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Consolidando seu trabalho editorial, a Automatica lançou em 2010 o quinto volume da sua coleção ARTE BRA. Desta vez, porém, com um diferencial: pela primeira vez, a coleção se descola do trabalho de artistas e vislumbra a obra de um dos principais críticos brasileiros de arte, o pernambucano Moacir dos Anjos.

O livro contempla a trajetória profissional de Moacir a partir de seus textos mais marcantes produzidos nas últimas décadas. Entre os contemplados pelo olhar acurado do crítico, temos os trabalhos de Antonio Dias, Cildo Meireles, Brígida Baltar, Chelpa Ferro, Efrain Almeida, Ernesto Neto, Gil Vicente, Gilvan Samico, Lucia Koch, Rivane Neuenschwander, Rosângela Rennó, entre outros.

SOBRE O ARTISTA

MOACIR DOS ANJOS nasceu na cidade do Recife, em 1963. Formado em Economia, é mestre pela Universidade de Campinas e doutor pela Universidade de Londres. Atua no setor cultural desde a segunda metade dos anos 1990, como pesquisador, curador e gestor na área de produção contemporânea em artes visuais.​

Além de pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco desde 1990, foi diretor do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM) entre 2001 e 2006 e pesquisador visitante no centro de pesquisa Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN), na University of the Arts London, entre 2008e 2009.

Foi curador da 29a. Bienal de São Paulo (2010) e cocurador da participaçnao do Brasil como país convidade na ARCO - Feira de Arte Contemporânea (2008), em Madri, e da 7a. edição da Bienal do Mercosul (2007), em Porto Alegre. Realizou a curadoria do 30o. Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2007), e integrou a equipe de coordenação curatorial do Programa Itaú Cultural Rumos Visuais, entre 2001 e 2003.

Tem ensaios e textos críticos sobre artistas publicados em livros, catálogos e revistas, no Brasil e no exterior. É autor da Local/Global: arte em trânsito (Rio de Janeiro, Zahar, 2005) e de Invenção de mundos. Coleção Marcantonio Vilaça (Recife, Instituto Cultural Banco Real, 2006).

SUMÁRIO

CONEXÃO ARTES VISUAIS

Sérgio Mamberti

APRESENTAÇÃO

Luiza Mello e Marisa S. Mello
 

INTRODUÇÃO

Moacir dos Anjos

CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR QUE NÃO ACABA

Antonio Dias
 

A ILUSTRAÇÃO DA ARTE / CIDADE / MODELO

Antonio Dias

A ESPESSURA DA COLETA

Brígida Baltar

O BARULHO DO MUNDO

Chelpa Ferro

A INDÚSTRIA E A POESIA

Cildo Meireles

BABEL

Cildo Meireles

PRIMEIRO CEGAM, DEPOIS ILUMINAM

Delson Uchôa

DO QUE NO CORPO É FALTA, PEDAÇO OU DESAPARECIMENTO

Efrain Almeida

AS DOBRAS, AS VOLTAS, OS ACÚMULOS E OS VAZIOS DO TRABALHO

Ernesto Neto

OS INIMIGOS

Gil Vicente

O OUTRO LADO DO RIO

Gilvan Samico

O TEMPO IMPRECISO QUE SE CHAMA DE AGORA

José Rufino

A PRÁTICA DOS CONJUNTOS

Lucia Koch

ARMAZÉM DE TUDO

Marcelo Silveira

LONGE OU PERTO DEMAIS PARA SABER DO QUE SE TRATA

Marepe

INVENTÁRIO DE GESTOS

Mauro Piva

ADORAÇÃO

Nelson Leirner

O ATELIÊ COMO ARQUIVO

Paulo Bruscky

OLHAR A POEIRA, POR EXEMPLO

Rivane Neuenschwander

MESMO DIANTE DA IMAGEM MAIS NÍTIDA, O QUE NÃO SE CONHECE AINDA

Rosângela Rennó

INVENÇÃO, MEMÓRIA, SONHO

Valeska Soares

UMA ÉTICA DA ILUSÃO

Vik Muniz

BIBLIOGRAFIA

CONEXÃO ARTES VISUAIS

CONEXÃO ARTES VISUAIS

Sérgio Mamberti  |  Presidente da Funarte

O Conexão Artes Visuais possibilita a artistas, curadores, pesquisadores e espectadores participar de uma grande rede de troca de ideias e experiências no campo das artes visuais. O programa — realizado pela Funarte com patrocínio da Petrobras, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura — já se disseminou por todo o Brasil, alcançando grandes centros urbanos e municípios menores.

 

Em 2010, os trinta projetos viabilizados pela segunda edição do programa ampliaram esse intercâmbio. Dois dos proponentes contemplados publicaram seu próprio edital para convocar propostas de todo o país, uma novidade que torna o Conexão ainda mais democrático. Quarenta cidades brasileiras recebem exposições, intervenções, oficinas e debates. Além disso, livros e websites reúnem textos críticos e acervos artísticos, de forma a fomentar a documentação e a reflexão.

 

Esse conjunto reflete a diversidade de linguagens hoje presente nas artes visuais, da fotografia ao grafite, da videoarte à instalação. Os artistas e produtores contemplados promovem eventos de caráter performático, ações de difusão da cultura digital, pesquisas que integram arte e ciência, além de atividades que fazem circular bens culturais e seus criadores por diversas regiões do país. As ações são registradas pelos proponentes em textos, fotos e vídeos. O material abastece o site do Conexão e servirá de base para a produção de um catálogo, o que garante a difusão dos resultados para um público ainda mais abrangente.

 

A primeira edição do programa viabilizou, em 2008, cerca de 300 atividades, oferecidas gratuitamente a mais de 80 mil pessoas, em 42 cidades. Para nós é um grato prazer saber que muitos desses projetos continuam a evoluir, incentivando o trabalho de outros artistas e atraindo novos públicos para as artes. Esperamos que o livro ARTE BRA Crítica Moacir dos Anjos siga essa trilha de sucesso, propiciando cada vez mais olhares diversos para as artes visuais no Brasil.

APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Luiza Mello e Marisa S. Mello

ARTE BRA Crítica Moacir dos Anjos é um livro composto por 22 textos sobre as obras de diversos artistas brasileiros abordados individualmente. O autor, o crítico de arte Moacir dos Anjos, realiza análises da criação artística contemporânea sob uma ótica multidisciplinar, destacando as técnicas e  os  materiais  utilizados nos trabalhos e articulando-os com os conceitos propostos pelos artistas. Seu olhar nesta coletânea se volta para trabalhos ou práticas artísticas que se valem de modos de expressão variados, a partir dos quais a arte pode ser entendida como exercício que não termina nunca, pois está em constante processo de ressignificação. Como resultado do exercício de escrever sobre arte, o autor publicou textos críticos em livros, catálogos e revistas, no Brasil e no exterior. Muitos dos que estão aqui reunidos já foram publicados anteriormente em contextos relacionados com a apresentação, em exposições, dos trabalhos mencionados, várias delas ocorridas durante o período em que Moacir dos Anjos foi Diretor do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), no Recife, entre os anos de 2001 e 2006. Em seu conjunto, estes ensaios permitem a qualquer leitor interessado mapear e aprofundar-se no universo artístico brasileiro.

 

Esta visão intersetorial do autor decorre de sua múltipla inserção nos meios artísticos, seja através das diversas curadorias de exposições individuais e coletivas que realizou, como a da 29a Bienal de São Paulo, do 30º Panorama da Arte Brasileira, da 7ª Bienal do Mercosul e a coordenação curatorial do programa Itaú Cultural Rumos Visuais, seja como pesquisador na área de artes visuais, na Fundação Joaquim Nabuco e no centro de investigação Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN) da University of the Arts London. Mesmo sua atuação enquanto pesquisador é feita por meio de diferentes visadas convergentes, tendo o autor formação acadêmica, desde a graduação até o doutorado, na área de economia. Além do contato próximo com as expressões artísticas propriamente ditas, a experiência como diretor de uma instituição cultural como o MAMAM acrescentou ao autor o ponto de vista do gestor, que lida em seu cotidiano com a economia da arte, em seu sentido mais abrangente.

 

Os textos desta coleção formam um conjunto representativo da imersão interpretativa que Moacir dos Anjos realiza ao travar contato com o trabalho artístico, potencializando, através das palavras, a experiência sensível que objetos e práticas artísticas engendram em cada um de nós.

 

Sendo parte da coleção ARTE BRA, este volume estará dispo- nível para download gratuito no site www.automatica.art.br, como mais uma contribuição afinada com o objetivo principal deste projeto, que é aproximar a arte contemporânea brasileira do público.

INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

Moacir dos Anjos

Ever tried? Ever failed? No matter. Try again. Fail again. Fail better.

 

Samuel Beckett, Worstward Ho!

 

Este livro resulta de dez anos de contato próximo com a produção contemporânea em artes visuais, seja como pesquisador, curador ou gestor, período durante o qual a reflexão escrita sem- pre foi parte central e alinhavadora de atividades tão distintas e por vezes sobrepostas. A motivação para fazê-lo não foi, entretanto, a vontade da reunião exaustiva de ensaios que, em sua origem, responderam a demandas variadas; mas a de apresentar um recorte preciso desse conjunto disperso, ainda que os textos escolhidos tenham sido inevitavelmente informados pelos não incluídos. Da seleção feita, não constam, desde logo, escri tos sobre as características institucionais que singularizam o funcionamento do campo das artes visuais no Brasil. Também não estão presentes ensaios em que aspectos específicos de história ou de teoria da arte foram tratados. Mesmo textos em torno de questões que são comuns a grupos de artistas, pela partilha de experiências em uma época ou em uma localidade, não foram considerados. Privilegia-se tão somente, nos escritos ora agrupados, a reflexão sobre a produção individual de artistas brasileiros.1

 

Cada um dos textos contidos neste volume foi escrito em resposta a uma situação específica. Na maior parte das vezes, entrelaçados a projetos de curadoria, simultaneamente informando a configuração de exibições e servindo como sua apresentação discursiva em catálogos. São ocasiões em que o contato com o trabalho do(a) artista é por natureza estreito: quer no sentido de proximidade física daquilo do que se fala, quer no sentido de delimitação precisa, movida por razões curatoriais variadas, do que se torna objeto da escrita. No limite, alguns dos textos assim escritos se tornam demasiadamente colados aos ambientes e momentos que lhes deram origem e contorno, não fazendo sentido transportá-los para um outro contexto editorial, restrição que foi aqui observada. Outros ensaios, embora também produzidos para publicações que acompanharam mostras de determinado(a) artista, não carregam essa marca, demonstrando menos apego à seleção de obras e às situações em que estas foram então exibidas, tornando-os, assim, menos atrelados a um lugar e a um instante definidos. Os demais escritos selecionados foram resultado de comissionamentos para livros, revistas ou conferências, situações em que o contato com a produção de cada artista é mais abrangente e menos restrito, portanto, a um recorte específico.

 

Reunir em livro textos publicados em situações tão díspares e apartadas no tempo só se justifica, porém, pelo fato de todos partilharem algo que os aproxima uns dos outros; algo que, para cada autor, se torna a marca recorrente, embora nem sempre consciente, do ofício de fazê-los. Nos ensaios agora coletados, a reflexão sobre um trabalho artístico (seja uma pintura, uma instalação ou um gesto, pouco importam aqui as diferenças) é sempre, a despeito de sua natureza ou função imediata, um ato de aproximação agonística de alguma coisa que recusa tradução plena em um modo de expressão (a palavra escrita) que não é aquele com que primeiro foi apresentado ao mundo, e por meio do qual reclama a sua natureza ímpar. É um ato que se destina, portanto, a um inevitável fracasso, e cujo praticante não pode almejar mais do que, a cada nova tentativa de realizá-lo, “falhar melhor” e de modo mais afirmativo e claro. Os ensaios aqui reunidos são testemunhos, então, da busca por ocupar esse intervalo impreenchível que aparta a escrita daquilo sobre o qual e pelo qual se escreve. Expressam tentativas, desde sempre insuficientes, de entendimento verbal da obra de artistas que não se valem primordialmente da palavra para exprimir-se, mas do estímulo visual e ainda, com frequência crescente, do chamado aos sentidos do tato, da escuta e do olfato.

 

Cada um dos textos que compõem essa publicação também exercita, por meio de um discurso que se pretende interessado e crítico, e sem escamotear, em tempo algum, a paixão que os anima, o enfrentamento direto com a criação artística, evitando a tentação de circunscrevê-la e reduzi-la ao ambiente cultural de onde emerge e do qual é parte. Isso não implica, contudo, qual- quer reivindicação de autonomia da obra de arte perante outras esferas da vida, mas o desejo de afirmar que nela própria estão contidos, como locução articulada de símbolos, um tempo e um lugar específicos, aos quais ela adere ou com os quais se atrita. De modo menos ou mais explícito, os vários ensaios aqui reunidos sugerem que é na obra mesma, e não no que lhe é supostamente externo, que devem ser buscados os nexos que a fazem parte de um entorno estendido. Uma razão mais prosaica – mas nem por isso de menor importância – que autoriza republicar em conjunto textos escritos no espaço de uma década para contextos diversos é o fato de, em sua maior parte, terem sido primeiro editados em publicações de acesso restrito. Este volume, nesse sentido, é também índice do quão pouco adensado é o meio das artes visuais no Brasil, o qual involuntária e perversamente permite aproximar escritos antigos daqueles que proclamam ineditismo.

 

Ao contrário do que é comum fazer na introdução de seletas como esta, deixa-se aqui claro que todos os textos reproduzidos foram revistos e em alguma medida modificados pelo autor. Nunca em termos dos juízos críticos neles originalmente contidos, tampouco em relação aos argumentos utilizados para emiti-los; mas com o intento de precisar passagens agora consideradas insuficientemente claras, implicando correções ou mesmo supressão e adição de frases. Ajustes também foram feitos em trechos em que o deslocamento de contextos diversos de publicação para o deste livro tornou seus sentidos truncados.

 

Agradecimentos são devidos a todas as instituições e projetos editoriais em cujo âmbito estes escritos tiveram origem, bem como aos diversos amigos e colegas que os leram em suas primeiras versões e contribuíram para que ao menos algumas de suas inconsistências fossem suprimidas. Antes de tudo, porém, gratidão e reconhecimento são aqui expressos a todos os artistas cujas obras, embora sejam a razão de existir de cada um dos textos deste livro, resistem à tradução certa ou inteira em palavras.

 

1  São exemplos de textos do autor que, por sua natureza, não couberam no escopo desse volume: Dinamismo e crise dos museus de arte no Brasil. Revista Z Cultural, ano III, n. 1, 2006. Disponível em:  <http://www.pacc.ufrj.br/z/ano3/01/artigo02. htm>; Desmanche de bordas: notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil. In: HOLLANDA, Heloisa B. de; RESENDE, Beatriz (Org.). Artelatina: cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000; Contraditório. In: Contraditório. Panorama da arte brasileira. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2007; Arte menor, gambiarra e sotaque. In: Depois do muro. Recife: Editora Massangana, 2010. Ensaios sobre artistas estrangeiros também não foram aqui, em função do contexto editorial desta coletânea, considerados para publicação.

CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR...

CONSTRUÇÃO DE UM
LUGAR QUE NÃO ACABA

Antonio Dias

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

A obra de Antonio Dias é múltipla. Não se reduz a estilos, tampouco é fiel a técnicas ou à eleição de temas. Ao longo de quase cinquenta anos, o artista fez pinturas, objetos, instalações, disco, fotografias e filmes, promovendo um desmonte rigoroso de qualquer hierarquia entre os meios de expressão que usa. Por vezes, refere-se de modo  explícito  à  política,  embora  nunca  resvale para o ativismo. Noutras, discute o funcionamento do meio institucional da arte, preferindo, contudo, o comentário oblíquo ao que se apresenta como imediato e aparente. O lugar incerto do corpo no mundo é a todo instante também insinuado como questão importante, mas não como relato da memória ou como mecanismo de subjetivação da obra. Ainda que cada conjunto de trabalhos assemelhados de Antonio Dias (agrupados em séries conceitualmente coesas ou apenas por aproximações do supor- te usado) possua a marca da singularidade e do acontecimento único – sendo irredutíveis, portanto, a uma totalidade ausente

–, não há nessa individuação sinais de dispersão ou isolamento. Considerada em conjunto, sua obra permite contínuos desliza- mentos semânticos e torna-se lugar de trânsito e contágio entre o que é diferente e distante. Pondo em contato cadeias de significação distintas, a obra de Antonio Dias é rizoma, modelo de realizar alianças provisórias, mas amplas.1

 

Muitos dos trabalhos de Antonio Dias carregam, inscritos em sua forma aparente, as marcas do embate e do enlace simbólicos que perpassam toda a sua produção. Em várias das pinturas da década de 1960, a figuração esquemática trazida da cultura popular e de massa (principalmente do graffiti e das histórias em quadrinhos) é deliberadamente truncada, bloqueando a fluidez narrativa e a capacidade de comunicação ligeira encontradas em suas referências de origem. A contenção cromática desses trabalhos (há neles quase apenas preto, amarelo, vermelho e branco) e a ordenação precisa das figuras no suporte pintado revelam, ademais, a adesão do artista a um código construtivista que tampouco tem aqui preservados seus ideais de afastamento do que é incerto ou impuro.2 Em Nota sobre a morte imprevista (1965), trabalho característico desse período de improvável sobreposição de tradições tão distantes, três dos quatro quadrados em que o suporte se divide são ocupados por imagens que parecem deslocar-se para fora dos espaços em que estão inscritas, não chegando a compor a história de violência que sugerem existir no mundo. No quadrado que resta de tal superfície, essa dinâmica centrífuga se acentua mais ainda, fazendo com que as imagens ganhem volume e se tornem objeto mole, projetando horizontalmente os signos de morte antes contidos no plano vertical da pintura. A aproximação entre suporte pintado e lugares vividos e o simultâneo desmanche da rigidez construtiva contidos nesses trabalhos fazem ecoar, na produção inicial de Antonio Dias, as duas principais vertentes que, à época, afirmavam-se em seu entorno: a Nova Figuração brasileira e o Neoconcretismo. Não há qualquer sentido de síntese, contudo, nesse avizinhamento crítico; há, antes, tensão entre características daquelas vertentes agenciada pelos deslizamentos entre significados diversos que marcam a obra do artista.3

 

Essa exuberância sintática é abandonada em grande parte da

produção da década seguinte, a qual se volta, ao contrário, para a magreza do conceito preciso. É desse período a série A ilustração da arte, composta de trabalhos que investigam a própria demarcação simbólica do que é arte e sua inserção no espaço coisificado das trocas mercantis. Fiel à sua visão inclusiva e contaminada do mundo contemporâneo, Antonio Dias explora, nessa série, a ideia de circuito, modelo descritivo adequado para apreender o trânsito contínuo entre valores estéticos e econômicos por meio do qual emerge o consenso – sempre provisório e sempre aspirante à permanência – em torno da suposta validade universal de determinados padrões de juízo. Em A ilustração da arte/Um & três/Gerador (1974-1975), a circularidade cumulativa dessa relação é representada como imagem gráfica que é ela própria, contudo, também artefato de arte, ambiguidade que apenas confirma o atamento entre  os  termos  sobre  os  quais  se  debruça  o  artista. A volatilidade desse processo valorativo é ainda trazida por Antonio Dias para o âmbito da apresentação formal de sua obra no trabalho A ilustração da arte/Um & três/Chassis (1974-1975): fazendo de quatro hastes metáfora do espaço que o quadro (arte) ocupa no mundo, ele as retrai e expande como a ilustrar, por meio desse deslocamento físico, dois casos exemplares de sua acomodação aos mecanismos que regem o mercado de produtos artísticos.

 

A partir do contato que estabelece, em 1976, com artesãos nepaleses que fabricam papel em  variadas  texturas,  Antonio Dias realiza trabalhos que parecem apontar para um campo de investigação criativa em tudo diverso de suas preocupações então correntes. Há também nesses trabalhos, contudo, as marcas da atenção que o artista concede aos fluxos simbólicos que a todo instante produzem atritos  entre  cadeias  semânticas  distintas. Ao incorporar, de maneira deliberada e precisa, os materiais e as técnicas dos artesãos do Nepal em sua própria obra, Antonio Dias transporta-os para o circuito da arte culta, o qual lhes atribui sentidos e valores diferentes dos que possuíam antes. Esse processo de ressignificação opera, entretanto, também no sentido inverso: chamando um desses trabalhos de A ilustração da arte (Eu e os outros) (1977) ou gravando juntas, em A ilustração da arte/ Ferramenta & trabalho (1977), a marca de sua mão e a do artesão que lhe dá auxílio, Antonio Dias parece propor a ampliação daquele circuito para que igualmente abarque, de forma crítica, a discussão sobre os limites entre arte e artesania, entre autoria e gesto repetido, entre o interesse somente pelo conceito e o encanto tátil pela matéria crua.4

 

Embora o amolecimento da rigidez gráfica que marca a maior parte da série A ilustração da arte ganhe visibilidade apenas a partir de seu contato com outra cultura, trabalhos feitos simultaneamente àqueles incluídos na série e executados em uma variedade grande de mídias dão forma nova à convulsão simbólica que anos antes inaugurara a obra do artista. São exemplos eloquentes disso os trabalhos Partitura para intérpretes perigosos (1972), Conversation piece (1973) e Uma mosca no meu filme (1976). É o trabalho intitulado Poeta/Pornógrafo (1973), entretanto, que dentre esses melhor indica, em sua arquitetura simples, o desdobrar constante de significados que é a obra de Antonio Dias. O trabalho é formado por dois pares de semicírculos de néon pendurados desde o teto: um emanando calma luz azul (o poeta) e o outro um rosa luxuriante (o pornógrafo). A despeito da polaridade aludida no título e confirmada pela disposição espacial do objeto, há nesse trabalho sugestão de unidade cindida, de círculos inteiros que se teriam quebrado em metades e se movido rumo a sentidos opostos. Não existe aqui nostalgia, contudo, de uma situação de suposta completude. A ruptura do que se poderia imaginar inteiro é ontológica, e o percurso de volta a círculos íntegros, uma possibilidade que não se realiza nunca. Há apenas o pulso contínuo de um movimento que jamais se completa, que se prolonga no percurso infinito que simultaneamente aproxima e separa territórios simbólicos distintos.

 

Essa operação de deslizamento se faz também visível, de outros modos, em pinturas posteriores do artista. Em Caramuru (1992), duas telas de grande dimensão são justapostas e cobertas por, além de tinta acrílica, materiais condutores de energia (grafite, ouro, malaquita), trazendo em potência a ideia de fluxo que o diagrama aplicado sobre elas só acentua. Na recorrência a uma forma que lembra um circuito, há também remissão aos conceitos que marcam a série A ilustração da arte, autofagia artística que permanentemente adensa e expande a trama poética tecida por Antonio Dias. Já nas pinturas da série Autonomias (2000), telas de variados formatos e tamanhos são colocadas lado a lado e também sobrepostas, criando a ilusão de que podem correr umas sobre as demais e produzir configurações diferentes das apresentadas pelo próprio artista. O fato de porções do suporte serem cobertas por matérias e padrões diversos (do monocromo à mancha) obriga também o olho a mover-se entre as várias texturas e áreas cromáticas de que se compõem esses quase-objetos.

