ponto que cria certo desvio dentro de algo que aponta para uma nova coisa.

 

Carlos Vergara

Você vê a questão da escala como um projeto no seu trabalho?

 

Raul Mourão

Eu vejo. Tem aquela escultura em homenagem ao poeta Waly Salomão, uma imensa cabeça de pedra afundada no mar de Ipanema, onde o público da areia enxergaria apenas a cabeleira pra fora d’água. Eu acho que a escala, a não ser em A grande área e no Buraco do Vieira, é uma coisa que eu experimentei pouco.

 

Luisa Duarte

Como se fosse um conteúdo latente, que estivesse na espera de poder se manifestar.

Raul Mourão

Não tenho muita preocupação com isso porque eu tenho a sensação de que estou no começo do trabalho. Esses quinze anos são o começo.

 

Luisa Duarte

Naquele início de conversa, a gente estava falando em trabalhos como o Luladepelúcia, as Grades, quando a gente colocou em questão o que é fazer isso, para a arte ser como um parti-pris, conteúdos literários, conteúdos sociais e políticos e como ela se resolve plasticamente, visualmente. A gente vê uma produção hoje em dia que volta para questões sociais, políticas, e muitas vezes isso é questionado, como se a arte não pudesse participar desse debate. A gente está aqui com um artista que viveu os anos 1960, 1970 e sabe que a arte participa da vida, que acontece para além dos muros de um cubo branco. Com que singularidade ela vai participar dessa história? Como você lida com esse encontro das artes plásticas com esses assuntos? Até aproveitando a presença do Vergara para falar um pouco disso aqui.

 

Raul Mourão

No meu caso, eu volto àquilo que a gente estava falando. É um dado que vem desde o começo, enquanto observação do mundo real, da rua, do jornal, do cotidiano, da cidade, da pedra, do chão, tudo. Mas eu não acho que Luladepelúcia e a série Grades estejam inseridos nesse novo contexto da arte como contestação social, sociológica, antropológica. Eu acho que ela vem de outro lugar.

Luisa Duarte

Não tem essa preocupação, é observação. Para você, não é um problema, porque não vem daí, então a questão de como resolver isso, como lidar com temas que normalmente podem fazer par- te de outras disciplinas não é uma questão.

 

Débora Monnerat

Quando a Ana Paula falou de circulação, acho que tem uma coisa no trabalho do Raul que agrega toda a experiência dele de vida. O Raul por si só é uma criatura que convive com muitas. É um olhar da música, do cinema, e isso está no trabalho dele sem ser uma questão. Raul é um observador. Todo artista tem um pouco disso. É como se ele estivesse aberto para a vida e trouxesse isso para o trabalho. E ele também se comunica, é um trabalho de arte que se comunica muito com o outro.

 

Carlos Vergara

Eu vou mais longe. Sinto muita proximidade entre o que moveu o trabalho do Raul e o que moveu o meu trabalho. O que moveu o meu trabalho, por exemplo, foi uma questão política. O que moveu o trabalho do Raul foi essa observação do mundo. E perceber que tem uma imagem-síntese que pode ser eloqüente e dividida com os outros e que pode dividir a sensação que você tem nessa apreensão do mundo. O seu trabalho, como eu vejo, para onde ele vai você vai dizer ainda. Mas acho que ele vem dessa questão. A questão da imagem é muito essa observação do mundo. É muito natural que você recorra, que você cate aqui, misture e mande.

Luisa Duarte

Fale um pouco do AGORA, que foi uma experiência pre- cursora nesses últimos dez anos. A sua experiência de troca e essa circunstância do artista tendo que ocupar um lugar que é da instituição e que outras vertentes do circuito não ocupam.

 

Raul Mourão

Eu gosto muito do que aconteceu no AGORA. Foi super-bem cuidado. O Edu Coimbra e o Ricardo Basbaum são parceiros extremamente competentes, em todos os sentidos. No texto, na organização, no gerenciamento do negócio, na escala. O empreendimento como um acontecimento público, uma preocupação ética, de cuidar, dos limites, de respeitar um ao outro. A gente só acabou com o projeto porque num determinado momento as visões eram distintas, e os interesses eram distintos.

 

Carlos Vergara

Ou melhor. Acho que questões estéticas foram determinadas pelo AGORA que permanecem até hoje. Até o comportamento.

 

Raul Mourão

Eu não vejo muito isso. Acho que hoje a gente vive uma cena onde há uma informalidade, que não havia no AGORA. Tínhamos o cuidado de gravar, colocar no site. Tanto é que a história está toda aí. Éramos organizados, havia um cuidado de fazer o trabalho com uma dimensão pública. O AGORA tem a ver com a qualidade e clareza dos textos do Basbaum e do Edu. A minha disponibilidade de produzir, empreender, mobilizar, chamar gente, pensar coisas, de convidar o Chelpa Ferro para abrir o AGORA com uma festa, uma performance que lotou, foram mais de quatrocentas pessoas. E a seqüência de coisas que a gente fez, exposições do João Modé, Lívia Flores, Brígida Baltar, Fernanda Gomes, Love’s House, com um livro.

 

Luiza Mello

O que você está fazendo hoje no ateliê?

 

Raul Mourão

Um montão de coisas. Tem esse trabalho com as fitas adesivas, a que eu ainda não pude me dedicar muito. Mas já tem várias coisas anotadas. Tem o vídeo que é o Bate-porta, que estou partindo para fazer uma animação.

 

Luiza Mello

O que é esse vídeo?