 

É talvez Anywhere is my land (1968), contudo, o trabalho do artista que melhor realize essa operação metonímica em relação ao conjunto de sua obra. Salpicando a tela pintada de negro com tinta branca, Antonio Dias cria sobre sua superfície uma miríade de pontos desordenados e de diversos tamanhos. Superpõe ainda a este espaço uma malha reticulada e larga igualmente pintada, conferindo valor idêntico a qualquer dos pontos ali situados. Essa anulação de hierarquia – sugerida desde o título do trabalho – faz com que cada um desses pontos seja um acesso possível à metafórica e fluida geografia que representa na tela.5 Assim como em Anywhere is my land, a obra de Antonio Dias é formada por pontos (trabalhos) que se conectam entre si sem ordenação de importância ou de cronologia. Embora retrospectivamente os trabalhos se agrupem em conjuntos ou séries, eles resistem a enquadramentos estanques e a todo momento anunciam deslocamentos rumo às fronteiras que somente aparentam isolá-los de outros tempos ou conteúdos. A obra de Antonio Dias é refratária, portanto, a qual- quer genealogia formativa, o que permite que trabalhos passados ganhem significações distintas das já assentadas a partir de seu contato e confronto com trabalhos mais recentes. É esse acolhi- mento generoso de sentidos variados que produz o enervamento extenso e denso de tudo o que cria.

 

Por promover conexões entre cadeias semânticas diversas,  a obra de Antonio Dias põe em evidência aquilo que está no meio, o que habita os interstícios de campos de significação precisos e o que mina de lugares que se supunham vedados ao diferente. No trabalho intitulado O espaço entre (1969-1999), dois grandes blocos de minério – mármore branco e granito negro – são perfurados em inúmeros pontos e têm seus buracos “recheados” com a matéria extraída do bloco de cor distinta, criando espaços de permuta e contato íntimo entre as duas matérias. Carregando um deles a inscrição The beginning (O começo) e o outro a inscrição The end (O fim), esses dois blocos híbridos evocam, quando aproximados, o que há de possibilidade comunicativa latente no que  é  comumente tomado por lugar de ausências. Operação semelhante é realizada no tríptico chamado Projeto para o “corpo” (1970), em que duas  telas  (uma  branca  salpicada  de  tinta  preta  e  outra  pintada de modo inverso) acolhem, respectivamente, as inscrições energy (energia) e memory (memória) e ladeiam uma terceira tela deixada vazia  como  recipiente  para  tudo  o  que  o  ato  criativo  engendra. É esse intervalo de infinitos possíveis que Antonio Dias assinala, ainda de outra forma, no disco de vinil chamado Record: the space between (1971). Em um lado do disco, encontra-se A teoria do contar, gravação do som ritmado de um relógio interrompida, a cada três segundos, por momentos de silêncio de duração idêntica e em que

 

qualquer coisa cabe. No outro lado, pode-se escutar A teoria da densidade, registro do ciclo respiratório de uma pessoa, intercalado por pausas que trazem, em potência, toda a força cognitiva da língua e da fala.6 Por demarcar a distância que separa o ruído mecânico do orgânico, o objeto delgado e leve em que estão gravados subverte, no plano simbólico, sua própria corporeidade: o disco torna-se espesso e denso, plataforma para o que não se conhece. São muitas as maneiras pelas quais o artista enuncia a natureza incompleta e fecunda de sua obra.

 

Esse lugar de possibilidades diversas é tratado de maneira propositiva no trabalho Faça você mesmo: território liberdade (1968), diagrama construído no piso que sugere a existência de um espaço simbólico para a experimentação e o invento. Em vez de representado de modo elíptico como em outros trabalhos, tal espaço assume aqui a concreção autoral própria dos mapas, construções feitas a partir do que o cartógrafo assinala como marcos que orientam seu percurso sobre certo território. É nesse espaço de afirmação das singularidades que Antonio Dias finca a bandeira de O país inventado (1976), pano vermelho que ostenta a mais recorrente marca de sua obra: a ausência do canto superior direito do que, a olhos habituados aos perímetros de formas regulares, seria um retângulo.7 Índice de aspecto central da produção de Antonio Dias, essa marca remete a uma falta absoluta, irreparável e difusa; à inexistência de uma totalidade que resuma e explique uma obra em mutação constante, obra que é construção de um lugar que não acaba. O que há nela de permanente e o que ancora a poé- tica firme do artista é justo a afirmação de sua transitoriedade e incompletude. Uma obra por onde deslizam, em torrente simbólica incessante, as impurezas de que se constitui o mundo.

 

1  Sobre o rizoma como modelo de realização de multiplicidades, ver o texto seminal de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

2  Essa interpretação segue a análise feita por Paulo Sergio Duarte no texto “Antonio Dias”. In: Antonio Dias/ Works 1967-1994. Stuttgart: Cantz Verlag, 1994.

3  Entre os diversos trabalhos da época que possuem estrutura semelhante, incluem-se Um pouco de prata para você (1965), Husband and wife (1966), América, o herói nu (1966) e Na escuridão (1967).

4  Algumas dessas relações são discutidas por Paulo Herkenhoff no texto “Antonio Dias. Nexo entre diferenças”. In: Antonio Dias. Lisboa: Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão; São Paulo: Cosac Naify, 1999.

5  Essa característica aproxima Anywhere is my land de trabalhos posteriores, tais como Flesh room with anima (1978) e KasaKosovoKasa (1996), em que a imagem fotografada e ampliada da pele humana dilui o que de particular pode nela haver inscrito, fazendo dos poros por onde os corpos suam índices de indistinção entre indivíduos. Embora operando em um outro registro expressivo, a instalação Todas as cores do homem (1996) também sugere um espaço de indiferenciação daquilo que aparenta ser único.

6  É ilustrativo, a esse respeito, o fato de virtualmente todos os trabalhos de Antonio Dias possuírem títulos (por vezes trazidos de contextos estranhos à visualidade dos objetos que nomeiam) que tensionam e ampliam seus possíveis sentidos.

7  Uma interpretação original do significado simbólico dessa forma – associando-a a uma cruz construtivista “manietada” – é formulada por Sônia Salzstein no texto “Antonio Dias / Superfície, figura, padrão. In: Antonio Dias. O país inventado. São Paulo; Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 2001.

 

A ILUSTRAÇÃO DA ARTE...

A ILUSTRAÇÃO DA
ARTE / CIDADE / MODELO

Antonio Dias

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

A produção de múltiplos ocupa lugar importante na obra de Antonio Dias. Não por ser extensa, mas por expressar, de modo claro, a rigorosa ética construtiva que norteia a sua incursão em meios expressivos diversos. Tendo desde cedo aprendido, em aulas com Oswaldo Goeldi, o potencial da gravura e do objeto múltiplo para ampliar o espaço que a arte ocupa no mundo, Antonio Dias não se compraz em reproduzir, por quaisquer mecanismos que seja, trabalhos inicialmente pensados para serem únicos. Os seus múltiplos só se justificam, ao contrário, pelo fato de serem concebidos já como série ou conjunto.

 

Há uma aproximação evidente entre os múltiplos realizados no Recife e em Olinda durante as várias visitas que fez a essas cidades em 2002 e 2003 e os trabalhos que produziu durante estada no Nepal 25 anos antes. Assim como os papéis fabricados por artesãos daquele país e as técnicas de coloração vegetal lá empregadas – utilizados pelo artista para fazer, entre muitos outros trabalhos, o álbum de xilogravuras Trama –, matérias-primas e processos construtivos próprios a essa parte do Nordeste do Brasil permitiram que Antonio Dias, uma vez mais, pusesse em atrito o rigor dos conceitos em que ancora a sua obra e a maleabilidade que caracteriza a produção artesanal.

 

As dezenas de casinhas feitas em barro cozido e dispostas sobre o chão – entre elas, quatro que se destacam por seu tamanho maior e por serem parcialmente pintadas, por dentro e por fora, de vermelho, preto ou branco – lembram aos olhos, de imediato, brinquedos espalhados ou um conjunto habitacional popular visto de cima (CoHab, 2002). Aproximando-se delas, vê-se logo que não têm teto e que se pode, portanto, examinar o que abrigam ou guardam. Excetuando o interior das “casas grandes” – onde figuras e objetos feitos também de barro remetem, como primitivos arquétipos, a situações de desejo, descanso ou trabalho –, as habitações estão vazias, deixando à vista apenas o desenho de seus cômodos. São todas construções retangulares, divididas em um espaço maior e um outro que aproximadamente ocupa, em um canto, a sexta parte de sua área. Há nelas, além disso, apenas duas estreitas portas abertas: uma que dá acesso ao interior das habitações (ou daí ao ambiente externo) e outra que interliga os dois espaços descritos.

 

Esta ascética planta baixa – evocação da magreza arquitetônica das moradias populares – mimetiza uma forma de organizar o suporte (tela, parede, tecido, papel ou chão) encontrada em trabalhos de Antonio Dias desde o final da década de 1960. Expressão possível da falta irreparável de algo na própria obra – situado além e fora do que a arte comenta ou circunscreve –, o diagrama no qual o artista sublinha ou dele subtrai uma parte (usualmente o canto superior direito de um retângulo) manifesta o seu desconforto com os limites convencionais do ofício. Lugar onde simbolicamente, portanto, encontram-se o inacessível, o diferente ou o que não satisfaz, o cômodo menor dessas casas pode ser visitado, contudo, por quem idealmente habita o espaço maior. Colocadas sobre o piso de modo desordenado e denso, as casas abrem, ademais, suas portas umas às outras ao acaso, criando, em potência, um circuito que as entrelaça e as faz pertencer a um sistema de comunicação integrado. Assim como em trabalhos onde Antonio Dias utiliza materiais condutores de energia (cobre, ouro, grafite), aqui também se acentuam ideias de fluxo e contágio.

A irregularidade no tamanho preciso dos cômodos e portas das casas – executadas uma a uma pelo artesão olindense Valter de Araújo – e as gradações de cor que a queima do barro provoca são os vestígios mais claros da manualidade de sua feitura, amp rada em prática lúdica e vernacular. As variações construtivas não impedem, entretanto, que em todas elas apareça nítido o diagrama criado por Antonio Dias; modelo e planta das casas, é ele o referente forte que identifica as construções como pertencentes a um conjunto uniforme. Fazendo sentido apenas no contexto de matéria e técnica em que foram criadas, as peças semelhantes de argila multiplicam, a um só tempo, a cultura de um lugar e a forma desencarnada que marca a produção do artista. Dotados de corporeidade simultaneamente rústica e precisa, esses pequenos objetos de barro afirmam o que estava simbolicamente já expresso em trabalhos da série A ilustração da arte / ferramenta e trabalho (1977), realizados no Nepal. Em um deles, Antonio Dias gravou, sobre polpa ainda mole feita de fibras vegetais e celulose, as marcas da sua mão e também as da mão de Kul Bahadur, artesão nepalês que então o ajudava. Em outro trabalho, imprimiu, em pasta de papel que também incluía argila encontrada no local, os registros de sua mão junto aos contornos claros da imagem que é índice de sua obra. Seja como prova (as casinhas) ou apenas como tese (o avizinhamento de mãos e diagrama gravados), esses diferentes trabalhos integram, em circuito único, saberes distintos e usualmente apartados.

 

Cada uma das casas que compõem o trabalho CoHab se aproxima ainda, nos planos formal e simbólico, do trabalho Flesh room with anima (1978), realizado por Antonio Dias pouco tempo após o término de sua experiência no Nepal. Construção em escala humana feita segundo o mesmo modelo que orientou a fabricação das casinhas, ela tem suas paredes internas forradas com papéis que reproduzem fotografias ampliadas de pele. Assemelhadas nas cores e no simbolismo possível que as marca – o barro como matéria da criação bíblica do homem, e a pele como envoltório imediato de sua carne –, as superfícies desses dois trabalhos são, como substância (barro) ou referente (pele), igualmente porosas, lugares de passagem e de troca.

Colocados, de modo aleatório, em meio às dezenas de casas que ocupam o espaço expositivo, alguns carrinhos feitos de ferro (Carrinho-crítico, 1973/2002) também reproduzem, como se fora útil à descrição visual do veículo (ou brinquedo), a mesma organização espacial que identifica as construções de argila. Moldados  em areia e fundidos com toda a sorte de refugo, retalho e sobra do minério, os carros possuem acabamento tosco e manchas irregulares de ferrugem, o que contrasta vivamente com o rigor de sua arquitetura interna e com o caráter icônico de seu desenho.

 

Uma vez mais, Antonio Dias aproxima, medindo forças de atração e repulsa, projeto claro e execução incerta. Providos de rodas, os carrinhos parecem servir, nocionalmente, como mecanismos adicionais de contato entre os elementos imóveis do ambiente construído. Servem também, entretanto, para lembrar que, assim como já sugerido pelo trabalho O país inventado (1976) – bandeira vermelha que, ostentando o diagrama da falta, é “hasteada” em situações as mais diversas –, é o espaço poético criado pelo artista que ganha aqui mobilidade.

 

Há, por fim, duas torres feitas da fundição, em bronze, do empilhamento de latas de alimentos (As torres, 2002). Seduzido pela familiaridade de cada uma de suas camadas, o olho busca reconhecer, nas formas e sulcos moldados das embalagens, que gêneros alimentícios elas guardavam. A lista possível é variável e grande, mas é de pouco interesse ou valia enunciá-la. O que importa em tais objetos – rascunhos de edifícios ou paródia de maquetes – é sua diferença essencial das casas e dos carros que os envolvem. Ao contrário desses, não há nas torres permeabilidade ao seu entorno ou meios para mover-se em direção qualquer; lacradas e fixas, repousam, simbolicamente, à parte de todo o resto.

 

Ostensivamente verticais, as esverdeadas torres de bronze

elevam-se acima do plano onde o artista apresenta o curso da vida ordinária – essa também já estratificada entre pequenos e grandes pela variação de tamanho das casas – e sugerem, por meio desse deslocamento alegórico, a existência de uma organização hierárquica entre os símbolos urbanos ali dispostos. Tirando partido de procedimentos construtivos partilhados por muitos no Nordeste do Brasil (o trabalho no barro, a fundição precária e a apropriação de restos do consumo de massa), Antonio Dias une-se a artesãos e técnicos do lugar e faz, com rigor conceitual, humor e meios parcos, o enunciado sintético de uma economia da cidade. Por serem os próprios objetos múltiplos, contudo, os elementos com que esboça um sistema de circulação em rede sujeito a rupturas que perturbam sua continuidade (seja pela fragilidade das casas, pela erosão dos carros ou pela falta de acesso às torres), o artista termina por também fazer, da truncada, mas divertida, paisagem urbana que cria, modelo crítico para o circuito da arte.

A ESPESSURA DA COLETA

A ESPESSURA DA COLETA

Brígida Baltar

Arte Bra Crítrica Moacir dos Anjos

Entre 1994 e 2001, Brígida Baltar realizou uma série de ações pouco usuais e com serventia prática nenhuma: coletou, diversas vezes, neblina, orvalho e maresia em variados recipientes de vidro (frascos, tubos, potes), registrando tais atos em fotografias e em filmes silenciosos e curtos. Juntas, essas coletas formam o projeto Umidades, tentativa de apreender, simbolicamente, o que são efêmeros fatos naturais. Iniciadas como forma de expandir, para fora da casa, pequenas ações de armazenamento poético de substâncias domésticas (pó desprendido de tijolos, cascas de tinta, gotas de chuva que caem por frestas no telhado) efetuadas anteriormente, as coletas tornaram-se, logo em seguida, empenho ativo e sabidamente vão de capturar o que, por ser intangível e por só existir no ambiente da mata ou da praia, sempre escapa ao aprisionamento material.

 

Supostamente inócuo, o ato da artista traz em potência, contudo, a ativação alegórica do que é quase sempre visto como substância amorfa e embaciada. Pondo em contato estreito dimensões que poucas vezes se embaralham, suas coletas de umidade (ajudadas, ocasionalmente, por pessoas próximas) avizinham pequenos gestos ordinários a vastos ambientes naturais, tornando visível, por meio desse encontro, o que é quase transparente a olhos acostumados somente ao que é contíguo e sujeito ao tato.

 

Há uma irreparável dicotomia nesses trabalhos, da qual resulta, todavia, parte de sua força expressiva e a singular atração que despertam. As coletas são ações individuais que deixam, em quem as faz, rastros sensoriais de um momento e de um lugar precisos (temperatura, sons, cheiros) e impressões transientes de estados de sentimento (prazer, medo, melancolia), marcas impossíveis de partilhar plenamente com alguém mais. Àqueles que não as vivenciaram e as conhecem, portanto, apenas como imagens, as coletas assemelham-se, em um primeiro instante, a ações descarnadas e abstraídas de tempo e de espaço, mais sonho opaco do que imersão no mundo físico que fotografias e filmes descrevem. Nem por isso, porém, as coletas são, para esses, somente registro de algo que lhes é externo. Justamente por pro- mover o distanciamento sensível da experiência privada vivida por quem realizou a coleta, os trabalhos de Brígida Baltar abrem-se à memória do outro e se fazem experimento comunal.

 

Das três matérias coletadas, a maresia talvez seja a mais espessa. Não no plano ótico, posto que a neblina densa oculta mais que as outras o entorno de quem nela adentra. Tampouco na sensação do espaço úmido, já que o orvalho parece cobrir o mundo com uma camada fina de água. A maresia, entretanto, possui cheiro intenso, exalado pelo mar na vazante. É também oxidante, podendo, ao contrário da neblina e do orvalho, corroer, em tempo curto, substâncias duras. E ainda que as diversas ações de captura não considerem tais diferenças físicas ou estabeleçam qualquer tipo de hierarquia entre si, é curioso que a coleta da maresia pareça requerer, do que se apreende do seu registro filmado, maior esforço de quem a faz, como se as partículas de água pesada que se espalham no ar da praia resistissem ao seu confinamento em vidros mais do que a ele resistem a neblina ou o orvalho.

 

As coletas de umidade inscrevem-se, ademais, em temporalidades poéticas distintas. A coleta da neblina – feita em meio à névoa cerrada – parece ocorrer em um tempo suspenso e imóvel. A coleta do orvalho, por sua vez, sugere – pelas roupas que veste a artista e pelos estranhos objetos coletores que usa – ter sido realizada em um instante por vir ainda. A coleta da maresia, por fim, remete sutilmente ao passado: não somente as roupas das coletoras lembram trajes de banho que estiveram em voga faz várias décadas, mas também a tênue luz azulada de fotografias e filme – reflexos do oceano e do céu aberto que o encobre – funciona quase como um filtro nostálgico.

Ancorados na espessura física da água que evapora do mar e na lembrança idealizada de um outro tempo, fotografias e filme da coleta da maresia são igualmente importantes para a geração de seus sentidos prováveis. Registros menos ou mais remotos da ação, ambos os meios atestam a condição limítrofe em que a coleta ocorre: feita em praias, ela se espreme na faixa estreita que aparta mar e cidade; realizada ao amanhecer, é iluminada, simultaneamente, pela luz natural ainda fraca e por luz longínqua que vem dos postes que restam acesos na orla.

 

A despeito, contudo, dessa situação transitiva, não há tensão aparente nos gestos firmes mas delicados de quem coleta a maresia em potes arredondados e largos. Correndo sobre a areia úmida, executando coreografia improvisada ou, vez por outra, entrando no mar frio, as coletoras parecem integrar a paisagem tão naturalmente quanto dela faz parte a substância impalpável que continuamente guardam e liberam. Desempenhando ação sem final e sem fim que não seja o de realizar o próprio ato, trazem, do passado sereno e impreciso que evocam, a promessa impossível de um corpo desregulado.

O BARULHO NO MUNDO

O BARULHO DO MUNDO

Chelpa Ferro

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Uma genealogia possível (e necessariamente inconclusa)

 

A experiência de viver no mundo contemporâneo não pode ser desvinculada dos muitos e diversos sons que o estruturam e definem. Alguns deles são ostensivos e públicos, ruídos próprios da urbanização dominante e ainda crescente, tais como os produzidos por motores de veículos, turbinas de aviões, concentração de pessoas, sirenes, concertos amplificados de música, buzinas, gritos e máquinas que ocupam fábricas, escritórios e ruas. Outros se oferecem na esfera cada vez mais exígua da vida privada, como os barulhos emitidos por eletrodomésticos que fazem de tudo em casa, as vozes que chegam aos ouvidos por meio da telefonia móvel e fixa, ou as músicas que, vindas de várias fontes e partes, pontuam atividades as mais distintas. A despeito das circunstâncias específicas em que são escutados, são sons que não somente exprimem determinadas formas de sociabilidade, mas que delas fazem parte de modo indiviso.

 

O fato de a dimensão sônica do mundo recente ser incontornável não bastou, contudo, para que fosse incorporada, de maneira plena, no arcabouço simbólico que o campo das artes produziu em mais de um século de ruído intenso. Mesmo no âmbito da composição musical, a maior parte dos barulhos que cercam a vida comum foi ignorada, com frequência, por não caber em estruturas harmônicas e rítmicas vigentes. Como resultado dessa reduzida capacidade de absorção de ruídos, a representação da vida contemporânea ancora-se mais no sentido da visão do que na capacidade de escuta: enquanto o primeiro abarca, simultaneamente, tudo o que se põe à frente do olho, a audição parece fragmentar, no espaço e no tempo, os estímulos sensoriais que chegam ao ouvido, elegendo apenas alguns como relevantes e descartando a maior parte dos sons como não significantes, tornando-os, assim, inaudíveis no domínio da cultura.1

 

Diversos artistas, atuantes em disciplinas distintas, questionaram e subverteram, ao longo de todo o século XX, essa clausura cultural a que o mundo submeteu muitos dos ruídos que ele próprio cria. Uma genealogia ligeira dessa afirmação do barulho encontra, entre seus primeiros representantes, o futurista italiano Luigi Russolo, que em 1913 redigiu um manifesto no qual rechaçava a presença ostensiva e alienante de “sons puros” na tradição ocidental da música, advogando a absorção dos “sons-ruídos” que acompanham as mais corriqueiras manifestações da vida. A arte do barulho não deveria se limitar, entretanto, à mera reprodução do que se escuta no mundo, mas basear-se na combinação inventiva desses ruídos.2 Para tanto, construiu gera- dores de barulhos acústicos (intonarumori), que, feitos somente de madeira e metal e de maneira quase tosca, permitiam criar sons diferentes e articulá-los uns aos outros.

 

As ideias de Luigi Russolo chamaram a atenção, nas décadas seguintes, de produtores interessados na ampliação do campo sônico que era reconhecido culturalmente, limitado em relação a outras esferas de conhecimento autorizado do mundo. Ecoaram, em particular, nos experimentos sonoros capitaneados, a partir da década de 1940, pelo pesquisador francês Pierre Schaeffer, acolhidos sob a denominação ampla de “música concreta”. A maior ênfase dessa produção não estava mais, porém, na geração primária de barulhos diversos, mas na exaustiva manipulação de sons gravados previamente. Valendo-se da alteração dos procedimentos mecânicos de reprodução de discos já existentes ou do recurso ao isolamento de um fragmento sonoro gravado para tratá-lo em seguida como autônomo, o interesse maior das pesquisas residia menos nos eventos geradores dos ruídos do que nas qualidades intrínsecas dos sons que aqueles produziam. Propugnava, com isso, uma sensibilidade nova – a “escuta reduzida” –, pretensa- mente capaz de ampliar o entendimento de como se pode ouvir o entorno vivido.3

 

A tarefa de expandir a presença do som no mundo sensível – combatendo, portanto, a dominância da imagem nesse âmbito do conhecimento – é assumida, coetaneamente, pelo compositor norte-americano John Cage, que, ao contrário do crescente ensimesmamento técnico e estético das propostas ligadas à “música concreta”, enfatizava a relação estreita dos sons com aquilo que lhes dava origem. Para tanto, reuniu e mesclou, em suas composições iniciais, ruídos claramente provenientes de objetos domésticos e outros obtidos por meio de batidas e pancadas em seu piano. Em seguida, abdicou do controle sobre a escolha das fontes, da duração e da intensidade dos barulhos que incorporava à música, fazendo-a equivaler, tão somente, a todos os sons não intencionais que ocorressem em um dado espaço e por um período de tempo específico. Por fim, diluiu qualquer restrição territorial para realizar esses agrupamentos de ruídos, gravando, com os recursos tecnológicos disponíveis, todos os sons aos quais pudesse ter acesso (incluindo aqueles que o funcionamento do corpo humano produz), inserindo-os no domínio da música. Contrapondo-se à ideia de que o som seria experimentado em pedaços, instituía a noção de um campo sônico contínuo, embora sempre atrelado a um contexto preciso.

 

Essas duas abordagens concorrentes e simultâneas – uma que destaca o som como manifestação sensorial exclusiva e apartada das demais coisas do mundo, a outra que o vincula a uma situ- ação de contiguidade com mais esferas sensíveis – marcaram a produção de muitos artistas nas décadas que se seguiram. Para uns, importava mais o caráter abstrato, formal e autorreferente do som, pelo qual seria possível alterar os modos de perceber o que está à volta desde um foco que tinha tido, até então, seu poder cognitivo desdenhado. Para outros, valia entendê-lo justamente como amálgama de uma realidade contaminada e híbrida, na qual uma hierarquia entre meios expressivos e entre lugares de emissão de discursos não fazia mais qualquer sentido.4  É nessa segunda acepção que vários integrantes do movimento supranacional Fluxus (Nam June Paik, Dick Higgins, George Brecht e La Monte Young) elaboraram, na década de 1960, eventos sonoros que contrariavam as convenções oriundas da área da música, mesmo estando supostamente nela inscritos. Eventos que embaralhavam, sem distinções conceituais quaisquer, ruídos provocados e outros coletados ao acaso, além de trazerem, para o âmbito do sônico, elementos comumente associados ao domínio do visível. Nesse campo perceptivo ampliado, também têm lugar – a par- tir da mesma década – as instalações do norte-americano Max Neuhaus, nas quais sugere que a natureza temporal do som é capaz de redefinir a compreensão de um determinado espaço, indicando a impossibilidade de confinar o conhecimento de algo a uma dimensão investigativa isolada.

 

Essa tradição impura, marcada pela aproximação entre o que se enxerga e o que se escuta, adensou-se, nas décadas seguintes, em diferentes partes do mundo, informando a produção de muitos artistas ditos visuais, incluindo Bernhard Leitner, Bill Fontana, Steve Roden, Stephen Vitiello e Christian Marclay. É assumida, ademais, a partir da década de 1980, por grupos de rock e de música eletrônica, tais como o Sonic Youth e o Low Frequency Oscillator (LFO). E é sob a influência e abrigo desse ambiente informe que é criado, em 1995, o coletivo brasileiro Chelpa Ferro, matizado por influências locais variadas – dos trios elétricos da Bahia às festas de aparelhagem de Belém, de performances de poetas  marginais às obras de Hélio Oiticica e de Cildo Meireles – e somadas a uma fome musical ampla que alinha Stockhausen e Sex Pistols, Aphex Twins e Velvet Underground.5 

 

O Chelpa Ferro é Barrão, Luiz Zerbini e Sergio Mekler, todos residentes no Rio de Janeiro. O resultado dessa soma não é, entretanto, tão simples assim de ser quantificado, pois cada um de seus componentes traz, de suas trajetórias artísticas individuais – começadas na década de 1980 –, a ideia de juntar pedaços de vários lugares e em mídias as mais diversas. Barrão constrói objetos feitos das partes e sobras de coisas que já existem, sejam elas eletrodomésticos, como no início de sua carreira, ou cacos de utensílios de louça, como em tempos mais próximos. Luiz Zerbini, por sua vez, cria pinturas que articulam tradições diferentes do meio expressivo onde se move, aproximando a representação de alguma coisa à criação do que não havia ainda. Sergio Mekler, por fim, edita e monta imagens filmadas de uma maneira necessariamente singular, quando haveria sempre muitas outras possibilidades de atá-las. Embora suas obras sejam distintas umas das demais, todas evidenciam, portanto, uma coerência que é forçosamente arbitrária e provisória, tornando-se índices da impermanência da relação entre as coisas e as ideias.5 E é justo esse interesse pelo impreciso e pelo transitório o que talvez mais aproxime os artistas e melhor defina o seu trabalho coletivo, o qual ajunta e apresenta, em formatos variados – objetos, instalações, performances, apresentações de palco e discos –, sons e imagens que conformam a experiência urbana do mundo atual. Interesse pelo ambíguo e pelo passageiro já presente no próprio nome do grupo, junção de uma designação portuguesa antiga e pouco utilizada para dinheiro – meio de troca universal – e a denominação de um metal que muda sua aparência à medida que o tempo passa.

 

O grau zero da escuta

 

A despeito de não produzir som algum – ou talvez exatamente por causa do silêncio que o envolve –, Moby Dick (2003) é um dos trabalhos do Chelpa Ferro que melhor condensam a atenção dividida de seus integrantes entre os barulhos e as imagens que os envolvem. Em uma sala expositiva, o visitante depara-se tão somente com uma agigantada bateria, repleta de tambores, pra- tos, címbalos, pedais e um banco para acomodar um possível músico. O título hiperbólico do trabalho é, além disso, referência à música homônima gravada, em 1969, pelo grupo de rock inglês Led Zeppelin, em que o baterista John Bonham faz um longo e enérgico solo em seu instrumento. A ausência das baquetas indica, porém, que a bateria não está exposta para ser tocada: nem pelos integrantes do Chelpa Ferro, nem pelo público. O instrumento que produz sons altos e timbres diversos, capazes de encantar e entorpecer o sentido auditivo, é mantido mudo, oferecido exclusivamente ao escrutínio do olhar. A bate- ria é apresentada aqui, de fato, apenas como potência de som que a visão icônica do instrumento ativa na memória. Ou como barulho que, inscrito na lembrança de uma forma, pode, diante da imagem dessa, ser recordado.7

 

Moby Dick promove, desse modo, uma inversão na maneira unidirecional de relacionar as esferas do som e da visão, frequente mesmo entre muitos dos praticantes do que se convencionou chamar de arte sonora. Nesse trabalho, em vez de ser um ruído determinado que sugere algo fincado no domínio da visualidade, é a imagem silenciosa e precisa de um objeto que aciona o sentido da audição. Tal alteração no processo perceptivo desfaz hierarquias comumente associadas a experiências sinestésicas, em que a um som corresponderia uma imagem definida, mas à visão concreta de algo não equivaleria um ruído certo.8 Essa mudança é igualmente patente no trabalho VU (2001), composto de um toca-fitas de rolo analógico – ligado à rede elétrica, mas desconectado de componentes quaisquer de amplificação – que tem a velocidade da fita magnética desacelerada até onde é mecanicamente possível, enquanto o volume é aumentado ao máximo que o equipamento permite. Além do contraponto visual entre o retardo da fita e a elevação do áudio medido pelos ponteiros da “unidade de volume” do toca-fitas (na convenção da língua inglesa, VU é abreviação de volume unit), há a discrepância entre a imagem do medidor que remete a muito barulho e a ausência de ruído.

 

A ideia de que imagens podem ativar a memória de sons informa ainda uma série de outros objetos do Chelpa Ferro, em que traduções entre um e outro campo de percepção (o auditivo e o visual) são oferecidas. São exemplares, a esse respeito, os trabalhos Copo d’água (2001) e Ciclotron (2001), em que ondas sonoras de baixa amplitude, geradas por osciladores de frequência, são transmitidas através de alto-falantes para recipientes de água e café apoiados sobre esses artefatos de amplificação, compondo, como resultado dos pequenos deslocamentos produzidos naqueles continentes, diferentes desenhos nas superfícies dos líquidos. Tal como em Moby Dick e em VU, a percepção do som existe nesses dois trabalhos apenas em decorrência de um estímulo sensorial oferecido ao âmbito do olhar. A investigação da escuta silenciosa do som é ampliada para outras formas de sentir em Cama (2001), em que pessoas se deitam, uma de cada vez, em estrutura semelhante a um tatame suspenso,  onde  se  embutem  alto-falantes  capazes de transmitir ao corpo ondas diversas de som geradas por equipamento semelhante aos utilizados em Copo d’água e Ciclotron. Embora inaudíveis ao ouvido humano, as baixas frequências propagadas massageiam músculos e, por meio desse contato, permitem que se percebam, sem o auxílio da audição – e, nesse caso, também sem a concorrência do olhar –, os sons produzidos ali.

 

Arquitetura e barulho

 

Embora em vários trabalhos do Chelpa Ferro o som gerado seja da ordem somente do pensado ou mesmo do que é apenas percebido pelo tato, em muitos outros ativa, obviamente, os órgãos próprios da audição. Entre esses, alguns dependem, para emitir registros sonoros, do embate corporal de alguém com os objetos e as instalações que o grupo cria. Totó treme terra (2006), caso modelar desse padrão de trabalho, é um convite a jogar  uma partida de futebol entre as seleções do Brasil e da Argentina no tradicional brinquedo, acoplado aqui a diversas caixas acústicas que rodeiam a estrutura física do jogo. A depender de para onde a bola corre e bate, sensores conectados à mesa são acionados, ativando, por sua vez, um sampler com sons pré-gravados, que chegam aos ouvidos através dos vários alto-falantes que os amplificam. Ao envolvimento visual e tátil com a partida, soma-se, portanto, um elemento sônico que, tendo origem nos movimentos dos jogadores em busca do gol, expande o espaço sensível onde se desenrola a partida, envolvendo os presentes – mesmo os que não tomam parte ativa do jogo – em um lugar novo. Já em Maracanã (2003), o visitante depara-se com uma estrutura circular formada  por  gigantescas  caixas  acústicas,  todas  com os alto-falantes voltados para o espaço interno que elas delimitam. Uma  abertura  nesse  círculo  opaco  e  o  zumbido  contínuo e grave que  emana  de  dentro  convidam  ao  ingresso  na  arena de paredes escuras e revelam que todas as caixas acústicas estão conectadas a amplificadores de sinais sonoros, embora não saia delas nenhuma  música  ou  barulho  qualquer  já  gravado. Os sons do mero caminhar e das falas ditas no interior desse ambiente são, contudo, logo devolvidos – menos ou mais modificados e através dos mesmos alto-falantes – a quem os gerou, revelando um sistema circular de captação, processamento e reverberação dos ruídos que são produzidos ali. Ao perceber a possibilidade de interação sônica com o trabalho, o visitante se reconhece como participante ativo da construção de um espaço que pode ser experimentado de inúmeras maneiras; do mesmo modo que a torcida de um estádio de futebol pode torná-lo, muitas vezes a despeito da qualidade do jogo, em sítio aborrecido ou em lugar de êxtase.9

 

A preocupação em  relacionar  a  arquitetura  simbólica  de um espaço ao domínio mais fluido do registro sonoro está ainda presente em diversos outros trabalhos, mesmo que difiram nos mecanismos por meio dos quais articulam essas esferas. Um dos mais eloquentes a esse respeito é a instalação Jungle jam (2006), composta por dezenas de peças idênticas, dispostas em linha horizontal sobre as paredes de uma sala e separadas, umas das outras, por intervalos regulares e vagos. Cada peça é feita de um pequeno motor e de uma sacola plástica ordinária, presa ao pino situado na extremidade daquele. Quando ligados, os  motores fazem girar esses pinos e, com eles, as sacolas, que batem sobre as paredes e produzem barulhos  sincopados. Os  movimentos  e os consequentes ruídos que provocam não obedecem, todavia, a padrões repetitivos ou, inversamente, aleatórios. A voz de comando soberana do trabalho vem, em verdade, da caixa iluminada por pequenas lâmpadas posta em um canto da sala, para onde confluem os fios grossos que saem dos desengonçados compósitos de motores e sacolas. É essa caixa – alcunhada pelo Chelpa Ferro de cabeção – que controla, via programação extensa embutida em sua carcaça, quais motores funcionam a cada momento e quais permanecem parados. Em um instante, apenas aqueles que estão de um lado da sala giram em simultaneidade, restando todos os demais imóveis. Em outros, os motores são ligados em sequência linear ou de maneira alternada, sendo logo desligados de forma a desfazer a progressão anunciada. Já um pouco mais tarde, podem funcionar todos em uníssono, tal qual um conjunto articulado. Como um maestro diante de uma orquestra em que um único tipo de instrumento é tocado, o cabeção faz calar ou soar parte deles em momentos diversos, criando, a partir de um mesmo elemento que se repete, ritmos, timbres e texturas sonoras variadas.

 

Octopus (2006) é, de modo igual, uma instalação constituída por diversos artefatos semelhantes  dispostos  linearmente  ao longo das paredes de uma sala. No entanto, embora eles tenham todos a mesma funcionalidade – são oito caixas acústicas, cada uma delas ligada a um canal de áudio distinto emitido de uma mesma fonte sonora –, sua aparência e tamanho são, diferente- mente do que ocorre em Jungle jam, variados. Os sons escutados nos dois trabalhos têm, além disso, naturezas distintas. Enquanto em Jungle jam são gerados por movimento mecânico produzido em tempo real, em Octopus dependem da emissão de sinais pré-gravados. São ruídos, trechos de músicas, efeitos sônicos e falas, editados em trilha sonora de quase treze minutos e distribuídos, de forma aparentemente errática, nos oito canais. Para tanto, a edição utiliza alternadamente cada um deles ou compõe grupos temporários de dois ou mais, sem ordenação que se possa discernir ao certo em uma única escuta. Ao mesmo tempo, então, em que os fragmentos da narrativa sonora apresentada solicitam, de quem está no ambiente, que a complete com a imaginação ou que, alternativamente, a abandone como inacabada, a variação constante do lugar de emissão dos barulhos muda a atenção auditiva para um ou para outro canto da sala. Por sua aleatoriedade aparente, essas mudanças, em Jungle jam como em Octopus, são sempre inesperadas e seguidas de genuína surpresa da parte de quem as testemunha. Não é só a audição, entretanto, que registra cada uma dessas marcadas e recorrentes alterações. Também o olhar, e com ele todo o corpo que o acompanha, identifica, de maneira quase instintiva, a origem e a qualidade diversas dos sons produzidos em cada instante. Interação entre sentidos que cria, à medida que o tempo flui, uma percepção nova dos próprios espaços onde esses trabalhos se instalam, os quais deixam de ser ambientes mudos e passam a reverberar, como se fossem seus, os ruídos gerados. Há aqui, portanto, uma quase indistinção entre a arquitetura dos lugares e os sons que os ocupam e moldam; entre o espaço habitado e a temporalidade que lhe concede um significado, ainda que este seja instável e sujeito, em consequência, a um repentino desmanche simbólico.10

 

Paisagens sonoras (de fora e de dentro)

 

A regularidade temporal que marca várias das instalações do Chelpa Ferro contrasta com a intermitência do ruído que provém de Nadabrahma (2003), trabalho cujo título é apropriação de vocábulo pertencente à espiritualidade e à tradição musical hindus, e que exprime a aproximação entre o sonoro e o divino. É a marcante presença visual dessa instalação, todavia, o que primeiro chama a atenção dos sentidos, em razão dos muitos galhos com vagens pendentes que são presos à parede em tortuosa linha, cada um deles articulado a um pequeno motor, de onde saem fios que os unem a pedais postos sobre o piso. O silêncio em que essa paisagem quase-natural está imersa é quebrado somente pela vontade dos visitantes, que, ao pressionarem os pedais ofertados a eles, acionam, por um determinado tempo, os referidos motores, cuja vibração sacode os galhos mantidos inertes até aquele instante. São essas sacudidas que fazem balançar as sementes aprisionadas no interior das vagens, que batem nas duras paredes internas de seus invólucros e ressoam na sala expositiva de modo ritmado e intenso. Tal como em Totó treme terra e Maracanã, são as ações voluntárias dos visitantes que articulam as dimensões visual e  sônica  do  trabalho;  e,  assim  como em Jungle jam e Octopus, são os barulhos criados dessa forma que ressignificam o espaço em que a instalação se acomoda. O que é peculiar a Nadabrahma, contudo, é o fato de o som artificialmente por ela gerado ser similar ao que o vento pode provocar do lado de fora da sala ao balançar galhos de árvores. Quase como se houvesse contiguidade completa entre o espaço construído e o espaço natural, entre o movimento eólico espontâneo e o movimento mecânico forçado. Quase como se não houvesse mais distinção de origem entre todos os ruídos que informam a experiência de transitar no mundo.

 

O trabalho apresentado na 51ª Bienal de Veneza pelo Chelpa Ferro, Acqua falsa (2005), aproxima, igualmente, a experiência sensível de se estar no interior do ambiente expositivo e a que se tem ao caminhar no espaço aberto. Ao inundar uma sala retangular inteira e permitir aos visitantes apenas a travessia de uma pequena ponte que divide aquela ao meio, o grupo faz uma óbvia alusão à geografia da cidade italiana. A estrutura audiovisual que ali instala, porém, é o que identifica o trabalho, de fato, com a atmosfera sensorial peculiar a Veneza. Espalhadas sobre a parede de um dos lados extremos do recinto, minúsculas lâmpadas azuis acendem-se e apagam-se alternadamente em blocos, sob a regência aparente de algum equipamento que, fora do alcance da vista, abre e fecha circuitos elétricos em intervalos pré-ajustados. De cada uma das lâmpadas, desce um fio delgado e escuro, que, unidos em conjuntos no interior de cabos mais grossos, mergulham na água e atravessam toda a extensão longitudinal da sala, passando por debaixo da ponte, emergindo em sua extremidade oposta e acoplando-se, por fim, a uma grande caixa acústica pendurada por cabos que quase encosta os seus alto-falantes na lâmina d’água. Os repetidos estalos amplificados pela caixa acústica e ouvidos no lugar são logo associados às mudanças rítmicas na configuração das lâmpadas visíveis no outro lado da sala (e vice-versa), sugerindo aos visitantes que também esses têm origem nas alterações elétricas programadas. A proximidade entre os alto-falantes e a superfície líquida em repouso alguns centímetros abaixo faz, por fim, com que os ruídos que deles saem se propaguem no ar e se reflitam na água antes de ecoarem em tom baixo por todo o espaço expositivo, concedendo-lhes uma qualidade acústica contaminada por esse contato. Tal como nas ruas e canais de Veneza, imagem e som aqui se traduzem uma no outro através da água, elemento em que hierarquias quaisquer entre os domínios da visão e da escuta se desfazem.11

 

Esse mimetismo entre o que é trabalho e aquilo que parece lhe ser externo encontra outro paralelo na intervenção feita pelo Chelpa Ferro na Fundação Eva Klabin, embora, ao contrário do que ocorre com Nadabrahma e com Acqua falsa, o foco aqui seja a paisagem interior de uma casa. A fundação, criada em 1990 e sediada no Rio de Janeiro, é uma casa-museu que guarda o acervo de arte clássica que a colecionadora que lhe dá nome reuniu durante mui- tos anos – notadamente entre as décadas de 1950 e 1970 –, além do mobiliário original da residência e de objetos antigos de uso pessoal de sua patronnesse. A partir de 2004, funciona na instituição, sob a curadoria do crítico Marcio Doctors, o Projeto Respiração, cujo objetivo é estimular artistas contemporâneos a intervir nos ambientes da casa e criar, com isso, atritos e aproximações com manifestações simbólicas do passado. A desordenação das coisas do mundo que o Chelpa Ferro promove – seja por meio da quebra de hierarquias sinestésicas ou da incorporação de barulhos ordinários ao âmbito da cultura – fez o grupo ser convidado a realizar uma interferência nos espaços da fundação como parte daquele projeto, que resultou no trabalho Estabilidade provisória (2005). Como o título sugere, esse trabalho buscou introduzir a ideia de impermanência em um lugar onde tudo parece já estar assentado, valendo-se, entretanto, menos do contraste vívido entre estados distintos (movimento versus inércia) do que de sutis avivamentos sensoriais a serem experimentados pelos visitantes. Diante de ambientes tão serenos e arrumados, pertencentes a um tempo que não há mais, o grupo elaborou, então, armadilhas perceptivas (sonoras ou não) capazes de corromper a sua placidez e de atualizá-los até um presente aberto ao que ainda não se conhece.

Em uma das muitas salas da casa, o Chelpa Ferro, entre mais coisas, fez a luz variar de intensidade regularmente, amplificou sons de objetos que se quebram e deixou à vista um copo com cerveja dentro, como se alguém ainda habitasse o recinto. Em outra, tomou partido das muitas referências à musica já existentes, sonorizando o ambiente com o ruído de agulhas arranhando discos e deixando ao acaso referências escritas sobre o campo sônico. Além disso, um vaso posto em posição arriscada sobre uma mesa ameaçava cair a qualquer instante, imagem que prenunciava barulho e desarranjo. Misturou, ademais, aos objetos que pertencem ao lugar, outros que novamente remetiam à possível presença contemporânea de um residente, como cigarros e remédios. Em uma terceira sala, a interferência mais notável era promovida por pequenos motores que, escondidos sob a mesa principal, faziam o seu tampo vibrar e, com ele, os pratos, talheres e copos arrumados para almoço ou ceia, os quais se entrechocavam e reclamavam existência sonora. Já no jardim, onde os ruídos da cidade já são o bastante para desestabilizar a fixidez da casa, escutavam-se, assim mesmo, os barulhos gravados de carros freando, de alarmes que tocavam por nada, do latido de cachorros que não estavam ali de fato. Por meio dessas intervenções pontuais, os muitos objetos inanimados da antiga residência passavam a sugerir, aos olhos dos visitantes, a emissão dos sons que se haviam apartado, por desuso, de sua existência como matéria e forma.

 

Brum! Crash! Clang! Smash! Pow! Tum!