 

Raul Mourão

É um ambiente onde tem quatro portas, o espectador está dentro desse ambiente, tem quatro paredes e uma porta em cada parede. E elas batem fazendo uma música. E tem outro trabalho com som também, chama Sonoro. É uma sirene espalhada pela cidade. Um percurso: começa a tocar na Cinelândia, toca e vai sumindo, aí ele chega perto do Outeiro da Glória e começa a ouvir a próxima e assim por diante. Quando ele está acabando de ouvir a de trás, passa a ouvir a da frente. Vai sumindo e ele já vai ouvindo a outra. Isso tem um pouco a ver com as sirenes de guerra.

 

Luisa Duarte

Dois trabalhos com som.

Raul Mourão

Sonoro é bem anterior a Bate-porta. Tem anos.

 

Ana Paula Pontes

Você tem outro tipo de trabalho que aconteceu na cidade?

 

Raul Mourão

Tem uma pequena intervenção. Chama Casa/Árvore/Rua e realizei na Praia do Flamengo. O vídeo Cão/Leão eu tinha vontade de projetar numa dessas fachadas cegas, que no Rio é o que mais tem. Aqui na Lapa, talvez. Esse trabalho também não acabou, porque eu nunca projetei. Eu tenho um material grande.

 

Luisa Duarte

De voltar para a cidade na mesma escala com que você...

 

Raul Mourão

Isso seria fantástico. Sonoro é na cidade. O que mais estou falando. Tem o Bate-porta, esses outros vídeos, que estão meio roteirizados, que é o da Praça Paris, do Nova Capela.

 

Luisa Duarte

Fala um pouco da questão da pintura. Eu lembro da pintura naquele trabalho em que você pintava os tapumes.

 

Raul Mourão

Os trabalhos com fórmica eu chamo de pinturas. Eles também têm a ver com observação. Um é tapume de obra, outro verde e branco é placa de estrada. Eu ia muito para São Paulo de carro, e resolvi pesquisar a sinalização ver- tical e horizontal no DNER [Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes], tirava o conteúdo e brincava só com a geometria. Essa série das fotos também me remete à pintura quando começo a organizar as áreas de cor no plano, vem dos ambulantes que vendem cerveja, que estão forrando os isopores com fita. Desenhos, grafismos e combinações alucinadas, comecei a fotografar e estou querendo trazer isso para o trabalho.

 

Luisa Duarte

Nenhum deles acaba tendo uma manualidade tradicional da pintura.

 

Raul Mourão

Tenho essa vontade às vezes de não colocar a mão. Não sei se isto está virando um padrão, se estou querendo buscar certa assepsia, ou se daqui a pouco volta a mão. A mão tem estado muito pouco presente.

Luisa Duarte

Às vezes, eu tenho a impressão de que você seca. A rua é cheia de vida, é tensa, tem energia, tem suor, tem brilho, tem calor. E a sua tradução realmente tem uma assepsia, um enxugamento, um distanciamento do sujeito, dessa vivência da experiência.

 

Raul Mourão

Essa secada é um pouco do meu jeito.

 

Ana Paula Pontes

Vira quase um pictograma.

 

Raul Mourão

Vira uma síntese. Isso está um pouco no texto “Pequenas frações”, do Paulo Venancio Filho.

 

Luisa Duarte

Você parte do mundo, impregnado de uma experiência não tão asséptica e limpa que acaba surgindo no final.

 

Raul Mourão

É a minha mão, o meu jeito.

 

Luiza Mello

É a maneira de ele apreender. Marcos Chaves, por exemplo, pega o objeto e transforma no trabalho dele.

 

Raul Mourão

Eu gosto dessa coisa da construção. Eu poderia ter comprado a grade, mas fui fazer.

 

Luisa Duarte

No texto da sua exposição Carga Viva, o Fernando Cocchiarale comenta o fato de que você, diferentemente do procedimento existente no ready-made do Duchamp, em que objetos previamente produzidos são inseridos no universo da arte, utiliza-os como referência para a criação de suas obras.

 

Raul Mourão

Por exemplo, o balcão do Bar Bracarense, que eu estive para comprar e só não comprei mesmo por falta de tempo. Liguei e perguntei: vai derrubar quando? Eu quero o balcão, segura para mim. O cara me ligou e perguntou se eu ia mesmo pegar o balcão, porque o carro do entulho ia passar. Eu ia comprar para um dia refazer. Não ia usar o velho. Ia fazer um novinho. Ia guardar em um depósito. Eu gosto de construir, de pensar a construção. Mesmo tendo o velho, eu ia chamar um cara e dizer, vamos copiar. Ia ter que comprar material, dobrar, encaixar o vidro, reforçar a madeira. Isso me interessa.

 

Carlos Vergara

O que você pretendia com o balcão do Bracarense?

 

Raul Mourão

É a memória de um lugar. Na verdade, eu queria guardar um pedaço da cidade, uma história, um clima, um ambiente. E sumiu por conta de uma reforma. Um lugar onde aconteceram histórias que eu queria guardar e não consegui guardar. Eu vou fazer qualquer dia, porque eu tenho fotos.

 

Luisa Duarte

E o trabalho Foda-se?

 

Raul Mourão

Foda-se é uma idéia que surgiu de um sonho. Na ver- dade, foi um sonho associado a um problema pessoal, uma se- paração. Ou melhor, foram três coisas: uma separação, eu escrevi “foda-se” na parede, um sonho em que tinha várias filas e o cara falava “foda-se, agora você vai para aquela outra”; e uma instituição de arte que me convidou para uma exposição. Falaram que teria uma exposição daí a duas semanas e perguntaram se eu poderia mandar um trabalho. Eu perguntei: qual a curadoria? Ah, não tem curadoria não. Mas qual é o assunto? Escultura. Mas qual o tamanho da sala? Manda qualquer coisa. Mas vocês vão cuidar do transporte? Não, você traz. Aí então pensei, já sei. Já sei o que eu vou fazer e já tem até título. Qual? Foda-se. Como? Foda-se.