 

O interesse por ouvir tudo o que está no entorno da vida comum, abstendo-se de seguir as convenções que apartam a música de outros ruídos quaisquer, levou o Chelpa Ferro a fazer, de um carro – um Maverick 1974, embora pudesse ser outro, mais novo ou velho –, instrumento de investigação sonora. Essa escolha não se deu por causa do barulho do motor, da buzina gritante, ou dos tics e tacs que aberturas e fechamentos de portas e travas produzem. Mas porque todo carro possui, pela variedade de materiais de que é composto (metal, vidro, tecido, borracha, plástico),

 

qualidades acústicas privilegiadas e uma multiplicidade potencial de timbres, que só são ativadas e ouvidas em conjunto, contudo, quando os veículos colidem contra obstáculos rijos. Como maneira de emular o resultado sônico de tais circunstâncias sem infligir ferimentos a seus eventuais ocupantes, o grupo e alguns convidados utilizaram o Maverick para obter, por meio de golpes e pancadas, os muitos sons que um veículo esconde sob a mudez que a imobilidade lhe impõe. Para tanto, muniram- se de instrumentos diversos: desde os encontráveis já prontos, como martelos, chaves de roda e barras de ferro, até os preparados para o evento, como baquetas de madeira ou de bronze que traziam, em suas extremidades, as cabeças esculpidas de Beethoven, Bach ou Mozart, como se para dirimir dúvidas se era ou não à esfera da música que aquela ação aspirava pertencer. Intitulada de Autobang (2002), essa performance foi apresentada na abertura da 25ª Bienal de São Paulo.

Após um início cauteloso de criação de ruídos e de maculação simultânea do carro, os tocadores de Maverick tornaram-se progressivamente mais absortos na tarefa de extrair do veículo, ao custo de um número crescente de amassados, arranhões, furos e vidros quebrados, aquilo que desejavam escutar. Os diferentes barulhos gerados por essa orquestra percussiva eram capturados por microfones, manipulados por um computador e devolvidos, amplificados, aos ouvidos do público. Ao final do evento programado, vários membros da audiência que haviam servido apenas como testemunhas dessa inusitada batucada começaram, entretanto, a querer também participar dela ativamente e dar-lhe continuidade, valendo-se dos instrumentos ainda espalhados no piso ou mesmo do próprio corpo, por meio de chutes e saltos em cima do carro. De ação controlada, a performance deslocou-se para a borda do que não pode ser previsto e, portanto, do que, em ambiente denso de gente, é propício ao desastre. A polifonia anárquica que resultou desse descontrole traduziu em sons, porém, com um grau de desordem que o Chelpa Ferro não poderia ter antecipado, sentimentos que as pessoas que participaram da ação – estando ou não autorizadas – carregam a toda parte, nos quais se misturam desejo e raiva, medo e paixão, luxúria e falta. Autobang amplificou, desse modo, os ruídos estranhos que todo mundo guarda.

 

Sentidos embaralhados

 

O Chelpa Ferro não propõe uma unificação dos sentidos com que se apreende o mundo, limitando-se a indicar a possibilidade de traduzi-los uns nos demais, sem hierarquias definidas e de forma inescapavelmente truncada. Em vez de advogar o apagamento das diferenças entre as faculdades do olhar e da escuta, o que o grupo faz é oferecer, a quem se aproxime de seus trabalhos, um embaralhamento sensorial. O que produz pertence, por isso, menos ao domínio dissolvente da tecnologia digital e mais ao âmbito de dessemelhanças marcadas do analógico.12 Exemplar desse propósito é a instalação On off poltergeist (2007), em que imagens televisadas quaisquer são captadas no momento mesmo em que são vistas juntas no espaço expositivo, sendo exibidas em uma série de monitores antigos colocados sobre caixotes uns próximos aos demais, índice possível da obsolescência a que estão reservados em breve. Som algum, contudo, é ouvido através das saídas de áudio dos televisores, posto que os seus alto-falantes, retirados dos gabinetes, estão reunidos, com o auxílio de cabos extensos, em outro canto da sala. É dali que emitem ruídos para o ambiente inteiro sem o amparo das cenas precisas com que são lançados em ondas ao ar, confrontando a ideia recebida de que som e imagem são uma só coisa. Dispositivos acoplados às televisões, além disso, ligam e desligam periodicamente os sinais sonoros que capturam, como se também a confirmar que as cenas mostradas prescindem de ruídos específicos a cada uma delas para significar algo. É um trabalho, assim, que desmonta materialmente a articulação unívoca e convencional entre algo que se olha e algo que se ouve, sugerindo que os sentidos podem ter uso novo. Movimento aparentemente contrário é operado em 100 metros rasos (2006), em que diversas imagens em vídeo são vistas juntas em combinações que gradualmente mudam, sempre acompanhadas aqui, entretanto, dos sons que lhes correspondem: uma mulher lavando o cabelo, uma betoneira produzindo cimento, alguém disparando um revólver, um canário cantando na gaiola ou mesmo os barulhos que objetos inventados pelo Chelpa Ferro fazem. Todavia, a despeito da identificação possível e em pares das imagens e dos sons exibidos, vê-las e escutá-los em conjuntos cambiantes termina por suscitar cruzamentos involuntários entre o que os sentidos percebem, ensinando que os fenômenos do mundo se entrelaçam de muitas e diferentes maneiras. Qualquer ordenação rígida entre algo que se olha e algo que se ouve é arbitrária e da ordem, portanto, das convenções transitórias em que a vida se ancora.

 

O emaranhado dos sentidos que permeia a produção do grupo tem a sua expressão mais acabada, porém, nas apresentações que faz em palcos desde quase o início de sua trajetória, indicadoras da influência que o ambiente do rock e da música pop exerce sobre os seus membros. Embora o componente sonoro de tais espetáculos lhes seja obviamente central, há neles, como na maior parte de tudo o que o Chelpa Ferro produz, uma dimensão visual não menos relevante e que é manifesta de distintas formas, a começar pelas muitas imagens projetadas em telas durante as apresentações. Nessas projeções, sequências apropriadas de filmes e de vídeos somam-se a outras, produzidas e editadas, com antecedência, pelo próprio grupo, as quais pontuam, exacerbam ou contradizem o que é escutado ao vivo. Mas há, além disso, a projeção de imagens criadas e processadas em tempo real no palco, que registram, para o interesse aguçado do olhar, detalhes da atitude idiossincrática dos integrantes do Chelpa Ferro em processo de invenção de barulhos. Atitude que lhes permite tocar, nesses eventos, instrumentos tradicionais como bateria, guitarra ou trompete, apesar de não possuírem formação musical, ou talvez justamente por essa suposta falta. O que está em jogo na relação com tais artefatos, em todo caso, é menos a habilidade de reproduzir técnicas convencionadas como corretas para tocá-los, e mais a exploração da amplitude sônica que eles guardam. Investigação que envolve fragmentação, repetição, alongamento e outros pro- cedimentos de recriação eletrônica do registro original de seus sons. A vontade de trazer, para essas apresentações, os ruídos que não cabem nos limites usuais da esfera da música induz, ademais, a criação de instrumentos tão inusitados quanto espirituosos, que também cativam o sentido da visão: como o cinzeiro tubular que se transforma em corpo de uma espécie de violoncelo; ou a máquina de costura e o molinete de pesca que fazem girar o fio que batuca o tambor posto entre os dois objetos. Leva, por fim, à incorporação, como geradores legítimos de elementos sonoros, de coisas que, embora façam barulho, são sempre catalogadas como pertencentes ao mundo silencioso da forma. Entre essas, pode estar uma mesa de totó usada no palco para jogar, um espreme- dor de laranjas fazendo suco da fruta ou mesmo um carrinho de pipocas aquecendo o milho na hora. Amplificados, as batidas, o zunido e o espocar que tais objetos produzem se juntam aos sons dos instrumentos tocados (sejam os usuais ou os inventados) e de um longo inventário de outros pré-gravados, sendo oferecidos ao público como algo que se recusa a se enquadrar em rótulos. Algo que pode ser ouvido e visto com interesse idêntico e que pode mesmo, em alguns casos, ser bebido ou comido, como o suco e a pipoca, distribuídos a quem estiver próximo do palco. Ou, ainda, absorvido pelo olfato, como o cheiro que emana das dezenas de varetas de incenso apostas nos vários elementos de uma bateria mantida muda e que são depois queimadas.13

Outro indício da sensação de proximidade ambígua que o Chelpa Ferro nutre em relação ao domínio da música são os dois discos que já lançou: Chelpa Ferro (1996) e Chelpa Ferro II (2004). De modo semelhante ao que acontece nas apresentações ao vivo, as muitas faixas de cada disco oferecem a conjunção de ruídos que não costumam ser escutados juntos, constituindo experiências infrequentes, se não novas, para o ouvinte. São composições que resultam da capacidade dos integrantes do grupo de se abrirem ao campo sonoro contínuo do mundo, absorvendo e transformando aquilo que lhes captura a atenção e que, muitas vezes, não cabe no âmbito convencional da música. São misturas de registros sônicos acústicos e eletrônicos, orgânicos e  elétricos,  apropria- dos já prontos ou frutos de invento, em alusão constante a um espaço de vida multidimensional, incapaz de ser conhecido por um  entendimento  fragmentado  do  que  acontece  no  cotidiano. A variação de timbres, ritmos e atmosferas em cada faixa dos discos – oscilação permanente entre estruturas sonoras reconhecíveis pela cultura hegemônica como música ou ruído – dá a medida da ambição programática do Chelpa Ferro: promover um ambiente sensorial ambivalente capaz de escapar aos  códigos  assentados que definem o que são sons significantes e, em consequência, o que seria o objeto auditivo legítimo. É esse questionamento das fronteiras do domínio sonoro restrito que faz, dos discos do grupo, plataformas  de  transbordamento  para  outros  sentidos,  ativando a memória imagética e invocando, assim, a faculdade do olhar.

 

O fato de, ao contrário das apresentações em palco, não haver nos discos algo para ser visto não torna sua audição, no entanto, uma experiência limitada à esfera da escuta. Eles são, como o próprio Chelpa Ferro gosta de lembrar, “cinema para cegos”. E resumo eloquente da busca constante do grupo de ouvir o barulho que o mundo faz.

 

 

1 KAHN, Douglas. Noise, water, meat. A history of sound in the arts. Londres: The MIT Press, 1999.

 

2 RUSSOLO, Luigi. The art of noise (futurist manifesto, 1913). Nova Iorque: Something Else Press, 1967.

 

3 LABELLE, Brandon. Background noise. Perspectives on sound art. Londres: Continuum, 2006.

 

4 COX, Christoph. Return to form. Artforum, nov. 2003.

 

5 Para um panorama da relação entre a música e as artes visuais na cultura brasileira contemporânea, ver NAVAS, Adolfo Montejo. Plástica sonora (Brasilis). Lápiz, n. 201, 2004.

 

6 De seu início até 2003, o Chelpa Ferro teve como quarto membro do grupo o produtor musical Chico Neves, que também contribuía, a partir de sua especialização profissional, para a reunião contingente de elementos simbólicos díspares.

 

7 Em um primeiro contato com Moby Dick, a instalação parece evocar, em um âmbito de circulação simbólica distinto, a composição 4’33” (1952), de John Cage. Nesta, o músico que interpreta a peça permanece silencioso e imóvel junto a seu instrumento durante o tempo que dá título ao trabalho, fazendo, dos ruídos existentes nos momentos e lugares em que se apresenta, o conteúdo móvel da composição. No trabalho do Chelpa Ferro, porém, aquilo que sonoriza o trabalho não é o que ocorre no entorno, mas o que vem à memória. E, para os mais próximos do trabalho do grupo, a lembrança mais imediata entre todas é a da performance Pilhas (2005), na qual, quase como um Moby Dick às avessas, uma dúzia de baterias são tocadas simultaneamente por trinta minutos.

 

8 COX, Christoph. Lost in translation. Artforum, out. 2005.

 

9 A circularidade entre captação e emissão de sons é patente em mais outros trabalhos do Chelpa Ferro. Em Paraíba (1997), o canto de periquitos presos em uma gaiola é capturado por microfones instalados próximos, transformados eletronicamente e devolvidos, amplificados, ao mesmo ambiente, ao que se seguem novos ciclos. Tanto nesse trabalho como em Maracanã, contudo, os circuitos criados não são fechados, abrindo-se continuamente a novos ruídos, que, emitidos por pessoas ou pássaros, somam-se àqueles que já circulam nos trabalhos.

 

10 Essa característica faz esses e outros trabalhos do Chelpa Ferro dialogarem com a obra de Max Neuhaus, para quem os sons permitem amalgamar tempo e espaço de modo a não poder-se mais distinguir entre uma dimensão e outra. Para uma apresentação sucinta da obra do artista norte-americano, ver LABELLE, Brandon. Background noise. Perspectives on sound art. Londres: Continuum, 2006.

 

11 VISCONTI, Jacopo Crivelli. A impossibilidade do som. In: HUG, A.; MAGALHÃES, A. (Ed.). Pavilhão do Brasil – 51ª Bienal de Veneza. Caio Reisewitz – Chelpa Ferro. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2005.

 

12 COX, Christoph. Lost in translation. Artforum, out. 2005.

 

13 É nas apresentações de palco que mais se evidenciam as influências cruzadas presentes no trabalho do Chelpa Ferro, incluindo, além das várias já mencionadas, a iconoclastia musical e performática do brasileiro Hermeto Pascoal, o experimentalismo ruidoso do álbum Metal machine music (Lou Reed) e o humor presente nos objetos sonoros criados, a partir da década de 1960, pelo suíço-brasileiro Walter Smetak.

A INDÚSTRIA E A POESIA

A INDÚSTRIA E A POESIA

Cildo Meireles

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

É improvável encontrar, na trajetória de Cildo Meireles, um suporte, um tema ou uma filiação artística que resuma ou traduza o conjunto diverso de seus trabalhos. Iniciada ainda na década de 1960, sua obra desdobra e adensa, entretanto, alguns poucos postulados cognitivos (por exemplo, a sinestesia como relação privilegiada para o conhecimento  de  algo)  e  um  elenco  coeso de crenças éticas (por exemplo, a valoração da ação individual frente  à  homogeneização  das  esferas  da  economia,  da  política e da cultura).1  Diante de quaisquer de seus trabalhos, portanto, é sempre possível traçar, apesar de suas aparentes diferenças, relações de contiguidade com vários outros em termos do que partilham em método e intenção, dessa forma esclarecendo-os mutuamente. É nesse sentido que, partindo do trabalho apre- sentado pelo artista na Documenta 11 (Kassel, Alemanha, 2002) – Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido –, julga-se ser pro- cedente esboçar, de forma sintética, as características que o avizinham de outros momentos de sua produção. Tal procedimento não somente explicita sentidos que esse trabalho, tomado isoladamente, apenas sugere  (apesar  de  contê-los  plenamente em potência), como também torna clara a atualização que, por meio dele, Cildo Meireles faz da relação entre arte e política.

 

Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido consistiu da instalação temporária, coordenada pelo artista, de uma pequena fábrica de picolés em Kassel (incluindo a criação de uma logomarca para a empresa, a aquisição de equipamentos e insumos, e o estabelecimento de relações contratuais com fornecedores e funcionários) e da venda de sua produção em diversos carrinhos que circularam, durante todo o tempo de funcionamento da mostra, nos espaços públicos da cidade.2 Embora os picolés fossem vendidos em embalagens de cores distintas (cinza, azul ou verde), possuíssem formatos variados e fossem sustentados por palitos plásticos também diversos em cores e formas, todos eles eram feitos tão somente de água, sem sabor adicional algum. À medida que eram consumidos ou simplesmente derretiam sob o calor do verão, iam deixando à vista uma inscrição, feita em baixo relevo, em um dos lados do palito: elemento desaparecendo; uma vez totalmente consumidos ou derretidos, revelavam, gravado no lado oposto do palito, uma segunda inscrição: elemento desaparecido.

 

Talvez a primeira questão que o trabalho propunha para quem com ele interagia nas ruas de Kassel fosse a de sua natureza. Mesmo considerando a multiplicidade de modos em que a produção contemporânea se apresenta ao observador / participante (objeto, instalação, performance ou, entre outros diversos meios, apenas uma ideia), o trabalho de Cildo Meireles não permitia um enquadramento preciso em categorias estanques ou mesmo em um conjunto definido delas. Embora possuísse um elemento performático (envolvendo uma cadeia extensa de pessoas que produziam e distribuíam, uniformizadas, os picolés), punha ênfase grande também no objeto sólido que oferecia ao consumo; era justamente esse objeto, contudo, que gradualmente desaparecia para que a inscrição se tornasse visível e o trabalho se completasse diante dos olhos de quem o consumia. Mesmo sua inclusão em uma exposição de arte certamente pareceu estranha a alguns, inclinados talvez a enquadrá-lo apenas como um manifesto político que alertava sobre a escassez crescente da água potável no mundo. Assumindo sua catalogação incerta, o título já reivindicava – no emprego conjunto do gerúndio e do passado do verbo desaparecer – seu caráter processual: destituído de uma temporalidade precisa, o trabalho só se constituía durante a extensão de tempo necessária para que o circuito que ele instaurava (produção, distribuição e consumo dos picolés) se completasse e, com a receita monetária assim gerada, se renovasse continuamente.

O uso da noção de circuito para dar materialidade e sentido a trabalhos de arte não é novo na obra de Cildo Meireles. Em textos escritos na primeira metade da década de 1970, o artista já identificava a existência de amplos sistemas de circulação nos quais seria possível inserir, individualmente e sem cerceamento algum, informações contrárias aos próprios interesses que fundamentam esses sistemas.3 Uma das primeiras demonstrações materiais do que sugeria foi apresentada na mostra Information (Museum of Modern Art, Nova Iorque, 1970), em que expôs Inserções em circuitos ideológicos 1Projeto Coca-Cola e Inserções em circuitos ideológicos 2 Projeto cédula.4 O Projeto Coca-Cola consistia da impressão, em vasilhames vazios do refrigerante (nessa época feitos de vidro e retornáveis ao fabricante para reaproveitamento), de mensagens contrárias ao efeito “anestesiante” daquela (e de qualquer outra) mercadoria, e de sua devolução, em seguida, à circulação mercantil. Como exemplo e demonstração de que esse trabalho de contrainformação podia ser reproduzido por qualquer pessoa, Cildo Meireles apresentou, na exposição, garrafas sobre as quais havia imprimido conhecido slogan de repúdio à política de intervenção econômica, política e cultural norte-americana (yankees, go home), além de instruções sobre como o público deveria proceder para inserir as próprias “opiniões críticas” no espaço reificado onde vivia e do qual a Coca-Cola seria símbolo. O Projeto cédula, por sua vez, consistia de ações em que serigrafava – ou, como passou a fazer posteriormente, carimbava –, sobre cédulas de dinheiro circulante, instruções e mensagens semelhantes  às  impressas nas garrafas, inserindo-as, como se fossem “parasitas” simbólicos, no circuito das trocas monetárias, muito mais extenso e veloz do que o circuito de trocas de vasilhames de Coca-Cola. Entre as mais conhecidas mensagens que veiculou ao longo dos anos, incluíam-se críticas ao então regime ditatorial brasileiro (Quem matou Herzog?, inquiria a frase impressa na cédula emitida pelo Estado, em uma referência às causas não esclarecidas da morte do jornalista Wladimir Herzog enquanto se encontrava detido pelos órgãos de repressão política) e questionamentos sobre as próprias convenções que delimitam o espaço socialmente destinado à arte (Which is the place of the work of art?).

 

Para o artista, esses trabalhos seriam o avesso da operação por meio da qual Marcel Duchamp criara o ready-made quase seis décadas antes: em vez de subtrair um objeto do campo mercantil e colocá-lo no campo consagrado da arte, Cildo Meireles propunha a inserção de informações ruidosas no campo homogêneo em que as mercadorias circulam e se trocam. Questionava, ademais, a noção de autoria do próprio trabalho, posto que estimulava outros a fazer tais inserções em seu lugar mediante as instruções de procedimento que fornecia.5 De fato, seria somente a partir da expressão individual, anônima e difusa perante os vastos mecanismos de controle social em curso que o trabalho ganharia pleno sentido e eficácia, o que faz das Inserções em circuitos ideológicos menos suporte de propaganda do que proposição de uma atitude distinta em relação ao espaço político.6 A participação do público (efetiva ou potencial) desempenharia, desde então, papel fundamental no desenvolvimento da obra do artista.

 

Foi como uma radicalização do caráter transgressor presente nas Inserções em circuitos ideológicos que Cildo Meireles realizou, a partir de 1971, as Inserções em circuitos antropológicos. Nesse trabalho, não eram mais mensagens que desejava inserir em sistemas de circulação e troca já existentes, mas objetos fabricados por ele e por quem mais o desejasse (o trabalho consistia, basicamente, de instruções de produção), destinados a relacionar-se com tais sistemas de forma crítica. Exemplos dessas inserções foram a confecção, pelo artista, de fichas telefônicas e de transporte público recortadas em linóleo ou, posteriormente, a construção de moldes para a fabricação das mesmas fichas com argila, as quais eram aceitas pelas máquinas destinadas a receber as fichas originais, feitas em metal.7 Uma vez que essas falsas fichas fossem distribuídas em larga escala e efetivamente usadas para descumprir a lei, estariam afetando, também, o comportamento regulado dos usuários dos sistemas de comunicações e transporte.

 

O trabalho Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido possui evidentes pontos de contato com os demais acima descritos. Em termos gerais, o processo de fabricação, circulação e consumo dos picolés estabelece laços com o sistema integrado de trocas mercantis do qual tanto garrafas de Coca-Cola e cédulas de dinheiro como fichas de telefone e transporte também faziam parte. Além disso, todos eles despertam, no público, a ideia de que é possível relacionar-se ativamente com os circuitos que compõem tal sistema. Em relação aos mecanismos de inserção nessa estrutura ampla, contudo, Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido soma aspectos que são específicos a cada um dos dois outros trabalhos. Por um lado, os palitos de picolé carregam mensagens escritas com explícito conteúdo crítico, assim como ocorria com as garrafas e as cédulas utilizadas para a realização das Inserções em circuitos ideológicos. Por outro lado, o picolé é um objeto fabricado inserido em um sistema de circulação de valores preexistente, tal como o eram as fichas de Inserções em circuitos antropológicos.8

 

Outro aspecto que aproxima esses três trabalhos é a discussão que implicitamente promovem acerca daquilo que distingue o objeto artístico dos demais. De maneiras diferentes, eles evocam a operação tantas vezes feita por artistas pop de fundir mercadoria e arte. Ao contrário daqueles, porém, fazem essa identificação apenas para denunciar ou subverter os valores simbolicamente veiculados no circuito mercantil; para opor, por demasiada proximidade, arte e mercadoria.9 Adicionalmente, todos eles recusam a consagração usualmente concedida à produção artística material, evocando as estratégias conceitualistas surgidas na década de 1960 que visavam a progressiva “desmaterialização” da obra de arte e a sua potencial transformação em ideia ou “prática”.10 Garrafas de Coca-Cola e cédulas de dinheiro com mensagens impressas, fichas feitas de linóleo ou barro, ou ainda palitos de picolé com inscrições ecológicas não são, efetivamente, os trabalhos de Cildo Meireles discutidos aqui, mas apenas os rastros de inserções silenciosas que promoveu (direta ou indiretamente) em sistemas mercantis e institucionais. Se as garrafas, cédulas e fichas só se tornam o trabalho do artista quando “desaparecem” da esfera de pertenci- mento do emissor e voltam/passam a circular nas redes de troca de mercadorias, o trabalho apresentado em Kassel só se realiza plenamente quando sua face mais visível e pública – o próprio picolé – é efetivamente consumida, e a mensagem escrita que a água congelada escondia – a afirmação de seu desaparecimento simultâneo como elemento natural e como objeto – pode ser lida. Todos esses trabalhos trazem, portanto, uma  ambivalência  que lhes é constitutiva: solicitam a participação do público na construção de objetos simbólicos ou lhe oferecem, por uma quantia módica (o picolé de água custava um euro), objetos feitos pelo próprio artista, pedindo, ao mesmo tempo, que deles se desfaça ou que os consuma para que as criações ganhem pleno sentido. Negando permanência física a tais objetos – veículos de uma obra baseada em ideias de fluxo –, Cildo Meireles põe ênfase na possibilidade de usar os circuitos e redes que fundam e regulam as relações econômicas e políticas do mundo contemporâneo como plataformas de construção de um enunciado artístico.

 

Ao instituir uma fábrica (de picolés), porém, o trabalho apresentado em Kassel difere dos demais citados, pois, além de promover a inserção de mensagens e objetos em circuitos já existentes, replica, em uma  escala  reduzida,  a  estrutura  básica  do  sistema que produz e faz circular mercadorias. Estabelece, assim, de modo ainda mais orgânico do que os outros trabalhos, uma relação com o espaço em que o valor monetário é gerado e comumente apropriado por segmentos  sociais  distintos.  A  esse  respeito,  há  um  aspecto de Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido que, embora não divulgado no corpo do próprio trabalho – mas revelado no catálogo da mostra –,11 deve ser aqui  notado.  Na  constituição  da  empresa que produzia e distribuía os picolés, ficou desde o início acordado que os rendimentos líquidos da venda do produto (descontados os custos variáveis de produção e comercialização) seriam integral- mente distribuídos entre os funcionários envolvidos, subvertendo, assim, a lógica de apropriação e acumulação de valor em que se ancora a produção capitalista. Considerando o desgaste natural e progressivo  das  máquinas  utilizadas,  a  consequente  necessidade de reposição gradual de equipamentos, e a decisão de não constituir ou  prover  fundos  para  investimentos,  é  possível  afirmar  que o trabalho já embutia um mecanismo entrópico de dissipação do valor gerado que causaria, no longo prazo (muito além, contudo, do tempo que durou a mostra), a cessação de rendimentos e a inevitável  paralisação  de  sua  operação  comercial.  A  discussão da desmaterialização da obra de arte, então, estaria sendo aqui conduzida não apenas em relação ao objeto que o sistema criado pelo artista produz – nesse caso, o picolé de água –, mas, de modo radical e reflexivo, em  relação  ao  próprio  aparato  produtivo  por ele constituído para gerar o objeto comercializado. Por sua materialidade transiente, também a fábrica, portanto (e não apenas os picolés que produzia), pode ser entendida como uma metáfora da crescente indisponibilidade de água potável no mundo, elemento ameaçado de extinção (desaparecendo) e sob risco de tornar-se, salvo se forem tomadas medidas de provisão e de uso racional das reservas naturais ainda existentes, o cerne de um grave problema político (quando houver, finalmente, desaparecido).

 

Essa questão aproxima Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido de outro trabalho de Cildo Meireles, intitulado Eppur si Muove e criado por ocasião da mostra Pour la Suite du Monde (Musée d’Art Contemporain, Montreal, 1992). Esse trabalho se resumia à promoção de sucessivas trocas entre uma quantia inicial de mil dólares canadenses e outras moedas nacionais (libras esterlinas e francos franceses), a cada vez reconvertendo, no padrão monetário canadense, o dinheiro previamente cambiado. As perdas implícitas em tais operações – decorrentes das diferenças entre as cotações de venda e compra das moedas utilizadas – seriam acumuladas até o ponto de virtual desaparecimento do montante com que se haviam iniciado as trocas. No interior do espaço físico da exposição, eram mostradas apenas a quantia de dinheiro que sobrou ao fim de mais de uma centena de transações realizadas no espaço virtual do mercado financeiro (pouco mais de quatro dólares canadenses, valor inferior ao mínimo necessário para dar seguimento ao câmbio com as outras moedas utilizadas) e a documentação bancária que registrava todas as permutas feitas, cada conjunto desses vestígios sendo apresentado em pequenos cofres de vidro transparente (um terceiro cofre continha quantia igual à que havia restado após o processo de trocas, simulacro que rompia a lógica sequencial do trabalho).12 Demonstrando os mecanismos de perda de valor associados tão somente a trocas monetárias entre equivalentes, Eppur si Muove antecipava, em um grau de abstração maior, o que o trabalho feito para a Documenta 11 iria tratar como algo inerente à sua própria constituição física e empresarial, e, também, como comentário sobre um fato específico: o gradual desaparecimento de um elemento necessário à vida causado por seu uso desregulado.

 

De modos distintos, ambos os trabalhos apresentam um discurso crítico sobre o sistema de geração, permuta e desperdício de valor (geral e de uso) que move o mundo da produção mercantil. Não cabe nessas proposições artísticas, contudo, a ilusão de que, apenas por quase não deixarem rastros materiais, não estariam elas mesmas sujeitas a serem capturadas pelo circuito de valoração monetária. Essa percepção da subordinação do objeto de arte aos mecanismos de geração de riquezas está presente já no trabalho Árvore do dinheiro (1969), em que o artista expôs, sobre uma base museológica, cem cédulas de um cruzeiro, retiradas da circulação fiduciária do Brasil e inseridas – dessa vez conforme o clássico gesto de Marcel Duchamp – no campo artístico. Junto a elas, acresceu um breve texto em que se lia: “100 notas de 1 cruzeiro. Preço: 2 mil cruzeiros”. Se, até então, o valor de uso daquelas cédulas estava em ser poder geral de compra equivalente, em termos monetários, a 100 cruzeiros, com essa ação Cildo Meireles cancelou tal paridade e multiplicou seu valor de troca no mundo mercantil. A posterior “emissão” das cédulas de Zero Cruzeiro (1974- 1978) reafirmou, com ironia próxima do absurdo, o processo de mercantilização da arte: embora estampando seu valor de face nulo, as notas de Zero Cruzeiro – um objeto artístico – possuem valor de troca positivo. A despeito, portanto, do destaque dado seja à gradual desaparição, à inexpressividade física ou, ainda, à ausência aparente de serventia de alguns de seus trabalhos, o artista enfatiza a permanência da dimensão simbólica do objeto de arte e, como consequência, a autonomização de sua valoração monetária pelo campo da arte.13

 

Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido afirma, além disso, outro paradoxo recorrente na obra de Cildo Meireles. Por um lado, promove a extensão, para a esfera dos negócios, da ideia – fundamental aos trabalhos das Inserções – de que o gesto individual e autônomo  pode  ressoar  nos  complexos  circuitos  que  estruturam e moldam a vida pública. Ao instalar a modesta fábrica de picolés em Kassel e fazer dos produtores e vendedores seus únicos “acionistas”, o artista  exemplifica o potencial de sobrevivência dos pequenos negócios em meio  a  grandes  empreendedores. É como se trouxesse, para a escala humana e da cidade, vários dos seus camelôs, trabalho múltiplo que consiste de uma edição  de mil pequenos bonecos motorizados que têm, diante de si, duas bancas em miniatura semelhantes às dos verdadeiros vendedores ambulantes encontráveis em centros urbanos: uma contendo mil alfinetes e a outra contendo mil barbatanas  plásticas  para  colarinhos de camisa, índices da efetiva participação do que é ínfimo em extensos circuitos mercantis.14 Se a eles fosse dada a vida em Kassel,   contudo, os bonecos-camelôs empurrariam carrinhos em vez de postar-se em frente às bancas e venderiam, em vez de alfinetes e barbatanas plásticas, apenas  picolés de água. Além das Inserções e do Camelô (1998) – classificado ironicamente por Cildo Meireles como modelo exemplar do “humiliminimalismo” (neologismo que une as palavras humilde e minimalismo) –, também o trabalho Cruzeiro do Sul (1969-1970) se funda na ideia de que uma relação escalar desfavorável não implica, necessariamente, uma subjugação (econômica, política ou cultural) do menor ao maior. Formado por um cubo de 9 mm de lado feito de carvalho e pinho – madeiras sagradas para os índios Tupi devido ao fato de, quando postas em atrito, gerarem fogo e, de acordo com sua cosmogonia, evocarem assim o divino –, o artista sugere que o mesmo seja instalado em uma área mínima de duzentos metros quadrados. Menos do que fazer desaparecer o diminuto cubo, o desproporcional espaço vazio que o envolve indica o tamanho da força simbólica que um objeto tão miúdo pode potencialmente embutir.

 

Por outro lado, porém, o fato de implicitamente desvelar que o pequeno negócio que instalou para fabricar e vender picolés é, no longo prazo, economicamente inviável parece ser um reconhecimento (seja ele voluntário ou não) do reduzido poder de intervenção eficaz do indivíduo (ou artista) nos grandes sistemas de circulação de valores físicos e simbólicos (incluindo o circuito da arte) e, consequentemente, nos governos e corporações (e também, no caso do artista, nos museus de arte, outras instituições e galerias privadas) que o controlam.15  Não é à toa que os picolés de Cildo Meireles derretem ao calor do sol e seus camelôs medem apenas um palmo e são feitos de matéria frágil e mole. Classificados por ele mesmo como “poemas industriais”,16 esses dois trabalhos parecem atestar, pela precariedade evidente dos objetos que lhes dão corpo, a batalha desigual da poesia contra a indústria. Também relacionado, como o Cruzeiro do Sul, à questão indígena, Sal sem carne (1975) – disco vinil que reúne e confronta, em canais de áudio distintos, registros sonoros de remanescentes de um massacre de índios craós e outros associados à cultura ocidental – deixa poucas dúvidas sobre o reduzido poder das mino- rias indígenas frente ao colonizador branco que, historicamente, as elimina ou as segrega, induzindo-as às forças entrópicas da doença e da desesperança.17

 

A contradição aparente dos sinais emitidos por esses trabalhos se resolve, na (po)ética do artista, por meio do que denomina dinâmica do “gueto”, espaço de exclusão que gera, da própria pressão a que os que estão dentro dele são submetidos, a energia necessária à superação de situações de assimetria de poder e de consequente marginalização de quem é diferente ou despossuído.18 Sem se deixar enganar quanto à capacidade efetiva de mudança contida nas ideias e nos pequenos gestos individuais, Cildo Meireles parece tampouco disposto, portanto, a abdicar da dimensão utópica neles contida, inserindo, nas fissuras simbólicas que encontra ou cria nos sistemas de regulação social, ruídos que desconcertam expectativas acordadas ou forçam sua reformulação. Dotado dessa ambiguidade de sentidos, Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido atualiza, no âmbito de sua obra, a discussão sobre os limites entre os campos da arte e da política na contemporaneidade, ratificando algumas das radicais mudanças ocorridas, desde a década de 1960, nessas duas esferas de ação e de conhecimento.

 

Em relação às transformações do campo da arte, esse trabalho é exemplar da relativização do interesse antes nutrido pelas características puramente formais do objeto de arte ou, alternativamente, da vontade de subsumir tudo o mais ao tema, escapando do reducionismo binário que opunha a forma ao assunto. Sem se render à ideia de pertencimento a um só âmbito expressivo, ele se situa no território frágil e efêmero onde ocorrem as trocas entre lugares simbólicos distintos; território em que a arte e os espaços da vida cotidiana (o corpo, a economia, a política) se tocam e se misturam. Impõe-se, ademais, como representante legítimo da tradição criada por artistas latino-americanos a partir daquele decênio, a qual alia o interesse por estratégias conceitualistas ao compromisso ético de situar-se criticamente em relação às estruturas sociopolíticas vigentes; tradição que faz, do invento artístico que beira a dissolução física, ato indissociável da vontade de (re)inventar o mundo.19

 

O campo da política também passou por transformações significativas no mesmo período, causando uma dissolução progressiva dos limites em que se situava e se entendia seu funcionamento. O surgimento e a consolidação dos movimentos de direitos civis (das mulheres, dos negros, dos homossexuais), o fortalecimento da consciência ecológica e as questões antigas que o processo de globalização econômica e cultural atualiza (quebra de fronteiras, nacionalismo, reconstrução identitária) forçaram o alargamento conceitual do que se entende como a esfera da política e das formas de atuação a partir de seu centro. Relações de antagonismo comompoder civil versus poder de Estado, indivíduo versus coletividade ou privado versus público passam a ser problematizadas ou desfeitas, aproximando, de modo similar ao que acontece no campo da arte, política e vida comum.

 

Em função dessas mudanças, a interação entre os espaços da arte e da política contemporâneas é complexa e porosa, existindo diversas possibilidades de enunciar um discurso crítico que transite entre esses espaços sem afirmar apenas um de seus polos.20 É nesse contexto que Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido busca ampliar a percepção pública de uma das mais importantes questões da agenda política atual sem se tornar, por isso, instrumento de propaganda rasa ou mero meio para divulgar conhecimentos gerados na esfera da produção científica. Ao circularem pelas vias e praças de Kassel que ligavam os diversos espaços institucionais onde se realizava a Documenta 11, os carrinhos que vendiam os picolés de água também percorriam, a um só tempo e sem distinção alguma, o circuito da arte, o da circulação de mercadorias e o de manifestações políticas. À medida que o picolé de água derretia ou era consumido, desmanchava-se, também, a possibilidade de inseri-lo, como objeto íntegro, no mercado de arte; paradoxalmente, era só assim, materialmente destruído, que ele adquiria poder simbólico e lograva apontar, de modo inequívoco, a crescente exiguidade de um elemento vital que poderá ser, em tempos menos ou mais distantes, a razão de conflitos. Colocando em contato simultâneo estímulos sensoriais diversos (visuais, gustativos, táteis) e a racionalidade política, o artista logra criar, nesse trabalho (e nos muitos outros que lhe são contíguos em estratégia), os fundamentos para uma percepção crítica e transdisciplinar do mundo em que vive.

 

 

1 Sobre a centralidade das relações sinestésicas na obra de Cildo Meireles, ver CABAÑAS, Kaira M. Cildo Meireles: “La conscience dans l’anesthésie”. Parachute, n. 110, 2003.

 

2 A Documenta 11 foi realizada entre 8 de junho e 15 de setembro de 2002 em cinco diferentes espaços expositivos na cidade de Kassel (Alemanha). Os carrinhos que vendiam os picolés eram encontráveis próximos a esses espaços ou em trânsito entre eles.

 

3 Ver os textos reunidos sob o título genérico “Inserções em circuitos ideológicos 1970-75”. In: Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naify, 2000. p. 110-116.

 

4 Os trabalhos Inserções em circuitos ideológicos 1Projeto Coca-Cola e Inserções em circuitos ideológicos 2Projeto cédula foram expostos, simultaneamente, na mostra Agnus Dei: Thereza Simões, Guilherme Magalhães Vaz e Cildo Meireles (Petite Galerie, Rio de Janeiro, 1970).

 

5 A esses trabalhos que podem ser realizados por qualquer pessoa a partir das instruções escritas que fornece, Cildo Meireles atribui a designação genérica “fonômenos”, em uma alusão conjunta às palavras fonema e fenômeno. Ver MEIRELES, Cildo. In: OBRIST, H. U. Interviews, Volume I. Milão: Charta, 2003. p. 581.

 

6 Cildo Meireles. Valência: IVAM Centre del Carme, 1995. p. 106.

 

7 Entrevista concedida ao autor em 4 de junho de 2003.

 

8 A extensão espaço-temporal dos circuitos usados ou criados por esses trabalhos é indeterminada, dependendo do movimento de adesão aos mesmos pelo público. Ver: JAUKKURI, Maaretta. Variações sobre o tempo. In: Cildo Meireles. Strasbourg: Musée d’Art Contemporain de Strasbourg, 2003. p. 116.

 

9 Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naify, 2000. p. 112.

 

10 Em relação a esse tópico, ver LIPPARD, Lucy. Six years: the dematerialization of the art object from 1966 to 1972. Los Angeles: University of California Press, 1973.

 

11 Documenta11 – Platform 5: Ausstellung / Exhibition. Kurzführer

/ Short guide. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz, 2002. p. 156.

 

12 MEIRELES, Cildo. Notas. In: Cildo Meireles. Strasbourg: Musée d’Art Contemporain de Strasbourg, 2003. p. 133.

 

13 O processo de institucionalização das práticas e estratégias conceitualistas, incluindo sua transformação em mercadorias pelo campo das artes, é discutido em RAMÍREZ, Mari Carmen. Rematerialização. In: Universalis: 23ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1996. p. 178-189.

 

14 O Camelô (1998) remete às lembranças de infância do artista, que então “achava incompreensível, e ao mesmo tempo atraente e estranho, que alguém pudesse viver vendendo esses objetos tão insignificantes”. Cildo Meireles, geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2001. p. 52-54.

 

15 Em 1970, logo após a primeira exibição pública de Inserções em circuitos ideológicos 1 – Projeto Coca-Cola (ver nota 4), o crítico Frederico Morais realizou, pelo período de uma noite apenas e na mesma sala da exibição original dos objetos, a exposição Nova Crítica, em que colocava algumas poucas garrafas serigrafadas com as mensagens propostas pelo artista junto a 15 mil outros vasilhames vazios de Coca-Cola, em uma demonstração inequívoca do desequilíbrio de forças envolvido naquele trabalho.

 

16 Entrevista concedida ao autor em 4 de junho de 2003.

 

17 Outros dois trabalhos do artista que remetem à dizimação física e cultural dos ameríndios pelos colonizadores europeus são Missão missões/Como construir catedrais (1987) e Oblívio (1987/1989). Deve ser ainda lembrado que Cildo Meireles faz parte de uma família de indigenistas, o que certamente o informou e influenciou no trato do assunto.

 

18 Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naify, 2000.

 

19 Para uma análise das principais características dessa tradição, ver RAMÍREZ, Mari Carmen. Tactics for thriving on adversity: conceptualism in Latin America, 1960-1980. In: CAMNITZER, L.; FARVER, J.; WEISS, R. (Org.). Global conceptualism: points of origin, 1950s-1980s. Nova Iorque: Queens Museum of Art, 1999. p. 53-71.

 

20 A percepção do progressivo desmanche de fronteiras entre os campos da arte e da política pode ser exemplificada pela inclusão do grupo ecológico Greenpeace entre os selecionados para a terceira edição da bienal internacional Site Santa Fé, EUA, realizada em 1999. Segundo a curadora do evento, Rosa Martinez, os integrantes do Greenpeace apropriam-se de “estratégias extremamente efetivas de comunicação e de performance” para “intervir na realidade e transformá-la”; a única diferença entre esses ativistas e os demais convidados da exposição seria, ainda em sua opinião, o fato de eles não se autoproclamarem artistas. Ver: Launching site. Artforum, summer 1999. p. 39-42.

BABEL

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Cildo Meireles

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Em um de seus contos mais conhecidos, Jorge Luis Borges descreve o momento em que o narrador da história, sentado no piso de um porão e olhando para um ponto preciso alguns metros acima, consegue enxergar um Aleph, “lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos”.1 Como essa, há várias passagens na obra do escritor argentino que desvelam um desejo de inventar dispositivos que confrontem códigos rígidos de perceber o mundo, incapazes de apreender a fluidez com que o corpo o percorre e experimenta. Embora apresente uma solução de formalização singular para cada projeto imaginado, Cildo Meireles também se ocupa, desde quase o início de sua trajetória, em discutir criticamente a ideia convencional de espaço em que se desenrola a vida humana – quer em sua dimensão física e cotidiana, quer em uma perspectiva política e de temporalidade ampliada –, afastando maneiras redutoras ou circunscritas de topografar territórios. Para tanto, o artista exercita – por meio de seus trabalhos – um método de investigação do mundo que, em vez de ater-se somente ao campo da percepção retiniana, apoia-se na “síntese entre relações sensoriais e mentais”, de modo que os sentidos e a razão estimulem uns aos outros e produzam, juntos, a cognição de espaços que se habitam ou que só se concebem.2 Um método que não possui, porém, um objetivo e uma duração precisos, posto que se am- para na investigação sem fim certo e se abre, portanto, ao que é ainda desconhecido. Um método, por último e por isso, apto não somente a inquirir a topologia do mundo de outras formas, mas também a acolher e a expor as diferenças que o outro gera.3

 

Um dos primeiros trabalhos em que Cildo Meireles demonstra tal interesse é Espaços virtuais: cantos (1967-68), série de objetos que produzem a ilusão da ortogonalidade de ambientes domésticos (cantos de sala ou quarto) a partir do deslocamento do corpo em relação aos planos não ortogonais que efetivamente os constituem. É apenas  quando  observadas  de  uma  determinada  posição  que a aparência  dessas  construções  e  a  ortogonalidade  que  preside a ideia dos espaços que elas representam coincidem, violando, dessa maneira, qualquer associação estável entre a percepção e o conceito de um lugar. Confluem, nesses objetos, duas questões que permeiam parte relevante da obra do artista: a insatisfação com a sintaxe euclidiana do espaço – instrumento de mapear e explicar o mundo em três bem definidas dimensões – e a utilização de um signo recolhido na vida ordinária para articular experiências dos sentidos e formulações conceituais. Outro trabalho que, produzido pouco depois, reclama a noção de espaço como fluxo e recusa apor-lhe forma ou extensão definidas é Mebs/Caraxia (1970-71), registro em disco da conversão – feita com o auxílio de um oscilador de frequência – dos gráficos topológicos de uma fita de Moebius (daí o nome Mebs) e de uma espiral (Caraxia combina as palavras caracol e galáxia) em elementos sonoros. A escolha das figuras tomadas como enunciados de origem nesta translação se deve ao fato de elas não possuírem lados identificáveis e de não ser possível determinar onde começam  ou  terminam,  o que impede que sejam descritas por uma geometria ancorada na tridimensionalidade. Apresentadas como ruído somente, a incompatibilidade entre tais figuras e o homogêneo espaço euclidiano se torna ainda mais manifesta.

 

O desconforto com um entendimento invariável do espaço físico e também político está exemplarmente presente, por sua vez, no trabalho Cruzeiro do Sul (1969), cubo de 9 mm de lado – metade dele feita de carvalho e a outra metade feita de pinho – que Cildo Meireles propõe colocar sobre o chão, sem nada mais em seu entorno, em uma área mínima de duzentos metros quadrados. Apenas a desproporção escalar entre o objeto e o ambiente onde é mostrado já instaura a dúvida, no visitante, acerca do que é, de fato, ser pequeno ou grande, ou de qual é a medida que fixa a dimensão ou o limite de algo. É recorrente na obra do artista, entretanto, a eleição de materiais que ampliem os significados possíveis de cada trabalho, subvertendo leituras apoiadas somente em sua materialidade ou em sua suposta autorreferência. O carvalho e o pinho não foram escolhidos como matérias-primas ao acaso, mas por serem madeiras que, ao produzir fogo quando postas em atrito, teriam o poder de invocar o divino na cosmogonia dos índios Tupi.4 Menos do que subsumir o diminuto cubo, portanto, o relativamente imenso espaço vazio que o circunda indica a extensão da força simbólica que a partilha imaterial de uma crença potencialmente embute. E o fato de as civilizações ameríndias terem sido dizimadas por colonizadores europeus na América do Sul só atesta a potência crítica que esse vão quase deserto pode assumir.5

 

No processo de colonização das terras e das mentes de povos americanos nativos, coube aos catequizadores jesuítas a consciente tarefa de enfraquecer – sempre que necessário com recorrência à força – a ideia de universo que mantinha aqueles coesos, papel que Cildo Meireles sublinha, sem ambiguidades, no trabalho Missão/ Missões (como construir catedrais) (1987). No interior de um ambiente delimitado por um tecido negro e solene, um opressivo conjunto de 2 mil ossos pendurados no teto é índice claro da violência sofrida pelos indígenas, assim como as cerca de 600 mil moedas arranjadas sobre o piso sugerem os motivos desse extermínio. Ligando uns às outras, uma evanescente coluna feita de hóstias lembra que o poder espiritual apazigua, por vezes, tragédia e ambição sem medida. De modo ainda mais evidente do que em Cruzeiro do Sul, também aqui os materiais usados possuem conotações simbólicas que se somam às suas qualidades como matérias- primas, despertando a cognição intelectual e, ao mesmo tempo, seduzindo os sentidos.