CRONOLOGIA

CRONOLOGIA

Organizada por Débora Monnerat

Arte Bra Raul Mourão

1967

Nasce no Rio de Janeiro, Brasil. Durante a infância, seu contato com a arte se faz por meio de visitas a museus, com a família, e da observação de pinturas e desenhos que o pai realiza como hobby. Na adolescência, desenvolve grande interesse por cinema, literatura, música e esportes. Na segunda metade da década de 1980, participa de oficinas teóricas de cinema no Cineclube do Estação Botafogo, local que passa a freqüentar com assiduidade, e também faz cursos livres de fotografia. O contato com diferentes áreas culturais e o interesse pelas poéticas da cidade e da rua passam a ser fundamentais no desenvolvimento do seu trabalho.

 

1986

Inicia curso de graduação em comunicação, na Faculdade Hélio Alonso. No mesmo ano, inscreve-se no curso de pintura “Bloqueios criativos”, realizado por Charles Watson na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV-Parque Lage), no Rio de Janeiro. Começa a estagiar na produtora independente Multivideo, em Santa Teresa, onde tem o primeiro contato com operação de câmeras de vídeo e ilhas de edição.


1988

Transfere-se para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro. Volta a ter aulas na EAV-Parque Lage, que, neste período, é dirigida pelo crítico de arte Frederico Morais.

Ao longo dos três anos seguintes, Mourão freqüenta a escola, participando de cursos e realizando pequenas mostras. Neste período, conhece e convive com outros alunos, como Afonso Tostes, Ana Rondon, Augusto Herkenhoff, Cabelo, Cassia Castro, Daniel Feingold, José Bechara, José Damasceno, Marcelo Rocha, Marcia Thompson, Tatiana Grinberg, entre outros. Nesta época, também se aproxima de artistas da chamada Geração 80, como Alex Hamburguer, Alexandre Dacosta, Analu Cunha, André Costa, Barrão, Márcia X., Marcus André, Marcos Chaves, Luiz Zerbini, Ricardo Basbaum, Ricardo Becker, Ricardo Maurício, Roberto Tavares, entre outros.

 

1989

Faz os primeiros registros fotográficos das grades utilizadas para proteção, segurança e isolamento, que são encontradas nas ruas do Rio de Janeiro. Estes registros acabam gerando a pesquisa Grades, que Mourão desenvolve sobre a paisagem urbana ao longo dos anos seguintes.

1990

Transfere-se para o curso de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Divide ateliê, por um curto período, com José Damasceno, na Rua Taylor. Nesta época, o artista realiza as primeiras experimentações tridimensionais, produzindo esculturas e objetos como Cream Cracker e Ovo-violão. Em parceria com Damasceno, cria o artista fictício Cafew.

 

1991

Participa do 15º Salão Carioca de Arte, na EAV-Parque Lage. Apresenta três desenhos em óleo sobre papel e fica em segundo lugar na premiação do júri formado pelos críticos de arte Frederico Morais, Ligia Canongia, Marcus de Lontra Costa, Paulo Venancio Filho e Reynaldo Roels.

1992

No iníco deste ano, passa a dividir ateliê com Angelo Venosa, Cassia Castro, José Bechara e Luiz Pizarro, em um grande casarão da Rua Visconde de Paranaguá, na Glória, Rio de Janeiro.

Em março, realiza uma pequena mostra intitulada Esculturas/Desenhos, na Livraria By the Book, Rio de Janeiro. Nesta mini-individual, Mourão apresenta duas esculturas em chapas de ferro galvanizado e dois desenhos em óleo sobre papel. No mês seguinte, participa de exposição coletiva na Galeria de Arte UFF, Niterói. A convite de Ricardo Basbaum, realiza mostra com José Damasceno, no Espaço de Arte Contemporânea do Atelier Vila Isabel, Centro Cultural Noel Rosa, Rio de Janeiro.

Neste ano, participa do curso “Aspectos da sensibilidade moderna”, que o crítico de arte Paulo Venancio Filho realiza na Univer- sidade Santa Úrsula. Esta experiência se torna importante para Mourão, principalmente no que se refere à reflexão sobre a arte e o seu trabalho.

Conhece o diretor de cinema Roberto Berliner e inicia parceria de trabalho que, ao longo dos anos 1990, leva Mourão a realizar a co-direção e a direção de arte de videoclipes (de artistas como Skank, Paralamas do Sucesso, Lobão, Pedro Luís e a Parede, entre outros) e documentários (série Som da rua e A pessoa é para o

que nasce).

1993

Em parceria com os artistas plásticos André Costa e Marcos Chaves, realiza, em fevereiro, a exposição Desenhos, na Galeria IBAC Sérgio Milliet (Funarte), Rio de Janeiro. Em Curitiba, é apresentada a mostra Tatiana Grinberg e Raul Mourão, no Museu Guido Viaro.

 

Em julho, participa da mostra 11 Pontos no Espaço Público, com Carla Guagliardi, Cristina Pape, Cristina Salgado, Eduardo Coimbra, Jorge Duarte, Marcelo Lago, Maurício Bentes, Pedro Paulo Domingues, Ricardo Ventura e Simone Michelin, no Museu da República, Rio de Janeiro.

Com o artista plástico Barrão, cria o cenário do programa de TV Básico Instinto, do compositor e escritor Fausto Fawcett.

 

Com Marcos Chaves e a designer Sônia Barreto, forma a 2D, escritório de design gráfico.

Participa do 17º Salão Carioca de Arte, na EAV-Parque Lage, onde apresenta a escultura Sem título, que remete à situação da penalidade máxima do jogo de futebol. Este é o primeiro trabalho do artista que dialoga com o esporte.

 

A convite de Everardo Miranda, apresenta Humano, sua primeira exposição individual, realizada na galeria do Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, no mês de novembro. Nesta exposição, o artista apresenta trabalhos em mármore, ferro, vidro e água.

1994

Participa da exposição Preto no Branco e/ou..., na EAV-Parque Lage, que também reúne os artistas plásticos Amador Perez, Anna Maria Maiolino, Franz Weissmann, Maria do Carmo Secco, Mira Schendel e Manoel Fernandes. Mourão apresenta desenhos em óleo sobre papel. No texto publicado no folder da mostra, o crítico de arte Paulo Herkenhoff comenta sobre o trabalho do artista:

“Nesta exposição a obra de Raul Mourão parece deliberadamente propor uma confusão. A matéria bruta, dos empastes de papel oleoso, contrasta no jogo de claro/escuro gráfico da ‘figura’, linha gestual ou linha de contorno. […] Se isso é desenho, estranha é a sua opulência corpórea. Se isso é pintura, marcante é uma vontade gráfica incorporada em carga pictórica. No entanto, indagar se pintura ou desenho seria aqui dúvida ociosa, nesse processo histórico de expansão do campo das linguagens. […] Nessa obra pode ainda ser encontrada uma disparidade de humores. Há jogos visuais graves, severos. Há outros irônicos. A conseqüência centra-se num vocabulário de estranhezas, de formas primitivas, fantasmáticas.”

Nesse mesmo ano, Mourão participa de três coletivas no Paço Imperial, Rio de Janeiro: Novos Noventa; Matéria e Forma; e Escultura Carioca.

Em Matéria e Forma, Mourão apresenta as esculturas Esporte e Morte. A exposição, da qual também participam os artistas plásticos Ernesto Neto, José Bechara e Marcus André, tem curadoria do crítico de arte Luiz Camillo Osório.

1996

Realiza o trabalho Auto-retrato com maçã. Participa das exposições Rio: Panorama, no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho; Esculturas no Paço, no Paço Imperial; e Amigos do Calouste, no Centro de Artes Calouste Gulbenkian – todas no Rio de Janeiro.

Na mostra Rio: Panorama, Mourão apresenta a intervenção Casa/ Árvore/Rua, na Praia do Flamengo. Realiza desenho para o encarte do CD Nove luas dos Paralamas do Sucesso. Para este projeto, também são convidados os artistas plásticos Afonso Tostes, Beatriz Milhazes, Barrão, Daniel Senise, Ione Saldanha, Lygia Pape e Victor Arruda, que, assim como Mourão, apresentam trabalhos inspirados na Lua.

Em maio, é publicado o segundo número de O Carioca. O terceiro é lançado em setembro. No mês de novembro, Mourão realiza a sua segunda exposição individual, na Galeria Ismael Nery do Centro de Artes Calouste Gulbenkian. Apresenta quatro esculturas em ferro e uma imagem digital. Por ocasião da mostra, há um debate com o artista plástico Marco Veloso, que também escreve texto sobre o trabalho de Mourão, cujo título é “Um lugar que não existe”:

“Objetos da vida cotidiana são arrancados de seus contextos, delicadamente, por uma poética lançados no ambiente da arte, feitos em ferro e, então, agressivamente (?), inseridos numa linguagem artística de quase nonsense. Pode ser uma trave de futebol, uma vassoura, um gaveteiro ou um guardanapo sobre um copo. Se todo aquele que faz arte caracteriza-se por um estilo, este misto de violência (?) e sensibilidade são a assinatura de Raul. Mas, não há regras em arte e Raul talvez nem mesmo tenha um estilo.”

1997

É convidado por Marcos Chaves para participar do projeto “Intervenção em vitrine”, na Livraria Dantes, Rio de Janeiro. Em julho, Mourão publica o livro RUA, com edição de cem exemplares, e realiza intervenção homônima na vitrine. Na noite de inauguração, o grupo Farofa Carioca apresenta-se na calçada

em frente à livraria. Ao longo deste ano, também participam do projeto os artistas André Costa e Tatiana Grinberg.

Publicação do quarto número de O Carioca e lançamento de sua versão digital: O Carioca na Rede. Na galeria dedicada a experimentações de webart, no site, o artista realiza seu primeiro trabalho nesta mídia.

 

1998

Participa das exposições Mercoarte, no Museo Juan C. Castagnino, em Mar del Plata, Argentina; e Markt 98, organizada por Claudia Zarvos, Evangelina Seiler e Paula Terra, no bairro do Humaitá, Rio de Janeiro. Publicação do quinto e último número da revista O Carioca.

1999

Participa da exposição Retratos Falados, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-RJ), para a qual realiza trabalho sobre a personagem Capitu do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Em julho, apresenta a escultura Cartoon na mostra Fundição em Conserto, na Fundição Progresso, Rio de Janeiro. Para este trabalho, o cineasta Piu Gomes escreve o seguinte texto:

“A cena é clássica: do alto, o objeto pesado despenca em cima do personagem, que estatelado fica a ver estrelas no ar. CARTOON transporta a ironia de um dos ícones do cinema de animação para o espaço da arte. Um corpo sem cabeça, literal paletó de madeira que termina na grande caixa, pesada, desproporcional. / Estamos perante o achatamento do pensamento racional, esmagado por uma blitzkrieg emocional? Ou constatamos que a vida real pode ser tão imprevisível como o mundo do desenho animado, onde as coisas desabam sobre a gente sem aviso prévio?/ Você viu o cabeção por aí? dizia uma canção dos Golden Boys. Stop making sense, dizia uma canção dos Talking Heads. CARTOON radicaliza essa proposta sendo fiel ao universo que o originou: simples- mente, nonsense. Quebre a cabeça.”

Realiza a intervenção Termas, no evento “Almanaque 99” que acontece ao longo deste ano, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), e é organizado pelo poeta Chacal, pelo artista plástico José Bechara e pelo músico Domenico Lancelloti.