 

A instalação Sal sem carne (1975) atualiza a história de expropriação do território de um povo – por meio da qual um outro território se cria – e assevera a vontade do artista de redimensionar a ideia do espaço que se experimenta na vida. Amarrados a fios presos no alto, dezenas de monóculos oferecem ao visitante a experiência de, ao manusear cada um desses pequenos objetos, examinar, alternadamente, fotografias de índios craós – ao menos um deles sobrevivente de um massacre sofrido por sua tribo na década de 1940 – e de habitantes e visitantes da cidade de Trindade, Centro-Oeste do Brasil, próxima de onde, movida por interesses fundiários de fazendeiros da região, teria partido a ordem para aquele ataque aos indígenas.6 Esse contraste visual é acompanhado da audição de um disco que reúne, e simultaneamente confronta, em oito canais de áudio distintos, registros sonoros associados à cultura nativa do lugar (a fala de um índio craó, música aborígine) e à cultura do Ocidente (a celebração da missa em uma romaria, informação das horas transmitida ininterruptamente por uma rádio). Após algum tempo observando as fotografias e escutando os sons gravados, a definição rígida e antagônica desses campos sociais é, todavia, desafiada, posto que a memória visual e a auditiva os embaralham e os articulam de maneiras novas e distintas.7

 

Embora exponha a violência continuada contra os índios do país, o trabalho também aventa, portanto – por meio das imagens e dos sons que se sobrepõem e se confundem quando aproximados –, a construção gradual de uma cultura híbrida, incontrastável quer com a cultura indígena, quer com a cultura ocidental. Hibridismo que resultaria de uma aproximação entre desiguais que não se completa nunca, abrindo um “terceiro espaço” de negociação e convívio entre diferenças que não se conciliam.8 Entre a submissão completa a uma cultura homogeneizante e a afirmação já impossível de uma tradição vernacular, instaurar- se-ia, então, um intervalo de recriação e reinscrição identitária de um território que seria irredutível a um ou a outro desses polos extremados. Essa construção não seria, contudo, concedida pelo opressor, mas fruto do que Cildo Meireles denomina de dinâmica do “gueto”, lugar de exclusão que gera, da própria pressão a que são submetidos os que estão dentro dele, a energia necessária à superação de situações de assimetria de poder e de consequente marginalização de quem é diferente ou despossuído.9

 

A afirmação do caráter híbrido da cultura através de relações sinestésicas entre os campos do olhar e da escuta está igualmente presente no desmanche que o artista promove, nas instalações Babel (2001) e Marulho (1997), da concepção de espaços nacionais e regionais como lugares simbólicos bem definidos e apartados, deslocando, para uma esfera geopolítica estendida, o que havia pontualmente atestado em Sal sem carne.10 Por meio desses trabalhos, assinala a inadequação da ideia usual de pertencimento para a compreensão da dinâmica do mundo contemporâneo e o consequente rompimento da associação imediata e exclusiva entre lugar, cultura e identidade. O que distingue a produção simbólica de um local de outras quaisquer não são mais sentimentos de clausura, afastamento ou origem, mas as formas específicas pelas quais as comunidades que o habitam se posicionam em um contexto de interconexão aumentada e estabelecem relações com grupos variados. A noção de identidade cultural é instada a mover-se, assim, do âmbito do que parece ser espontâneo e territorializado para o campo aberto do que é constante (re)invenção.11

 

Ao entrar no ambiente que Babel ocupa, o visitante logo identifica, ainda que de modo impreciso, um ruído baixo e contínuo e os contornos de uma estrutura alta e cônica, onde divisa muitas e pequenas fontes de luz. Atraído pelo volume disposto no centro da sala e envolto em quase penumbra, circula em torno dessa estrutura e percebe, por fim, tratar-se de uma torre – mais de dois metros de diâmetro e cerca de cinco metros de altura – feita do acúmulo e da sobreposição de centenas de rádios. Todos estão ligados e os seus leds e dials são, conforme fica evidente, a origem dos pontos luminosos vistos de longe. São rádios de formato e épocas diversos: os maiores, dependendo ainda de velhas válvulas para funcionar, servem de base aos outros, mais leves e portáveis graças aos componentes eletrônicos que encerram. O chiado indistinto também gradualmente se esclarece: são músicas, notícias e programas radiofônicos que, emitidos de cidades e países diferentes através de ondas sonoras de variável alcance, combinam-se de maneira aleatória. O fato de esses sons de origens diversas estarem reunidos em um só canto parece aludir à existência de um espaço de negociação – simbólico, econômico, político – sobre o que cada lugar julga como lhe sendo próprio. Espaço de estabelecimento e contínua reelaboração, por meio de processos de expressão humana, de distinção entre povos.12 A percepção do elemento sonoro do trabalho mesmo antes que se possa discerni-lo visualmente confirma, por fim, o interesse de Cildo Meireles em investigar a natureza e as características do espaço valendo-se de mais de um sentido, requerendo, do visitante, a disposição de explorar Babel com o próprio corpo e de despender com ele um tempo incerto.13

 

O título e a formalização desse trabalho são, obviamente, uma remissão ao episódio bíblico da Torre de Babel (Gênesis, XI, 1-9), situado em um tempo em que toda a humanidade falava uma só língua e, liderada pelos descendentes dos filhos de Noé (Sem, Cam e Jafé), decide povoar uma larga planície que encontra na Mesopotâmia. Nesse lugar, resolve erguer uma torre alta o bastante para chegar aos céus – simultaneamente um monumento a si própria e estratégia para evitar a dispersão de seus membros por outras partes. Deus entende a construção, contudo, como uma afronta à sua autoridade ou como uma tentativa de rivalizar com seus poderes, resolvendo intervir. Desce em meio aos construtores e, por um gesto seu, todos começam a dizer palavras em línguas diferentes. A partir desse momento, não teria havido mais compreensão entre os habitantes do mundo, que sequer puderam concluir sua obra, dividindo-se e espalhando-se em cantos diversos. Esse desentendimento linguístico teria sido, segundo o mito, a causa primeira de todos os conflitos entre agrupamentos humanos, embora a recorrente dificuldade de comunicação também entre os que falam um mesmo idioma faça daquela discórdia um caso particular da divergência de interesses que segmenta e atrita nações ou comunidades.14

 

O uso de rádios como elementos construtivos da torre parece contradizer, em um primeiro instante, a referência ao caráter necessariamente contencioso do convívio entre povos que não partilham os mesmos códigos e crenças, tal como implicado na história bíblica. Rádios foram, afinal, a partir da década de 1920, instrumentos fundamentais para a comunicação instantânea, entre lugares os mais diversos, daquilo que a distância excessiva oculta da visão, separando os sons de suas fontes imediatas e visíveis. Tanto quanto a televisão, a presença disseminada de rádios no cotidiano de quase todos levou à formulação, no início da década de 1960, da ideia de que o mundo teria se tornado uma “aldeia global” e soldado a fratura no sentido de comunidade que a aguda divisão social do trabalho provocara desde há muito.15 O fato de os aparelhos estarem, nessa instalação, todos juntos e sintonizados em estações variadas reforça, ademais, a noção de que seria possível, mesmo em um contexto de crescente interrelação entre povos, a geração e a afirmação da diferença. Em oposição à entropia social preconizada na narrativa do Gênesis, a desconstrução de uma língua universal – e o consequente fim da presumida transparência de significados de tudo o que falam os habitantes do mundo – poderia ser mesmo associada à interrupção de um domínio colonial que impunha a todos o idioma e a cultura de uma só nação e constrangia, portanto, a emergência da alteridade.16

 

Conectados, mas diferentes, os membros dessa rede não podem, assim, ser associados a interesses exclusivos ou reduzidos a um amálgama uniforme, sendo mais bem entendidos como partícipes de uma “multidão” que produz e compartilha o que imagina possuir em comum.17

 

Outros elementos constitutivos de Babel problematizam, contudo, essa utopia comunitária, indicando que a emissão de opiniões diversas não é condição suficiente para a repartição mais equitativa de poder entre agrupamentos humanos distintos. Desde a primeira visada do trabalho, fica evidente ao visitante que os rádios que o artista amontoa para formar a torre são portadores de tecnologias as mais diferentes – da quase obsolescência ao excesso de recursos –, diversidade que pode ser tomada como índice do desigual acesso das nações (e também dos muitos extratos sociais no interior de cada uma delas) ao poder de se comunicar com o que está distante e, por meio disso, de afirmar o que julgam importante. De fato, o “direito de narrar” que cada nação ou comunidade todo o tempo reclama – direito de ser escutada, reconhecida e representada –18 é sempre condicionado pelo controle hierarquizado, embora disseminado e disperso, dos meios tecnológicos e dos instrumentos políticos através dos quais ele é exercido, fazendo de tais meios e instrumentos partes integrantes dos “circuitos ideológicos” que, em sociedades estratificadas, anestesiam diferenças e bloqueiam mudanças.19 Ainda que ocupem o mesmo espaço na sala expositiva e façam uso das mesmas vias de transmissão, esses tantos rádios diferentes aludem à presença simultânea, entre povos diversos ou no interior de uma mesma nação, de tempos sociais distintos. Simbolizam, dessa maneira, a distribuição assimétrica do poder que permite afirmar soberanias e o comando descentralizado, mas efetivo, dos mecanismos que estruturam permutas entre lugares distantes.

 

O zumbido que, conjuntamente, todos os aparelhos produzem sugere também que a incomensurável quantidade de informação transmitida por rádios no mundo contemporâneo – bem como pela televisão e, mais ainda, pela rede mundial de computadores – termina por obscurecer o conteúdo daquilo que se pretende comunicar, esvaziando-o de significados claramente discerníveis. Em qualquer frequência de transmissão, o número de estações é grande o bastante para que elas ocasionalmente se sobreponham, se misturem e até se anulem. O ouvinte é alienado da fala do outro, então, menos por escassez do que por excesso de informação que a ele se destina, provocando um “êxtase negativo do rádio”.20 Êxtase que reduz diferenças não por tornar mais transparente o que é comunicado, mas, ao contrário, por fazer indistinto cada discurso que se deseja afirmar como único. Apagamento de alteridade que é tanto maior quanto, paradoxalmente, mais disseminados forem os meios de comunicação necessários à sua locução.21

 

A enunciação de pontos de vista diversos e o controle ou a diluição daquilo que é singular são, portanto, fenômenos que coexistem fisicamente em Babel e que podem ser tomados como metáforas da interação intrincada entre nações ou comunidades distintas, em que diferenças são produzidas por cada uma delas em meio à desigualdade do poder de estabelecê-las diante dos demais agrupamentos. Não são apontadas nesse trabalho, porém, resoluções para as tensões que ele apresenta. Sem implicar o apaziguamento dos conflitos que marcam o estado do mundo contemporâneo, Cildo Meireles parece advogar a necessidade da adoção de paradigmas explicativos que sejam relacionais e centrados, por isso, no reconhecimento da existência de um território de fronteiras incertas, o qual abriga embates múltiplos e produz a contaminação mútua de expressões culturais antes apartadas por injunções geográficas e históricas. Território que, em Babel, é não somente evocado, mas oferecido ao visitante como experiência a ser vivida em tempo real, a partir da densa teia sonora que as transmissões radiofônicas tecem em conjunto.

 

A outra instalação que exemplarmente apresenta e discute, por meio de estímulos visuais e sonoros, a existência de espaços físicos e políticos híbridos é Marulho, cuja escala em relação à dimensão humana convida o visitante, tal como ocorre em Babel, a percorrê-la com o corpo, e não somente a explorá-la com o olhar. Três degraus de madeira que correm de um ao outro lado da sala dão acesso a uma plataforma – feita do mesmo material e com a mesma extensão lateral da escada –, de cujo centro se projeta, ortogonalmente, uma passarela que termina abruptamente no meio do trabalho. Quem caminha sobre essa estrutura bem demarcada tem a visão atraída por alguns milhares de livros que, de páginas abertas e entrelaçados ordenadamente uns aos outros, cobrem inteiramente a porção do chão situada entre a plataforma e o fim distante da sala. Os tons azulados das imagens ali impressas são logo percebidos como fotografias de mares e oceanos quaisquer, o que faz as ondulações dos livros aparentarem o movimento das águas e a passarela de onde esses são observados assemelhar-se a um píer como os muitos que existem em cidades localizadas na costa. A lembrança de mares e oceanos diversos é também ativada pelo som ouvido quando se explora a instalação, semelhante ao murmúrio que o curso repetido de ondas gera. Se escutado com alguma atenção, após pouco tempo esse ruído revela ser, todavia, o resultado da sobreposição da palavra água em línguas diversas (oitenta delas, de fato), enunciada por pessoas de diferentes idades, gêneros e procedências geográficas.

 

Ao dissolver aquilo que é próprio a cada povo em um som que não é de nenhum deles em particular, o artista invoca mares e oceanos como espaços de trocas simbólicas e de negociação de diferenças que não possuem, entretanto, a concreção que a noção de território comumente requer na construção de narrativas de identidades.22 Reverbera nesse trabalho, ao contrário, ideias de pertencimento definidas pelo deslocamento de povos – seja este espontâneo ou forçado – e pelos contatos travados com o que lhes é estranho ou diverso. Entendimento semelhante tem levado historiadores a apontar o Oceano Atlântico como o local privilegiado a partir do qual se teceram, durante mais de três séculos, conexões entre tradições distintas e lugares apartados – Europa, África, Américas –, fazendo dele a unidade básica de análise para entender os processos transnacionais e indeterminados de formação identitária gestados pela colonização europeia no Novo Mundo. Tão importante quanto as raízes dos diversos povos afetados pelo sistema colonial, portanto, seriam as tantas rotas que eles percorreram e que também os formaram. Nesses termos, é possível relativizar, como em Babel, a esquemática associação entre identidade cultural e território, e referir-se aos espaços vividos por aqueles povos como um “circuito comunicativo” em que interações foram feitas e identificações moventes geradas.23 Marulho reporta-se não só a esse contexto passado, mas também ao tempo contemporâneo, no qual noções de pertencimento são formuladas por meio de contatos interculturais, são frequentemente desterritorializadas e estão sempre sujeitas a reformulações parciais e periódicas.

 

A apreensão dos complexos mecanismos de transculturação aludidos em Babel e Marulho ancora-se na oferta, por ambas as instalações, de experiências cognitivas que, em um primeiro momento, são da ordem das “pequenas percepções”: aquelas que são menos partes da apreensão de um fato do que seus requisitos ou elementos genéticos, cuja consciência é apenas subliminar.24 Ao se entrar nos ambientes que acolhem uma e outra instalação, os sons são claramente percebidos, ainda que também se apresentem como confusos. Em Babel, identifica-se, após breve instante de atenção, a origem do ruído ouvido, embora não seja possível simultaneamente distinguir o conteúdo e a procedência de cada emissão radiofônica. De modo análogo, o reconhecimento de que o murmúrio em Marulho é formado pela sobreposição da palavra água dita em muitas línguas não implica que se possa, ao mesmo tempo, notar as inflexões e os sotaques de todos os idiomas incluídos no trabalho. À medida, porém, que se aproxima de Babel, o visitante tem sua atenção auditiva gradualmente capturada por um número menor de estímulos sonoros, destacados dos demais em função de sua proximidade corporal. No limite, concentra-se na transmissão feita por um único rádio, momento em que prova uma percepção “clara e distinta” – e não mais “clara e confusa”, como é próprio das pequenas percepções –,25 fenômeno que se repete a cada vez em que se afasta e se acerca novamente da torre feita de rádios. Experiência semelhante o visitante tem quando despende tempo ouvindo o som que demarca e preenche o espaço onde Marulho está instalada. A princípio de forma imprecisa, inicia a perceber, com nitidez crescente, a enunciação da palavra água em diferentes idiomas (tantos mais quanto maior for o seu conhecimento linguístico), momentos curtos em que tudo o mais é escutado de maneira vaga. O destaque que, em detrimento de outras, uma emissão radiofônica ou uma língua transitoriamente possui nesses trabalhos sugere, ademais, as desigualdades que presidem as trocas simbólicas, posto que quanto mais poder econômico e político possui uma unidade nacional (ou regional), maior sua capacidade de se fazer ouvir – exercendo, portanto, o seu “direito de narrar” – ou de fazer sua língua ser entendida por aqueles que não a trazem como recurso comunicativo natural.

 

Babel e Marulho coincidem, ainda, na capacidade de ensinar o quão extenso e denso é o espaço das permutas culturais e, simultaneamente, de apontar as dificuldades de compreensão entre os diferentes povos. Tal ambiguidade se evidencia por meio da aproximação e do contraste entre a topologia desses trabalhos e as características de um outro espaço inventado: a Biblioteca de Babel, descrita em conto por Jorge Luis Borges e também chamada por este de universo. Os círculos de rádios que se sobrepõem em Babel e os muitos sotaques e línguas que eles potencialmente emitem na forma de canto e fala recordam, de imediato, aquela Biblioteca, a qual, segundo o escritor, conteria, distribuídos em idênticas galerias hexagonais reproduzidas ao infinito para os lados, para baixo e para cima – assim como a altura incerta dos céus era o tamanho pretendido da Torre de Babel –, escritos diversos que registrariam, em todos os idiomas, tudo o que é dado registrar. Também os livros deitados no chão em Marulho evocam, por sua quantidade virtualmente infinda e pela recorrência das imagens que reproduzem, a natureza simultaneamente ilimitada e periódica da Biblioteca de Babel, sendo tão ilógico pensar que em algum ponto ela termina como é incabível esquecer que o número de livros lhe impõe limites, fazendo com que títulos aleatoriamente se repitam. Mas é a referência à superstição de que existiria, na Biblioteca de Babel, um livro que seria “a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais” que melhor introduz, por oposição, a questão da (in)tradutibilidade cultural presente em Babel e em Marulho. Nesse “livro total”, cuja possível existência é associada pelo narrador ao divino, ter-se-ia acesso, de modo transparente, a todos os conhecimentos elaborados em culturas diferentes e registrados em sistemas linguísticos distintos.26 Esses dois trabalhos de Cildo Meireles apontam, ao contrário, para a natureza necessariamente truncada de qualquer processo de tradução simbólica no mundo contemporâneo, onde, tal como na Biblioteca de Babel, mesmo os lugares mais afastados se comunicam.

 

A impossibilidade do entendimento pleno do outro resulta do procedimento duplo que uma operação ordinária de tradução simbólica requer: primeiro, apreender os significados dos produtos gestados em uma cultura; em seguida, recriá-los nos termos de uma outra. Como não existe correspondência unívoca entre sistemas culturais diversos – como também não há entre sistemas linguísticos diferentes –, nunca se alcança transparência perfeita naquilo que é resultado de uma tradução, restando sempre algo opaco e, por conseguinte, intraduzível  entre formações culturais ou línguas que se confrontam. Ao mesmo tempo em que se faz necessária, a tradução é sujeita, portanto, a diferenças irredutíveis entre o que é distinto, causando a sua interdição.27 E é justamente essa opacidade do que não se deixa levar docilmente de um a outro âmbito de significados – insinuada pela cacofonia de vozes escutada em Babel e em Marulho – que afirma a impossibilidade de reduzir uma cultura a outra diferente quando postas em contato, dando lugar a construções culturais híbridas que adicionam ao repertório simbólico do mundo algo que não existia ainda.

 

Os processos de transculturação contemporâneos ocorrem, dessa maneira, em um território extenso, denso e, contudo, descontínuo, paradoxo também presente, formal e metaforicamente, em Malhas da liberdade (1977). Feito de fios rígidos de metal, a composição desse trabalho obedece a uma lei de formação tão simples quanto exata: tomando uma unidade elementar (um segmento de reta), o artista a faz interceptar outras duas unidades iguais em suas metades, sendo, em seguida, também cortada ao meio por outro idêntico elemento. Repetido muitas vezes (potencialmente, ao infinito), esse procedimento leva à criação de uma retícula metálica que cresce primeiro em um plano e, por sucessivas sobreposições parciais da matéria usada, também no espaço, tendo suas dimensões finais definidas de modo arbitrário. Ao pendurar verticalmente essa grade supostamente cerrada e atravessá-la com uma placa de vidro cuja largura é maior que a diagonal de um quadrado qualquer da malha, Cildo Meireles demonstra o quanto ela é, porém, permeável.28 Assim como o amplo e espesso campo de traduções simbólicas do mundo não retém todos os significados que nele confluem, também essa malha é incapaz de impedir que mesmo uma matéria relativamente larga e frágil transpasse sua corporeidade aparentemente vedada e dura. Um e outra exibem, de fato, um não acabamento de sua ordem estrutural similar à incompletude edificante e arquitetônica a que a Torre de Babel foi condenada.29

 

Por meio de uma acidentada topologia, a instalação Através (1989) leva igualmente o visitante a experimentar, sensorial e conceitualmente, a natureza inconclusa e quase sem bordas daquele espaço de trocas. Ocupando uma área quadrada de quinze metros de lado, o trabalho consiste da sobreposição de mais de cinquenta elementos (colocados sobre o piso ou pendurados do teto) comumente usados para impedir a passagem de corpos, tais como redes, cercas, vidraças, persianas, telas, grades, correntes e cordas. Todos esses objetos também têm em comum, porém, o fato de poderem ser total ou parcialmente atravessados pelo olhar, suspendendo, de imediato, a carga de proibição que o ambiente encerra. Arranjados na forma de um labirinto, eles levam o visitante, ademais, a contornar os obstáculos postos ao corpo e, guiado pela visão, a buscar algum dos caminhos que o conduzam  ao centro da instalação, onde se encontra uma bola de papel celofane amassado de cerca de três metros de diâmetro. É esse elemento nucleico o mais ambíguo entre todos que constituem o trabalho, posto que é o de mais fácil transposição física ou simbólica – o papel cederia à pressão do corpo e não conota interdição social de qualquer espécie – e, ao mesmo tempo, o único, entre os tan- tos materiais ali ajuntados, que bloqueia o alcance distante do olhar. Contradiz e imobiliza, então, o impulso que leva alguém a chegar até ele, gerando uma força centrífuga que tende a afastar o visitante de volta às fronteiras do ambiente criado. O desvio dos obstáculos corporais nesse percurso não implica, entretanto, a redução da experiência do visitante à dimensão retiniana, posto que cada uma de suas passadas quebra, com inevitável barulho, parte das muitas toneladas de placas de vidro que forram o piso da instalação, fazendo o corpo hesitar e relativizando, com o som gerado na caminhada, a hegemonia da visão na exploração do espaço. Em vez de separação entre sentidos, há aqui a aproximação entre meios distintos de conhecer um território.