 

No mês de setembro, em parceria com Eduardo Coimbra e Ricardo Basbaum, funda e passa a coordenar o AGORA – Agência de Organismos Artísticos, que segundo os integrantes do grupo, foi criado com o objetivo de dinamizar e trazer alternativas à produção e circulação da arte contemporânea no Rio de Janeiro. O AGORA realiza exposições e projetos de artistas brasileiros e estrangeiros, criando, no Rio de Janeiro, uma nova proposta para a apresentação, a reflexão e o debate sobre a produção contemporânea.

Na Fundição Progresso, realiza a exposição Sintético, produzida pelo AGORA, na qual apresenta as obras 5 pinturas; Sente-se; Alcoólatra: Indivíduo dado ao vício do álcool; Patas; Bolas; MAM; Carro/Árvore/Rua; e Barcos/Cabeça. No folder publicado, são apresentados trechos de uma conversa, pela secretária eletrônica, entre Mourão e a artista plástica Laura Lima, que também inaugura exposição no local. Em uma das mensagens, Mourão cita um trecho do livro Quincas Borba, de Machado de Assis, que remete ao universo e pensamento presentes em seu trabalho:

“Quem conhece o solo e o sub-solo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapête, um guarda-chuva, são ricos de idéias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra.”

Em novembro, apresenta exposição com Ana Linneman, Fernanda Gomes e Marcos Chaves, na Mercedes Viegas Escritório de Arte, no Rio de Janeiro. Participa da mostra A Imagem do Som de Chico Buarque, no Paço Imperial, com a obra Surdo-mudo, criada a partir da música “Vai passar”.

No mês seguinte, participa da exposição Os 90, no Paço Imperial, a convite da artista plástica Iole de Freitas, uma das curadoras da mostra. Apresenta a instalação Não realizados, composta por peças que fazem parte de projetos de grande escala desenvolvidos por Mourão.

2000

Em maio, Mourão, Eduardo Coimbra, Ricardo Basbaum e Helmut Batista fundam e passam a coordenar o Espaço AGORA/CAPACETE, fruto da união dos grupos AGORA e CAPACETE entretenimentos, localizado na Rua Joaquim Silva, 71, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, onde o artista também passa a ter um ateliê. A coordenação de produção fica a cargo da historiadora Luiza Mello. No evento de inauguração, o grupo Chelpa Ferro apresenta a performance A garagem do gabinete de Chico.

Em junho, o AGORA inicia a publicação de uma coluna semanal de arte contemporânea, no site super11.net. Para a coluna, Mourão escreve cinco textos. Participa da mostra La Imagen del Sonido de Chico Buarque, no Centro Cultural Borges, em Buenos Aires, Argentina.

Em agosto, Mourão organiza a exposição de Tatiana Grinberg, primeira artista a ocupar a galeria do Espaço AGORA/CAPACETE.

Participa, no mês de novembro, da mostra A Imagem do Som de Gilberto Gil, no Paço Imperial, na qual apresenta, pela primeira vez, uma obra da série Grades, intitulada Protótipo.

Participa da criação da Tecnopop, produtora de design multimídia, com os designers Marcelo Pereira e Sônia Barreto, o jornalista Luis Marcelo Mendes e o empreendedor Rodrigo Machado. Em setembro de 2003, o designer e arquiteto André Stolarski passa a integrar o grupo de sócios da empresa.


2001

Em março, organiza a individual de Fernanda Gomes, no Espaço AGORA/CAPACETE. Escreve o texto “Visita à camarada F.”, sobre o trabalho da artista, que é publicado no site super11.net. Por ocasião da exposição, Mourão participa de um debate com Paulo Venancio Filho.

A convite de Márcia X. e Ricardo Ventura, apresenta, no mês de maio, a obra Para montar na exposição Orlândia, em Botafogo, Rio de Janeiro.

Em julho, o Espaço AGORA/CAPACETE é selecionado pelo programa Petrobras Artes Visuais. O projeto aprovado inclui a realização de seis exposições, a publicação de dois números da revista item e a construção de um site.

Realiza a coordenação geral do evento multimídia “Free zone”. Com curadoria de Chacal, o projeto reúne 34 artistas plásticos, poetas, músicos e DJs em apresentações no Rio de Janeiro, em Curitiba, em Porto Alegre e em São Paulo, nos meses de julho e agosto. Participam do evento Arnaldo Antunes, Autoramas, B Negão, Cabelo, Chelpa Ferro, DJ Dolores e Mr. Jam, DJ Patife, Fausto Fawcett, Franklin Cassaro, Lia Menna Barreto, Márcia X., Michel Melamed, Trio Mocotó, Sonic Junior, Viviane Mosé, entre outros.

A pesquisa Grades/Rio de Janeiro/2000 é selecionada pelo 6º Programa de Bolsas do RioArte, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Com o apoio da bolsa, Mourão desenvolve a pesquisa durante um ano (de setembro de 2001 a setembro de 2002), dedicando-se a registrar as grades no espaço urbano do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, de São Paulo e de Vila Velha. A partir da pesquisa, o artista realiza esculturas, instalações e séries fotográficas, que são apre- sentadas em exposições coletivas e individuais.

É convidado por Anna Bella Geiger para participar do encontro que a artista realiza para o projeto “Diálogos”, no Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro.

Em outubro, realiza a vídeo-performance Artistas, na III Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, na qual retoma a idéia desenvolvida em 7 artistas. Mourão convida os artistas plásticos Lucia Koch, Mário Ramiro e Nelson Rosa para participar da performance realizada na noite de inauguração, no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Os três são pendurados, com equipamentos de alpinismo, nas paredes do espaço expositivo, e permanecem assim por uma hora, enquanto o espaço fica aberto para os convidados. A ação é registrada por várias câmeras. No dia seguinte, posicionados nos mesmos locais e presos com os mesmos equipamentos, encontram-se monitores de vídeo, que apresentam os registros de cada artista, com duração de 58 minutos. Mourão também apresenta a escultura A grande área na mostra de intervenções urbanas, realizada no Parque Sirotski Sobrinho.

No mesmo mês, Mourão apresenta a instalação O carro/A grade/O ar na mostra Panorama da Arte Brasileira, com curadoria de Paulo Reis, Ricardo Basbaum e Ricardo Resende, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Participa da exposição Outra Coisa, realizada pelo AGORA, no Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha, junto com Brígida Baltar, Eduardo Coimbra, João Modé e Ricardo Basbaum. No texto de apresentação da mostra, o crítico de arte Paulo Sergio Duarte escreve:

“O veio reflexivo da arte contemporânea no Brasil conseguiu se manifestar, com evidente contundência plástica, numa poética rica e generosa em relação ao

espectador, sem abrir mão da complexidade necessária para a exploração crítica de limites e fronteiras. É dentro desta tradição recente que esses trabalhos se inscrevem. A riqueza individual de cada uma das obras é evidente e caberia uma longa dissertação para apontar suas contribuições, e no entanto, cabe sublinhar um traço comum: a pesquisa formal desses artistas atreve-se a romper sem medo certos tiques recentes da arte brasileira que amesquinham sua história.”

Participa da exposição A Imagem em Jogo, no Espaço Cultural Contemporâneo Venancio, Brasília; e da Mostra Brasil + 500, no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, Argentina, na qual apresenta a escultura Cartoon. É convidado pela curadora Nessia Leonzini para as exposições Coleções I, na Galeria LGC, Rio de Janeiro, e Coleções II, na galeria Luisa Strina, São Paulo.

 

Em novembro, participa da exposição A Imagem do Som de Antonio Carlos Jobim, na qual apresenta a obra Ela é carioca.

2002

Com Marcelo Pereira, cria a camisa oficial do bloco de carnaval Suvaco do Cristo, para a qual realizam o desenho A chegada de Osama no carnaval do Suvaco.

 

Em março, a exposição Love’s House, idealizada por Mourão e produzida pelo AGORA, reúne 13 artistas: Brígida Baltar, Carla Guagliardi, Chelpa Ferro, Eduardo Coimbra, Fernanda Gomes e Fernando Gerheim, João Modé, Laura Lima, Lívia Flores, Marcos Chaves, Ricardo Basbaum, Ricardo Becker, Tatiana Grinberg e o próprio Mourão. Durante uma semana, simultaneamente à XXV Bienal de São Paulo, cada artista ocupa um quarto do terceiro andar do hotel Love’s House, que fica ao lado da sede do AGORA, no bairro da Lapa. No quarto 303, Mourão apresenta Área de queda, instalação da série Grades, composta por três peças em ferro pintado de branco.

Realiza o vídeo-documentário Cão/Leão, que apresenta o dia de um cachorro vira-lata. Segundo Mourão, “o vídeo é um paródia de reality show que transforma a rotina do vira-lata. De figura desprezada e abandonada, o cachorro se transforma em personagem principal de um filme, centro das atenções de uma equipe de filmagem. Do anonimato ao estrelato em apenas 15 minutos”. O vídeo é dirigido por Mourão em parceria com a diretora de cinema Paola Vieira, com câmera de Fernando Oliveira e edição de Leonardo Domingues.

Em abril, escreve texto para a exposição Estímulo Puro, de João Modé, que encerra as atividades do AGORA. Ao longo de quase três anos, a agência realizou trabalhos com os artistas Antoni Muntadas, Brígida Baltar, Carlos Bevilacqua, Chelpa Ferro, Fernanda Gomes, Foreign Investment, João Modé, Jordan Crandall, Karin Schneider, Laura Lima, Livia Flores, Nicolás Guagnini, Tatiana Grinberg, e com os críticos e curadores Claudio Dacosta, Glória Ferreira, Ligia Canongia, Paulo Herkenhoff, Paulo Sergio Duarte, Paulo Venancio Filho e Ronaldo Barbosa.

Em maio, realiza a exposição Portátil – 98/02, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, sua primeira individual em São Paulo. Publica o texto “Veículo rastreado”, de

sua autoria, no folder da mostra. Apresenta o objeto A grande área, o díptico Cartões, as esculturas Surdo-mudo e Banco, o vídeo-objeto Artistas/Mário Ramiro e uma escultura da série Grades.

Em junho, apresenta a exposição Carga Viva, na Celma Albuquerque Galeria de Arte, sua primeira individual em Belo Horizonte. O artista José Bechara realiza mostra concomitante na galeria. Mourão apresenta esculturas e serigrafias

da série Grades, o vídeo-objeto Artistas/Lucia Koch e os trabalhos Cartões e Sem braços e sem cabeça. No texto do catálogo das mostras, o crítico de arte Fernando Cocchiarale, escreve:

“Ao contrário da lógica do ready-made, as apropriações feitas por Mourão restringem-se, em sua maioria, à esfera dos materiais de trabalho, determinada, com freqüência, pela analogia com a matéria-prima usada nos objetos reais que servem de referência às recriações do artista.

[…] Ele quase nunca utiliza objetos previamente produzidos. Toma-os, antes, enquanto referência para seu trabalho, jamais como modelos. No entanto, não existe aqui, também, por oposição ao ready made, qualquer proximidade com a valorização do artesanato, da mimesis, ou de outras formas de representação.”