 

A experiência de percorrer Através não se esgota, porém, nos estímulos cruzados aos sentidos que ele oferece. Cada um dos elementos transpostos pela visão e desviados pelo andar tem um emprego e uma função na vida cotidiana que, em extensão variável, são reconhecidos pelo visitante. Alguns deles são usados para delimitar espaços domésticos, outros para organizar fluxos de trânsito humano em ruas ou, ainda, como proteção da luz ou do vento. Vários, contudo – dentre os quais o arame farpado é o mais evidente –, podem ser tomados como índices de interdições políticas e instrumentos de segregação de quem, de diferentes maneiras, ameaça ou subverte uma ordem existente. Ordem que, a despeito ou por causa dos conflitos latentes que carrega, entrelaça e torna interdependente um número crescente de nações e comunidades. Nesse contexto, as placas de vidro que vão sendo quebradas sobre o piso trazem à memória – pelo ruído associado, involuntariamente, ao risco efetivo de corte – os embates que a aproximação entre diferentes gera e a fragilidade dos arranjos institucionais para contê-los ou ao menos acomodá-los. O núcleo do trabalho trai também um outro sentido: diante da disciplinada estrutura que, de pontos diversos, organiza e comanda o mundo – evocada pela disposição regular desses tantos obstáculos –, a caótica energia simbólica potencialmente contida no papel celofane amassado anuncia o caráter instável desse arranjo social.30

 

A ambivalência dessa situação é ainda examinada pelo artista em Glove trotter (1991), trabalho em que dezenas de esferas de tamanho, material, cor, peso e uso diferentes são postas espalhadas sobre o piso e recobertas por uma pesada rede de aço inoxidável. Objetos cujas formas são usualmente associadas aos conceitos de totalidade e independência são, assim, alojados sob um outro objeto que sugere não apenas sua imbricação, mas, igualmente, a sua inequívoca captura. Enquanto é admissível relacionar as marcadas dessemelhanças de cada uma das esferas usadas à diversidade – cultural, política, histórica – existente entre os agrupamentos humanos no mundo, a grossa malha que as enreda e encobre lembra o apagamento gradativo dessas diferenças sob o poder hegemônico de quem vincula comunidades distintas. O fato de ainda ser possível enxergar, por entre os pontos largos dessa teia, o que singulariza mesmo a menor das esferas usadas indica, todavia, os limites da homogeneização que os mecanismos de transculturação promovem. Propõe, além disso, que a intradutibilidade relativa de termos entre construções simbólicas diversas representa não apenas a exclusão do outro, mas, também, reação e adaptação de culturas não hegemônicas a um movimento de anulação da alteridade.31

 

Nesses trabalhos, como em outros, Cildo Meireles não dissocia, portanto, o conhecimento físico do espaço – buscado por procedimentos construtivos diversos – da cognição do espaço político, ao qual alude sempre por metáforas. Assume, como método intuitivo e também racional, não distinguir entre os objetos e ambientes que cria e a vontade de discutir a diferença entre povos. Método que implica a sobreposição e o entrechoque de significados, espelhando o contato conflituoso entre os vários tempos que os modos contemporâneos de organização e de articulação dos espaços promovem.32 Método, por isso, afim ao labirinto que foi imaginado por Ts’ui Pen, personagem de “O jardim de veredas que se bifur- cam”, narrativa escrita por Jorge Luis Borges, uma vez mais aqui citado. Em lugar de optar por uma alternativa de caminhos entre várias – eliminando, em consequência da escolha, as demais –, nesse labirinto seria possível optar simultaneamente pelo conjunto delas. Ts’ui Pen acreditava, por essa propriedade de seu invento, na existência de uma “trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram”, abrangendo todas as possibilidades.33  Tal como o escritor, Cildo Meireles não desatende as contradições que regem o mundo, deixando, antes, que elas informem e habitem a sua obra.

 

 

1 BORGES, Jorge Luis. O Aleph. In: Obras completas I. Porto Alegre: Globo, 1998.

 

2 GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. Jornal do Brasil, 21 nov./20 dez. 1960. Ver, igualmente, OITICICA, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. In _. Nova objetividade brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1967. Nesse texto, Hélio Oiticica propugna uma participação ativa e não fracionada do espectador, simultaneamente “sensorial” e “semântica”.

 

3 MAHARAJ, Sarat. Xeno-epistemics: makeshift kit for sounding visual art as knowledge production and the retinal regimes. In: Documenta11_platform 5: exhibition. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers, 2002.

 

4 A operação metonímica e a assimetria escalar que conferem a Cruzeiro do Sul um inequívoco significado estão também presentes em Condensados 1 – Deserto (1970), anel feito em ouro e assemelhado a uma pirâmide de cujo topo se vê, através de uma safira transparente, um único grão de areia. Assim como um pequeno cubo de madeira representa, naquele primeiro trabalho, toda uma civilização, um grão de areia no interior de uma pirâmide é capaz de expressar, nesse outro, um deserto inteiro.

 

5 O título desse trabalho também designa um texto publicado por Cildo Meireles no catálogo da exposição Information (Nova Iorque, Museum of Modern Art, 1970). Nesse texto, o artista fala de uma região mítica, inexistente em mapas oficiais, chamada Cruzeiro do Sul, claramente aludindo ao extermínio de povos indígenas durante a colonização portuguesa e espanhola na América meridional.

 

6 Deve ser mencionado que Cildo Meireles faz parte de uma família de indigenistas, o que o informa e influencia no trato do assunto.

 

7 Ainda que Sal sem carne tenha sido concebido, originalmente, apenas como um disco (LP), o seu elemento sonoro é quase sempre acompanhado, em exposições, da apresentação das fotografias (montadas em monóculos) referentes às culturas indígena e ocidental reproduzidas em sua capa e contracapa.

 

8 Sobre o termo “terceiro espaço”, ver BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

 

9 Sobre as implicações ético-políticas da dinâmica do “gueto” na obra de Cildo Meireles, ver, neste volume, o texto “A indústria e a poesia”.

 

10 A centralidade das relações sinestésicas na obra de Cildo Meireles é analisada em CABAÑAS, Kaira M. Cildo Meireles: “la conscience dans l’anesthésie”. Parachute, n. 110, 2003. Para uma discussão da relação entre o visual e o sonoro na produção artística contemporânea, consultar COX, Christoph. Lost in translation: sound in the discourse of synaesthesia. Artforum, out. 2005.

 

11 “Muitos de meus trabalhos passam por uma noção de território que, neste exato momento, está em estado de indefinição, de suspensão. Pessoalmente, sempre achei a noção de país – como extensão do corpo ou lugar da felicidade localizada – um código de classificação tão vago e impreciso quanto qualquer outro. Uma vez pensei o projeto de um país tão estreito que só poderia ser operado a partir do estrangeiro. Seria um terreno mínimo, apenas uma fronteira, onde caberia uma pessoa, talvez nem isso”. MEIRELES, Cildo. In: Cildo Meireles, geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2001.

 

12 Para uma abordagem crítica da ideia de pertencimento, ver APPADURAI, Arjun. Modernity at large. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.

 

13 O fato de a topologia de Babel ser primeiramente indicada por sons e só depois confirmada pelo olhar aproxima essa instalação de I. Estudo para espaço (1969), trabalho de Cildo Meireles que, por meio de instruções escritas, solicita a quem as lê ficar parado em um lugar qualquer escutando os sons próximos e os mais distantes que for possível discernir, delimitando assim uma área imaginada. Esse trabalho foi originalmente apresentado, como elemento integrante de um conjunto de três “estudos” (os outros são II. Estudo para tempo e III. Estudo para espaço-tempo), no Salão da Bússola (Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, 1969). MEIRELES, Cildo; ENGUITA, Nuria. Lugares de divagación. Una entrevista con Cildo Meireles. In: Cildo Meireles. Valência: IVAM, 1992.

 

14 STEINER, George. Depois de Babel. Questões de linguagem e tradução. Curitiba: Editora UFPR, 2005.

 

15 MCLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1964. A confiabilidade e a importância do rádio na vida cotidiana do mundo moderno podem ser medidas pela extensão do pânico que o cineasta norte-americano Orson Welles (1915-1985) causou a mais de um milhão de ouvintes ao transmitir, no dia 30 de outubro de 1938, em sucessivas edições extraordinárias de um suposto programa jornalístico radiofônico, a notícia de que alienígenas estariam atacando a Terra naquele mesmo instante. Tratava-se, de fato, de uma adaptação para o rádio de

A guerra dos mundos, obra do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946).

 

16 DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

 

17 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.

 

18 BHABHA, Homi. The right to narrate. Disponível em: <http://www.uchicago.edu/docs/millenium/ bhabha/bhabha_a.html>. Acesso em: nov. 2004.

 

19 MEIRELES, Cildo. Inserções em circuitos ideológicos 1970-75. In: HERKENHOFF, P. MOSQUERA, G.; CAMERON, D. (Org.). Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naify, 2000.

 

20 BAUDRILLARD, Jean. The ecstasy of communication. In: FOSTER, H. (Org.). The anti-aesthetic. Essays on postmodern culture. Seattle: Bay Press, 1983.

 

21 A ideia de que o adensamento ou a acumulação de algo pode contradizer a sua função é exemplificada no trabalho Estojo de geometria (neutralização por oposição e/ou adição) (1977-1979), em que Cildo Meireles une objetos idênticos capazes de ferir alguém (lâminas de barbear, pregos, cutelos) de modo a bloquear esse perigo.

 

22 Esse desmanche da ideia de territorialidade fixa está também presente no trabalho Mutações geográficas: fronteira Rio/São Paulo (1969), que consistiu na abertura de um buraco em cada lado da fronteira entre os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo e na colocação da matéria escavada em um estado no interior da vala aberta no outro. Uma caixa de couro, com mesmo título e data, simula e registra, em seu interior compartimentado, essa ação de Cildo Meireles. É possível ainda associar a imagem do mar, em Marulho, ao lugar no Centro-Oeste do Brasil chamado de Águas Emendadas, onde as três bacias hidrográficas do país – Amazonas, São Francisco e Prata – têm as suas nascentes e se misturam em um pequeno e único curso d’água; lugar que, para o artista, pode ser tomado como metáfora do hibridismo gerado do contato entre diferentes repertórios culturais. MEIRELES, Cildo. Pano-de-roda [entrevista]. Arte & Ensaios, ano VII, n. 7, 2000.

 

23 GILROY, Paul. O Atlântico negro. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.

 

24 DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.

 

25 GIL, José. As pequenas percepções. In: LINS, D. (Org.). Razão nômade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

 

26 BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. In: ______. Obras completas I. Porto Alegre: Globo, 1998.

 

27 MAHARAJ, Sarat. “Perfidious fidelity”: the untranslatability of the other. In: FISHER, J. (Ed.). Global visions towards a new internationalism in the visual arts. Londres: Kala Press-Institute of International Visual Arts, 1994.

 

28 Em duas versões anteriores de Malhas da liberdade (1976), Cildo Meireles aplicou o mesmo princípio construtivo a uma corda de algodão, criando um objeto semelhante a uma rede de pesca incapaz, porém, de aprisionar algo. Outra versão, nunca realizada, seria composta somente por fitas de papel e de instruções para construir a “malha”.

 

29 DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

 

30 BRETT, Guy. Cildo Meireles. In: Tunga “lezarts” / Cildo Meireles “through”. Kortrijk: Kunststichting Kanaal Art Foundation, 1989.

 

31 Cildo Meireles concebeu Glove trotter para a exposição Latin American Artists of the Twentieth Century (Nova Iorque, Museum of Modern Art, 1992), que integrava as comemorações dos 500 anos da colonização europeia das Américas. Não sem ironia, o trabalho originalmente possuía o subtítulo de Admiráveis mundos novos.

 

32. Sobre a coexistência de “tempos geográficos” diferentes na obra de Cildo Meireles, ver JAUKKURI, Maaretta. Variações sobre o tempo. In: Cildo Meireles. Strasbourg: Musée d’Art Contemporain de Strasbourg, 2003.

 

33. BORGES, Jorge Luis. O jardim de veredas que se bifurcam. In: Obras completas I. Porto Alegre: Globo, 1998.

PRIMEIRO CEGAM, DEPOIS ILUMINAM

PRIMEIRO CEGAM, DEPOIS ILUMINAM

Delson Uchôa

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Iniciada na década de 1980, a trajetória de Delson Uchôa pode ser repartida em duas, embora a parcela mais recente guarde e atualize conquistas feitas na primeira. Com vários pintores de sua geração, explorou, em seus anos de formação no ofício – passados, em sua maior parte, no Rio de Janeiro –, a liberdade da reinvenção coletiva de um meio precocemente dado como exaurido. Atento à profusão de imagens do cotidiano e da história da arte à disposição de todos, fez trabalhos que as citavam sem apelo a qualquer forma de  ilusionismo,  empregando  campos  definidos de cor como elemento central de sua representação em tinta. No início da década seguinte, contudo, volta a Maceió – cidade onde nasceu e morou até ficar adulto –, onde abandona o repertório antes adquirido e  ressignifica,  em  função  da  memória  atávica de signos e luzes, o que havia incorporado como instrumento de pintor, embora mantendo intocado o interesse por ver o mundo através de cores. É a partir desse momento que sua obra se singulariza e que começa a forjar a originalidade da qual é detentora.

 

As pinturas maduras de Delson Uchôa são clarões: primeiro cegam, e só depois iluminam. Em todas, há uma cor quente que domina o espaço pintado – quase sempre de grandes dimensões – e também seu entorno próximo, provocando o estímulo alongado da retina. Amarelo, verde, azul, vermelho, todos pulsam, em diferentes trabalhos, de modo incontido. Embora quando observadas de longe é que mais clareiem o olhar, é vendo suas pinturas de perto – de uma distância em que a visão se avizinha das superfícies entintadas – que se percebe que suas luzes intensas são feitas, em sua maior parte, de delicados fios. São inúmeras linhas de cor bem finas, cordões de algodão, tramas de juta ou tecido que, amalgamados sobre uma lona bruta e abrigados sob uma resina lisa, tecem o corpo e o brilho de seus trabalhos. Por meio dessas intricadas construções cromáticas – feitas de agrupamentos de delgados traços retos e curvos e de alguns poucos campos onde o monocromo domina –, o artista busca apreender a luz que habita o campo perceptivo que separa “a visão e o visto”, a qual traduz estados de espírito diversos (alegre, austero, saudoso) e não se deixa capturar por quaisquer outros procedimentos cognitivos.1 A luz pintada é, portanto, em sua obra, forma irredutível de conhecer e registrar um fato físico da vida, pouco se prestando à descrição de figuras ou cenas.

A tessitura complexa das pinturas promove, entretanto, sua inserção em tradições, se não conflitantes, com frequência dispersas. É desde logo patente, nesses trabalhos, uma negociação constante entre as cores que o artista enxerga à volta (iluminadas pelo sol do litoral do Nordeste do Brasil) e aquelas pelas quais é atraído em uma história seletiva da arte, em que Paul Gauguin, Lygia Pape, Van Gogh e Hélio Oiticica são atados, com vários outros, em uma genealogia nova. De Auriflama, composta de centenas de quadrados regulares ordenados sobre a superfície da lona, emana uma luz vermelha e amarela que dá corpo à cor da chama, remis- são tanto a uma latitude de morada solar quanto aos crus espaços cromáticos inventados pela arte moderna e contemporânea. Em Descampado, um horizonte vibrante – criado de tons claros que se enlaçam (amarelos e azuis, principalmente) – lembra as paisagens abertas da beira-mar ou do sertão nordestinos, ao mesmo tempo em que inscreve a pintura na tradição romântica de arresto, em superfícies pintadas, do ar rarefeito que embota a visão e faz confundir realidade e engenho.

 

Essa vontade de mistura se expressa, também, nas referências simbólicas que os trabalhos de Delson Uchôa carregam. Muitas das complexas imagens criadas são devedoras de construções vernaculares originadas na região onde mora e, igualmente, de invenções visuais de procedência europeia, tais como o construtivismo ou a arte óptica. Em Sudário Caeté, uma composição esquemática que lembra um rosto é espelhada verticalmente sobre tecido espesso, fazendo com que olhos e nariz formados de inúmeros filetes de cor – referência plausível a máscaras ritualísticas de comunidade indígena que habita, desde há muito, o que é hoje o Nordeste brasileiro – passem a ser vistos, concorrentemente, como estruturas laicas e cultas, despregadas do âmbito da religião ou da magia. Também em Catedral TG – trabalho de quase dez metros do chão ao alto –, o artista condensa, em ideia e fatura, o desejo de aproximar o apartado. Se, cifrado no nome, há referências simultâneas ao artista moderno uruguaio Joaquín Torres García e à cultura tupi-guarani,2 é em sua estrutura formal, misto de antena e totem, que mais claro fica o intento de promover o desmanche do que é diverso. Alicerçada em clarão intenso de cores convulsas, a pintura aninha ecos de falas profanas e de culturas nativas quase mortas; desfazendo-se de luz à medida que se ergue, torna-se, contudo, arquitetura solene e quase inerte. O que, na base, sugeria girândola e festa se transforma, no topo, em hóstia e reza. Não desvela, porém, onde o que era terreno deixa de ser e onde o tom que era quente se amorna. Já em Tear, é a pintura culta feita sobre uma superfície construída artesanalmente que sugere a urgência de Delson Uchôa em articular o que possui origem variada. Percorrendo e cobrindo, com pigmentos distintos, as tramas de fibras vegetais que servem à construção de esteiras, termina por transferir e expandir, para a lona ampla onde cola o material de que se apropria e com que desenvolve seu trabalho, a imagem pintada que o relevo dessa matéria em potência traz.

A partir de memórias, materiais e procedimentos fincados em suas experiências reais e imaginadas de Nordeste – mas raramente de referências iconográficas –, o artista esboça, portanto, maneiras próprias de lidar com o sombreamento dos limites arbitrários de representação simbólica da região, criando pinturas que continuamente trafegam entre os vários espaços e tempos em que é instado a viver na contemporaneidade. Por meio de seus trabalhos, a cultura regionalista amolece e deixa gradualmente de ser um território “fechado”, sem que isso implique uma recusa ao cotidiano habitado em favor de uma afiliação a códigos criados em outros espaços.3 Suas pinturas são construções híbridas, que traduzem e aproximam, de modo sempre inconcluso, formações culturais diversas. A afeição de Delson Uchôa pelo que é impuro não estanca, contudo, o desmonte de separações rígidas entre culturas que, de maneiras diversas, lhe são próximas, transbordando para uma atividade autorreflexiva sem fim certo. Vendo seus trabalhos prontos e de perto, são evidentes, em muitos deles, os acréscimos, junções e sobreposições de suportes, sejam recentes ou velhos. São perceptíveis também as camadas finas de tinta recente que encobrem partes de telas há muito pintadas. Uns e outras são vestígios da permanente ação do artista, ao longo de vários anos, sobre aquilo que faz. Desmanchando, combinando e alargando pinturas já realizadas, acresce novas matérias e gestos ao que resiste ao seu impulso autofágico, em procedimento agonístico de destruição que, entretanto, cria novas imagens.

 

Não é essa continuada elaboração, todavia, resultado de um raciocínio analítico que pondera o que foi já feito e projeta o resultado plástico de uma intervenção adicional. Há nela muito de ação intuitiva, em uma aproximação consciente da estratégia criativa que repentistas adotam, na qual repertório (de rimas, texturas ou cores, pouco importa) e improviso se articulam e produzem, em um contexto específico, o que ainda não se conhece.4 Em Muiraquitã, a intensa luz diurna e verde da mata – filtrada e refletida em flores, folhas, troncos e cipós – emerge da miríade de elementos pintados, como se fios de tinta fossem células clorofila- das. Feito sobre um suporte que é resultado da agregação de outros, o trabalho testemunha o demorado embate que Delson Uchôa promove entre uma ideia que se torna tinta e uma luz pintada que orienta o pensamento seguinte. Processuais e autorreferentes, suas pinturas têm, em potência, não só uma dimensão crescente, mas, também, uma duração de feitura incerta. Apenas quando não mais tem acesso a um trabalho é que pode considerá-lo acabado. A ideia de passagem do tempo é, portanto, abortada em sua obra. Ao continuamente modificar e atualizar o que já fez, apaga, de algum modo, o passado; ao saber que aquilo que pinta agora pode ser depois mudado, a projeção do devir fica também destituída de significados. O tempo para o artista, portanto, é sempre o de agora, o que torna a datação de suas pinturas móvel e incerta.5

 

Por serem territórios de mestiçagem física e poética, os trabalhos de Delson Uchôa despertam, por fim, o desejo do toque ou do roçar, vontade de envolvimento sinestésico que por vezes o artista concede. Em Muxarabiê, a construção pictórica não é feita sobre uma superfície apenas, mas em três planos sobrepostos que são atados somente por cima. A camada da pintura que esconde as demais é formada por muitas folhas de papel celofane translúcido, que, coladas umas às outras, abrigam, em seu interior mole, uma composição feita de losangos coloridos entrelaçados. Pintada sobre folhas internas, essa grade evoca o elemento arquitetônico de origem mourisca que dá nome ao trabalho, o qual permite que rua e interior de casas sejam espaços separados e, ao mesmo tempo, comunicáveis. Levantando esse plano com as mãos, o observador “entra” na pintura e, com sua primeira camada às costas – através da qual a luz ambiente é filtrada –, depara-se com uma lona pintada em listas verticais amarelas e pretas, sentindo-se já liberto das convenções que o apartam, física e simbolicamente, de um trabalho de arte. A dissolução das diferenças entre o público e o privado é completada quando essa outra pintura é também levantada e o observador se vê no “ventre” do trabalho: uma lona branca onde pode adicionar o que quiser – frases, imagens – com lápis que pendem do alto.

 

A união entre pintura e observador – e a crítica implícita às definições separadas e usuais dos dois – acontece de maneira diversa em Rói-Rói. Nesse trabalho, Delson Uchôa pinta a propagação centrífuga, a partir de dois núcleos arbitrários, de feixes de cores variadas. Em um canto inferior da tela, suportes cilíndricos e também pintados guardam diversos exemplares do colorido brinquedo popular com que o artista nomeia a pintura. Posicionados de modo a convidar ao manuseio, os rói-róis são tomados por adultos e crianças e postos a girar, diluindo suas formas e cores em velocidade que a visão não segue. Essa interação corporal com o trabalho conduz logo o olho, entretanto, a ver, nas imagens pintadas, a descrição possível de dois dos inúmeros instantes que compõem aquele movimento acelerado. O som rouco que esse gesto lúdico produz autoriza qualquer um, ademais, a enxergar, na pintura que acolhe os brinquedos, o seu melhor equivalente visual. Feito de cores estridentes e de ruídos altos, o trabalho desorienta quem busca encontrar, nele, a confirmação de certezas sobre a natureza do campo pictórico. Recompensa, entretanto, quem se esquece de limites e se deixa banhar por sua luz clara.