Em setembro, é lançado o livro Love’s House, que apresenta o registro da exposição e textos de Mourão, de Fausto Fawcett e do artista plástico Luis Andrade, além de uma conversa deste com o psicanalista Luiz Alberto Py. O lançamento ocorre na Livraria Dantes, Rio de Janeiro, e na Galeria Vermelho, São Paulo. Sobre o trabalho Área de queda, apresentado pelo artista na mostra, Luis Andrade escreve:

“O quarto é branco. As obras dentro dele funcionam para nós enquanto paráfrases do espaço externo, através da aplicação do conceito de ‘fechamento’, um jargão profissional muito utilizado pela indústria da segurança que lida com grades. O artista, cuja dicção criativa parte do espaço da cidade, apropria-se desse conceito para a produção de obras escultóricas – valendo-se, para isso, de uma atividade em alta no atual mercado de trabalho, a serralheria. Aqui, temos uma extensão material e temporal dessa prática, prismada por uma geometria pública, no campo mais ampliado de abordagem da realidade escultórica contemporânea. Através dessas obras, fica claro que a rua é seu ponto de partida, porém com a sua violência privada.”

No Rio de Janeiro, Mourão também participa das exposições coletivas Caminhos do Contemporâneo 1952/2002, no Paço Imperial; A Cultura em Tempos de AIDS, no Museu Nacional de Belas Artes; e Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna. Esta última é apresentada, em seguida, no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-Bahia).

2003

Em agosto, o artista apresenta a exposição Cego só Bengala, no Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo (USP). Mourão expõe a série de fotografias drama.doc e esculturas, realizadas a partir da pesquisa Grades. No catálogo da mostra, a crítica de arte Daniela Labra escreve:

“Numa paródia provocativa, Mourão recorta certa situação do panorama da urbe e a cola no espaço físico reservado à Arte. Do seu particular fascínio com grades, o artista explora a questão social embutida na histérica importância dada a essas estruturas e principalmente o lado plástico do absurdo anti-estético de muitas construções que acabam tornando-se ‘sub-arquiteturas’ em nome da segurança reforçada. A cidade nos serve diariamente um banquete de visualidades mas, acostumados com aberrações ao redor, passeamos incólumes pelas vias congestionadas de sujeiras e maravilhas, esquecidos de que tudo o que se vê é produto e conseqüência de nós mesmos.”

No Rio de Janeiro, Mourão participa da mostra inaugural da galeria LURIXS Arte Contemporânea e das exposições Infantil, na galeria A Gentil Carioca; Nano Exposição, na Arte em Dobro; e Sidaids, realizada pelo SESC Rio. Em Vila Velha,

participa da mostra O Sal da Terra, no Museu Vale do Rio Doce.

Em novembro, apresenta a exposição Pequenas Frações, primeira individual realizada pela galeria LURIXS Arte Contemporânea. Nesta mostra, Mourão reúne trabalhos elaborados a partir de imagens, sinais, símbolos e marcos do cotidiano da cidade e de sua própria vida. Caderno de anotações, por exemplo, é uma animação digital, de vinte minutos de duração, feita a partir de desenhos retirados de seus cadernos pessoais. Mourão também apresenta as serigrafias Maracanã enterrado, EsculturaparaWaly e Mata-mata, duas esculturas da série Boxer e duas pinturas em tinta automotiva e fórmica sobre MDF. O crítico de arte Paulo Venancio Filho escreve o texto de apresentação, que é publicado no folder da mostra.

2004

A convite do crítico de arte e curador Agnaldo Farias, apresenta a instalação Entonces, da série Grades, na mostra SP 450 Paris, no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo. Farias escreve o texto “Signos ásperos”, sobre a obra de Mourão.

Em abril, Mourão realiza nova montagem da instalação Entonces no Paço Imperial. Sobre a exposição, o crítico de arte Luiz Camillo Osório escreve:

Entonces, que é o sugestivo título da exposição, parece se desdobrar em uma pergunta sobre o que fizemos de nosso espaço urbano. Nós nos protegemos e nos enclausuramos, este é o paradoxo de uma cidade em pânico. […] Assim como em outros momentos de sua trajetória, é também a ambivalência entre signo e forma algo determinante nesta obra. A desconstrução do signo e a constituição da forma vão se processar no deslocamento ‘das grades’ para a galeria, na perturbação da funcionalidade, na produção de um não-lugar.”

Convidado para a segunda edição dos projetos especiais do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, o artista apresenta, em junho deste ano, a exposição drama.doc, composta por fotografias e esculturas. Sobre o trabalho de Mourão, o crítico de arte e cura- dor Guilherme Bueno escreve:

“Tomada a visualidade como ato afirmativo, o que se coloca, de certo modo, é um desafio histórico. Pois se a grade constituía o instrumento renascentista de vislumbre de uma ordem cósmica [a perspectiva] ou, no caso de um artista moderno como Mondrian, a expressão depurada rumo à libertação do sujeito no mundo através do olhar, aqui ela parece fazer retornar essa ansiedade em contramão: não é mais o objeto de atravessamento em direção a conteúdos puros, e sim a materialidade efetiva daquilo que nos cerca.”

Neste ano, Mourão participa da coletiva Casa: Uma Poética do Espaço na Arte Brasileira, com curadoria de Paulo Reis, no Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha.

Também é convidado para as mostras Arte Contemporânea: Uma História em Aberto, com curadoria de Sônia Salzstein, no Galpão Roque Petroni; e Heterodoxia,

no Memorial da América Latina, ambas em São Paulo. No Rio de Janeiro, participa das exposições Novas Aquisições 2003 – Coleção Gilberto Chateaubriand, no MAM- RJ; Urbanidades, no Teatro Odisséia; e Arquivo Geral, realizada, no Jardim Botânico, por seis galerias cariocas durante o período da XXVI Bienal de São Paulo. Apresenta um conjunto de nove trabalhos na feira “Arte Lisboa”, em Portugal, no estande da Celma Albuquerque Galeria de Arte.

Representado pelo Gabinete de Arte Raquel Arnaud, integra, no mês de dezembro, o “Art projects” da feira “Art Basel Miami Beach”, no qual apresenta a instalação

Casa/Trincheira, no Collins Park.

2005

Em março, participa da exposição Rampa – Signaling New Latin American Art Initiatives, no ASU Art Museum, Arizona, Estados Unidos. A convite do grupo Chelpa Ferro, apresenta a obra Lulaeletrônico, na fachada da Galeria Vermelho, São Paulo, durante a exposição realizada pelos artistas, no mês de setembro.

No Rio de Janeiro, participa das mostras Razão e Sensibilidade, do projeto “Encontro com arte 2005”; e Arte Brasileira Hoje, no MAM-RJ.

No mês seguinte, realiza a direção de arte do show, do CD e do DVD Hoje, dos Paralamas do Sucesso. Cria o cenário eletrônico da turnê, composto por vídeo-projeções a partir de trabalhos de sua autoria e dos artistas plásticos Emmanuel Nassar e Nicolás Robbio.

É convidado pelo Museu Lasar Segall para participar do “VIII Leilão de pratos para a arte”, realizado em outubro deste ano.

Em novembro, realiza a exposição Luladepelúcia, na LURIXS Arte Contemporânea. A partir da imagem do presidente Lula, Mourão produz industrialmente cem bonecos de pelúcia, além de desenhos e trabalhos gráficos em parceria com os artistas Barrão, Carlos Vergara, Fabio Cardoso, Lenora de Barros, Luiz Zerbini e Marcos Chaves. O publicitário André Eppinghaus, o artista plástico André Sheik, Daniela Labra, Fausto Fawcett, Marcelo Pereira, o crítico de arte Paulo Reis e Piu Gomes escrevem textos sobre o trabalho. A série de trabalhos apresentada na mostra, que tem repercussão imediata na mídia nacional, começou a ser pensada pelo artista quando o presidente tomou posse, em janeiro de 2003.

Participa da exposição Espace Urbain x Nature Instrinsèque, no Espace Topographie de l’Art, em Paris, França. Com curadoria de Evangelina Seiler, a mostra reúne obras de 14 artistas brasileiros além de Mourão: Brígida Baltar, Cao Guimarães, Eduardo Srur, Fabiana de Barros e Michel Favre, Gabriela Greeb, João Modé, Lia Chaia, Lia Menna Barreto, Lucia Koch, Marcos Chaves, Maria Carmem Perlingeiro, Rivane e Sergio Neuenschwander.

2006

Em fevereiro, organiza, com a crítica de arte Luisa Duarte e os artistas Barrão e Lucia Koch, o grito de carnaval do DJ Surpresinha, no clube de Remo do Botafogo Futebol e Rega- tas, Rio de Janeiro.

 

Em maio, realiza a exposição Luladepelúcia e Outras Coisas na Galeria Oeste, São Paulo, apresentando nova série de personagens ainda inspirados na figura do presidente. Mourão convida vinte artistas para realizar os desenhos em parceria com ele: Afonso Tostes, Artur Lescher, Barrão, Carlito Carvalhosa, Carlos Bevilacqua, Daniel Steegmann, Ding Musa, Eduardo Coimbra, Fabio Cardoso, Guto Lacaz, José Spaniol, Leda Catunda, Lenora de Barros, Marco Gianotti, Marcos Chaves, Nina Moraes, Paulo Climachauska, Renata Lucas, Rochelle Costi e Sergio Romagnolo.

Em julho, participa do evento “Multiplicidade”, no Centro Cultural Telemar, Rio de Janeiro, no qual se apresenta com o músico Sonic Junior. Ainda neste mês, apresenta-se com o DJ Surpresinha no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, em Recife, por ocasião da inauguração da mostra do Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas.

Participa das exposições Dwell, no ASU Art Museum, Arizona, Estados Unidos; II Bienal Internacional Ceará de Gravura, no Museu de Arte Contemporânea/Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza; É HOJE na Arte Brasileira Contemporânea – Coleção Gilberto Chateaubriand, no Santander Cultural, Porto Alegre. No Rio de Janeiro, apresenta trabalhos nas mostras Futebol É Coisa de 11, na Galeria do Lago, Museu da República; Universidarte XIV, na Universidade Estácio de Sá; e Arquivo Geral, com curadoria de Paulo Venancio Filho, no Centro de Arte Hélio Oiticica.

Arte Bra Raul Mourão
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CRÉDITOS

CRÉDITOS

TÍTULO DO PROJETO

ARTE BRA Raul Mourão

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Luiza Mello

Marisa S. Mello

DESIGN

Tecnopop - Sonia Barreto

PROJETO E PRODUÇÃO

Automatica Edições

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO

Arthur Moura

PRODUÇÃO EXECUTIVA

Orbita - Débora Monnerat

REVISÃO

Duda Costa

TRATAMENTO DE IMAGEM

João Doria

VERSÃO INGLÊS

Beatriz Bastos

Renato Rezende

VERSÃO INGLÊS
"PEQUENAS FRAÇÕES" E 
"OS SIGNOS ÁSPEROS"

Steve Berg

TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

Marisa S. Mello

PRODUÇÃO GRÁFICA

Sidnei Balbino

FOTOGRAFIA

Adriana Pittigliani

Alexsandro Souza

Beto Felício

Cristiana Isidoro

Daniel Mansur

Ding Musa

Edouard Fraipont

Edson Chagas

Eduardo Coimbra

Everton Ballardin

Fabio Ghielder

Fernanda Luz

Henrique Pereira

Leonardo Santos

Mary

Paulo Barreto

Raul Mourão

Vicente de Mello

Vivia 21

Wilton Montenegro

MODELOS 3D

Estúdio Consequência

André Lobo

GESTÃO

Marisa S. Mello

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