 

1 Depoimento do artista ao autor, em março de 2003.

 

2 Idem.

 

3 A diferenciação entre região “aberta” e região “fechada” é feita em TRABA, Marta. Duas décadas vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas 1950-1970. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

 

4 Depoimento do artista ao autor em abril de 2005.

 

5 Para Delson Uchôa, suas pinturas são, apenas, “de sua época”, a qual começa no ano que nasceu (1956) e dura o tempo que puder conviver com elas. Por essa razão, os trabalhos citados neste texto não estão datados.

DO QUE NO CORPO É FALTA,...

DO QUE NO CORPO É FALTA, PEDAÇO

OU DESAPARECIMENTO

Efrain Almeida

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Eu preciso de minhas memórias.

Elas são meus documentos. Eu as vigio.

Louise Bourgeois

Considerada em sua materialidade apenas, a obra de Efrain Almeida constitui-se de pequenas esculturas – cavadas na  madeira ou feitas de tecido – e aquarelas de dimensões também reduzidas,  além  da  presença  eventual  da  gravura,  do  carimbo e do desenho. Seja qual for, contudo, o meio ou o procedimento usado, nela recorrem corpos despidos (no mais das vezes masculinos), partes deles (pés, mãos, cabeças), ou vestimentas (calças, vestidos, camisas) que, apartadas de corpos, são índices de sua ausência. Assentados de modo esparso sobre paredes amplas, bases largas ou folhas brancas, esses trabalhos têm o tamanho do que a mão acolhe, e solicitam a aproximação do olho para serem vistos. Voltados para o espectador em busca de cumplicidade, parecem entregar sempre algo – ou a si mesmos – em oferenda, assumindo um tom confessional e sedutor que confunde  –  de modo medido e insinuado, mas insistente – religiosidade e erotismo. É por meio dessa aproximação entre campos simbólicos julgados distantes que sua obra fala de um corpo incapaz de se afirmar inteiro, de um corpo que é só potência. Não há risos fáceis, portanto, na obra do artista.

 

Pelo que contém e revela dos constrangimentos a que o corpo é a toda hora submetido, o imaginário católico, esvaziado de toda crença, é referência recorrente no percurso poético de Efrain Almeida. É ilustrativo de sua importância o trabalho em que escava, sobre tronco de árvore, os contornos da imagem de São Sebastião, santo protetor dos que padecem das epidemias (a referência à AIDS, embora oblíqua, emerge aqui como possível). Apesar de sua história ser envolta em disputas e lendas, é sabido que Sebastião foi soldado romano punido com sentença de morte entre finais do século III e início do seguinte – período de perseguição religiosa intensa – após ser descoberto como cristão. Venerada desde o século VII, sua imagem foi várias vezes fixada como a de um jovem cujo corpo, trespassado por flechas, agoniza, mas vibra ainda. O sentimento ambíguo de atração e de repulsa que a imagem do santo martirizado evoca remete a ideias de livre-arbítrio e de castigo, ecoando, no âmbito da obra do artista, a relação conflituosa entre a disponibilidade sobre o próprio corpo e as interdições morais que a conformam ao que é convencionado como válido e lícito.

 

É desse lugar impreciso – nem de contrição nem de heresia – que os homenzinhos que Efrain Almeida extrai a estilete de blocos de madeira acusam, em rostos graves e corpos rígidos, a melancolia que os atormenta e define. São todos figuras dúbias, não se sabe se pecadores ou santos, se bestas ou anjos. Assemelhados aos ex- votos encontráveis nas igrejas católicas do Nordeste brasileiro (o artista é natural de Boa Viagem, Ceará, onde viveu toda a infância), eles também partilham a vontade de cura de que aqueles objetos estão imbuídos. De modo diverso do que ocorre com as esculturas religiosas, porém, nas peças de Efrain Almeida não é a dor da carne que a madeira representa; tampouco é como agradecimento pelo alcance de graças pedidas que elas são construídas. Tomando a si mesmo como modelo físico e simbólico de sua obra, o artista expressa, desde os nomes que dá a essas pequenas peças votivas (o merecedor, o sonhador, o apaixonado, o espectador, o paciente, o onquistador), o desejo de uma realização afetiva tão plena quanto improvável que alcance algum dia.

 

A parecença de muitos trabalhos de Efrain Almeida com ex- votos não resulta, portanto, de qualquer gesto de apropriação de coisas feitas por outrem, ou ainda da subtração de ideia gestada no campo da crença. Ela atesta e ecoa, ao contrário, a ausência de diferenças formais entre paganismo e cristianismo nos objetos e nas imagens votivas, figuração humana que comporta e acata distintos valores de uso que sejam a ela atribuídos.1 Tal semelhança é também testemunha, entretanto, da inserção igualmente com- prometida do artista no ambiente onde vive como adulto, fundado em acordos mundanos, e naquele que o formou quando criança, onde a religião se impunha como incontornável presença. Inserção dupla e simultânea que ignora separações estanques entre lugares e tempos usualmente tratados como afastados. O avizinhamento entre os objetos e as imagens que Efrain Almeida cria e aqueles construídos como ex-votos é dado, por fim, pelas matérias que mais usa, as quais possuem maleabilidade própria das empregadas na feitura de peças votivas. Uns e outros diferem entre si, contudo, no intento com que são feitos e na sua suposta serventia. No caso da obra do artista, a madeira que se deixa moldar pelo corte e a tinta aquarela que flui rala e se assenta no papel branco são usadas, através da representação do próprio corpo – inteiro ou em fragmentos –, para registrar sintomas difusos de desassossego afetivo em relação ao mundo. Já os materiais empregados na feitura dos ex-votos são flexíveis e moldáveis para que possam acompanhar e representar, por meio de muitas remodelagens neles feitas, as mudanças físicas que ocorrem com o passar do tempo no estado de um corpo enfermo.

 

A esperança remota de completitude no campo do afeto faz-se ainda presente nos trabalhos em que Efrain Almeida, em forma quase abjeta de oferenda, expõe pés e mãos – esculpidos ou pinta- dos em escala reduzida – com os cortes e as chagas que atestam a natureza cindida do corpo no mundo onde vive. Em instalação que bem enuncia esse intento, quatro pares de pés feitos em madeira são dispostos em pontos diversos de uma sala, afixados nas paredes um pouco acima do nível do chão. Na parte inferior de cada um dos pés, há o registro cavado e entintado de feridas, de onde fluem fios de contas vermelhas que se espalham pelo piso e se misturam uns aos outros, formando desenhos que podem tomar variadas configurações, como são muitas e imbricadas as razões do incômodo que pode ser viver a vida. Já em escultura também típica de sua obra, é de um par de mãos de madeira, saltadas da parede como se o resto do corpo inteiro estivesse apenas escondido da vista, que corre um cordão feito de gomos de veludo vermelho até alcançar o chão, recordando uma vez mais, pelo formato, matéria e coloração com constância usados em liturgias cristãs, o lugar simbólico ambivalente que os trabalhos do artista ocupam. Em mais outras esculturas que aludem simultaneamente a uma condição de inquietude afetiva e a símbolos de crença, mãos feridas ou apoios feitos de espinhos projetam-se das paredes de modo súbito, exibindo/ofertando as roupas ocas de um corpo genérico e distante que já as vestiu um dia. É assim com os 21 pares de mãos de madeira com chagas abertas pintadas que sustentam outros tantos vestidos diminutos feitos de veludo e voile; ou com os círculos de madeira com protuberâncias afiadas como se fossem coroas de espinhos que abraçam delicadas blusas de tecido e as ameaçam de furo e rasura. Como reiteradamente ocorre em sua obra, são trabalhos que evocam sentimentos de dor e saudade sem situar ao certo sua razão ou origem.

 

O interesse em dissolver os limites que separam campos simbólicos distintos aparece ainda em instalações e esculturas em que Efrain Almeida toma os olhos como signos de um corpo que não se resigna ao que lhe é imposto. É exemplar desse intento a colocação, sobre ampla extensão horizontal de parede, de mui- tos pares de olhos esculpidos em madeira e depois pintados de modo tosco, replicando novamente técnicas usadas na fabricação de ex-votos, em que, mais do que verossimilhança, importam as razões pelas quais se escolhe representar uma determinada parte do corpo. Esse trabalho remete de pronto a Luzia, santa católica invocada em orações para curar a cegueira e doenças que acometem os olhos – crença fundada em supostos fatos de sua vida, dos quais há, ao menos, duas versões que se entrelaçam na obra do artista. Em uma delas, Luzia teria sido denunciada, tal qual ocorrera com São Sebastião, como cristã ao Imperador romano no início do século IV. A denúncia teria partido do próprio homem a quem ela havia sido prometida como esposa, inconformado por Luzia ter feito a opção de dedicar-se à vida religiosa em vez de se casar com ele. Segundo a lenda, teria sido então presa e martirizada, a ponto de ter os olhos arrancados por seus algozes; no dia seguinte ao bárbaro ato, contudo, os olhos de Luzia teriam milagrosamente reaparecido em perfeito estado. De acordo com outra narrativa corrente, o homem rejeitado teria atormentado e perseguido-a por toda parte, dizendo-se enfeitiçado pela beleza de seu olhar. Para preservar-se casta diante de Deus, Luzia teria então arrancado e entregado os próprios olhos ao pretendente em um prato de ouro, dando a ele o que o fascinava e ficando por isso cega. Se ambas as versões da história justificam a devoção a Luzia como santa curadora dos que padecem de problemas de visão, sua radical opção por não abdicar do destino que escolheu para o próprio corpo também ampara a eleição de Efrain Almeida em tomar os olhos como índices de comprometimento com a própria sorte. Não é por acaso que os olhos são usualmente postos em seus trabalhos na altura em que o público convencionalmente enxerga objetos de arte, como a devolver o olhar daquele e a fornecer testemunho, de forma muda e dura, do que cada um faz de seus desejos e ideias.

 

A estratégia de representar o corpo em tamanho pequeno ou somente partes dele – indícios, na obra do artista, de um desagrado vago com seu entorno – é acompanhada pelo expediente de aludir a lugares e ambientes que são espaços de partilha entre corpos e, em simultâneo, símbolos igualmente claros do incômodo com o que existe e é dado. Não à toa, as miniaturas que faz replicando casas e templos – locais de recolhimento, de convívio e de abrigo – não deixam violar seus interiores ou ainda entrever o que guardam, sugestão possível de um desconforto público com a instância da intimidade ou talvez reconhecimento de que nem tudo o que produz diferenças no mundo pode ser repartido ou comunicado por inteiro, existindo graus de opacidade diante do outro que resistem mesmo à tradução que se deseje mais verdadeira. Exemplo dessa postura é a cópia reduzida em madeira que fez da casa de seus pais no interior rural do Ceará, onde cresceu e aprendeu o ofício com que constrói suas esculturas e para onde volta com frequência para trabalhar. Embora meticulosa em detalhes, as janelas e portas da casa diminuta não são abertas ao olhar do público, inexistindo nela qualquer sinal aparente de vida, como se fosse não a representação de uma morada, mas sua abstração: uma vivência transformada em formas.

 

Traços dessa ambiguidade são também encontrados nas muitas esculturas que reproduzem os animais com os quais ainda hoje Efrain Almeida convive em sua região de origem: o gato que por anos vive na casa dos pais, as ovelhas e as cabras que consegue nomear uma a uma e os muitos outros bichos – pintos, borboletas, cachorros, coelhos, pássaros – que desde menino aprendeu a reconhecer, distinguir e incluir na paisagem de sua vida ordinária, seja a que rememora de outros tempos, seja a que encontra quando retorna ocasionalmente ao Ceará. A despeito do quão atraentes sejam eles – feitos de talhes, de furos, de fogo e de tinta –, há em todos um misto de graça e tristeza, resultado do encantamento e do desacordo com o ambiente novo em que são inseridos depois de retirados da companhia de seus modelos. Articulando a distância longa que une a terra natal do artista aos vários outros lugares por onde já passou ou em que vive e o tempo extenso que separa sua infância de uma existência madura, esses animais invocam, ademais, um éden afetivo que não existe na vida adulta, e que, portanto, não há mais como recompor, restando apenas a possibilidade de rememorá-lo de quando em vez.

Cada animal esculpido pode também ser entendido, entre- tanto, como alusão menos ou mais clara a passagens bíblicas que tratam do corpo como lugar de virtude e de erro, assim como o fazem a figura trespassada por flechas entalhada no tronco da árvore ou os olhos afixados sobre a parede, entre muitos mais trabalhos elaborados em diversos meios. Dão evidência plena disso os cachorros que Efrain Almeida esculpiu em madeira, posicionados nas salas onde são expostos de modo que suas línguas, saídas de bocas entreabertas, toquem as paredes. São referência clara a Lázaro, protagonista mendigo e leproso de parábola cristã na qual somente cães se condoem dele, lambendo regularmente suas feridas e aliviando dessa maneira solidão e dor. Adorado como santo por confusão há muitos séculos feita com outro personagem bíblico (Lázaro de Betânia, amigo ressucitado de Jesus), São Lázaro também é, como São Sebastião, considerado protetor daqueles que padecem de doenças epidêmicas sexualmente transmissíveis, as quais comumente se manifestam através de feridas e chagas nos corpos e provocam o afastamento afetivo de muitos, seja por ignorância ou por fundamentado medo. Desdobrando significados possíveis para os cachorros que consolam Lázaro, o artista uma vez mais comenta e acolhe, em sua obra, a ambivalência entre o desejo por um corpo desregulado e o isolamento que seu alcance por vezes causa.

Por meio do uso contido de procedimentos construtivos e de um repertório restrito de imagens que se repetem e se reforçam mutuamente em espaços de exposição, Efrain Almeida exibe, por- tanto, a fissura larga entre o que é vontade do corpo e o que este finalmente alcança ao cabo do tempo. Não há em seus trabalhos, porém, o sentido da sublimação de perdas ou a ambição rasa de exibir testemunhos: dando tessitura visual a fragmentos lembra- dos de vida, o artista transforma suas memórias em passagens para que se ativem as lembranças daqueles que as contemplam, atestando uma disponibilidade para alcançar o outro e estreitando, desse modo, os limites entre o que é próprio apenas do indivíduo e o que pertence ao ambiente social em que este está inscrito.

 

O caráter autobiográfico da obra de Efrain Almeida não se resume, contudo, ao fato de universalizar, em seus trabalhos, questões que são pertinentes ao seu percurso de vida ou ao de permitir que momentos vividos transbordem do campo movente das lembranças para o espaço reclamado como o da produção artística. Em cada uma de suas peças, existe um envolvimento imediato e próximo com o próprio corpo, evidenciado desde logo nas formas esculpidas e pintadas, cujo modelo primário é o artista. É notável também a proximidade entre as cores da madeira e da tinta que usa e a cor mestiça de sua pele, sugerindo uma identificação plena, mas inalcançável, entre corpo no mundo e matéria da natureza, ou entre vida tomada por regras e coisas cujas formas podem ser moldadas a gosto. Relação que se afirma, por fim, nas feridas e marcas que a feitura obsessiva e continuada das esculturas provoca em suas mãos, automolestamento que é resíduo inseparável do processo criativo e que confunde o trabalho feito e o corpo de quem o realiza.

 

Em algumas peças, essa relação próxima entre o que é representado e a matéria de representação se adensa e se expande ainda mais, abarcando nelas os espaços onde as esculturas são postas e os lugares que marcam a vida do artista. Por um lado, várias das pequenas figuras que esculpe à semelhança de seu corpo nu são colocadas sobre bases de madeira grandes de coloração semelhante (embora não idêntica) à da que usa para fazer seus trabalhos, sugerindo contiguidade (mas não igualdade) entre a vida que cada um leva privadamente e seu imediato entorno. Por outro lado, muitas das figuras esculpidas ostentam em seus corpos despidos “tatuagens” – pintadas, gravadas a fogo ou feitas de marchetaria – de imagens que remetem a uma vida filiada simbolicamente ao Nordeste rural do Brasil, mas que parece poder também se desenrolar, por associações entre a prática contemporânea de tatuar e a cultura de cidades, em qualquer outra parte.

 

Essa identificação imprecisa com territórios e modos de vida diversos é também evocada pelos meios expressivos de que Efrain Almeida faz uso em sua obra – calcados em práticas ditas populares – e pela afirmação simultânea de um olhar sobre o mundo que se quer único. Mais, porém, do que sustentar que sua produção se diferencia, a despeito de toda semelhança, de uma outra pejorativamente tachada de artesanal, o artista parece querer justamente contrariar, oferecendo seus trabalhos como argumento, a ideia consensual de que somente o gesto criativo legitimado como arte erudita é imbuído de singularidade. Como demonstração, convidou xilogravadores de sua região de origem para esculpirem em madeira seus próprios rostos, parte do corpo que mais distingue uma pessoa de todas as demais. Munido dessas matrizes, entintou as feições e imprimiu-as, uma próxima à outra, em uma mesma folha de papel, criando gravura em que ficam registradas, nas próprias imagens dos rostos desses criadores, as diferenças de entendimento do mundo com que cada um deles impregna o papel quando produz suas obras.

 

A despeito, portanto, de Efrain Almeida não tratar o seu corpo como suporte de gestos de expressão, nem tomá-lo, por meio de atos performativos, como lugar próprio da arte, é dele que migra a marca única e funda que concede originalidade e sentido aos seus trabalhos. Entranhados quase sempre em esculturas e aquarelas, os rastros simbólicos do corpo do artista comentam – por empatia ou repúdio – as trajetórias de vida de outros corpos, produzindo um conhecimento sobre todos que antes não havia. Ao mesmo tempo singulares e imbuídos de finalidade similar, seus objetos e imagens são representações de um corpo em movimento que articula e ata lugares, tempos, raças, sexos e crenças em que se movem e se mostram outros corpos, sem que se confundam por isso em um único organismo. Suas esculturas e aquarelas dão notícias, de fato, de uma comunidade de corpos invioláveis e estrangeiros que se reconhecem, entretanto, na partilha de uma presença ambígua no mundo que habitam e fazem.2 O recato físico dessas peças já sugere, contudo, o quanto essa relação cognitiva é contingente e frágil, podendo a qualquer instante ser interrompida. Inserida em uma tradição artística que negocia e comenta a presença do corpo em espaços de convívio e conflito, a obra de Efrain Almeida afirma-se, paradoxalmente, por dar notícias do que nele é falta, pedaço ou desaparecimento.

 

 

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ex-voto: image, organe, temps. Paris: Bayard, 2006.

 

2 NANCY, Jean-Luc. Corpus. Nova Iorque: Fordham University Press, 2008.

AS DOBRAS, AS VOLTAS...

AS DOBRAS, AS VOLTAS, OS ACÚMULOS E OS VAZIOS DO TRABALHO

Ernesto Neto

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

É difícil nomear, com a certeza que as classificações implicam, o que Ernesto Neto faz. Categorias como as de escultura e instalação, ainda que aplicáveis a parcelas de sua obra, não são capazes de lhe emprestar um sentido conjunto. Iniciados em meados da década de 1980, é certo, contudo, que seus trabalhos, feitos de matérias diversas, instauram experiências  espaço-temporais para quem deles se aproxima. É patente, ademais, a continuidade conceitual no percurso seguido desde então, o qual afirma a herança construtiva – por meio, principalmente, do legado neo-concreto –1 que informa o trabalho de vários artistas brasileiros pertencentes à sua geração. Há também nessa rota, entretanto, o anúncio claro de interesses concorrentes, os quais estabelecem pontos de confronto com essa herança ou a desdobram em outras direções.

 

Em trabalho realizado em 1987 (A – B – A (chapa-corda-chapa), Ernesto Neto já torna clara a sua filiação  construtiva,  criando variadas situações de tensão entre duas chapas de  ferro,  retangulares e idênticas, e uma corda de nylon que as mantém unidas sob a ameaça constante de separação física. Deitando uma das chapas no chão e colocando a outra em posição vertical por meio apenas da resistência que a corda oferece ao peso semelhante das duas, o artista marca igualmente a sua opção por procedimentos construtivos simples, os quais envolvem menos destreza manual do que entendimento sobre as maneiras como corpos distintos se articulam e se unem ao ambiente que os circunda. Dois anos mais tarde, apresenta a instalação Copulônia (1989), em que as propriedades dos materiais usados (pequenas esferas de chumbo inseridas em meias de poliamida) assumem ainda maior importância na construção de situações de contiguidade e de risco, opondo o peso do metal à aparente fragilidade do tecido. Pendendo do teto, retesadas sobre o piso ou simplesmente amontoadas no chão, as muitas esculturas postas juntas sugerem um espaço onde, além do cálculo, também ronda o imprevisto. A inserção das meias no campo escultórico acentua, por fim, o que marcaria a sua trajetória daí por diante: o abandono gradual de pressupostos construtivos rígidos em favor de uma proximidade maior a elementos flexíveis do cotidiano.2

 

Ao longo da primeira metade da década de 1990, Ernesto Neto percorre caminhos diversos, mas convergentes, de investigação. Por um lado, aprofunda a pesquisa sobre situações de equilíbrio precário, articulando matérias duras e outras moles, algumas pesadas e outras leves, numa subversão calculada da pureza construtiva moderna e aderência ao estado de fragilidade da vida urbana.3 Por outro lado, desenvolve uma série de trabalhos em que torna clara a vontade de pôr o corpo – matéria e índice da vida – no centro de suas criações. Um dos que mais acentuam esse interesse é a série de sete fotografias intitulada M.E.D.I.T. (1993), que registra o enovelamento de sua cabeça por um cordão apertado que é depois rompido, deixando visíveis os sulcos formados pelo contato estreito do fio de algodão com a carne do rosto do artista, feita assim em matéria efêmera de escultura.4

 

A explícita referência à figura humana presente nessas imagens ressoa também em uma série de trabalhos realizados no período, da qual Janus fetus (1995) é exemplo. Fundidos em chumbo, dois moldes de seu rosto são colados um ao outro e postos sobre o piso, de modo a criar uma figura de duas faces que nunca se enxergam e de cujas bocas sai uma única corda que novamente as une, formando, estendida no solo, imagem grande assemelhada a um feto humano. Afirmação inequívoca da simbiose entre obra e vida, a representação figurativa é raramente evocada, porém, nos anos seguintes, dando lugar a trabalhos em que a marca humana se inscreve nos elementos formais das esculturas, nos seus títulos, e na necessidade da proximidade física dos corpos para que elas adquiram sentido.

 

 

Sucedendo os trabalhos feitos de meias preenchidas com bolas de chumbo, Ernesto Neto passa a fazer, na segunda metade da década de 1990, esculturas compostas de tubos de malha translúcida e fina (quase sempre na cor creme) contendo especiarias de sabores, cheiros e cores diferentes, tais como pimenta-do-rei- no moída, açafrão, cravo em pó, urucum ou cominho. Algumas vezes, essas construções são somente levantadas a uma pequena altura e soltas sobre o chão pelo artista, espalhando parte do conteúdo que, com o impacto da queda, atravessa os poros do tecido e acomoda-se em torno do que se assemelha a um saco parcialmente cheio de matéria colorida. Os títulos dessas es- culturas são quase sempre onomatopeicos (Poff; Puff puff; Piff ), tentativa de registrar o som de quantos objetos tombaram sobre o piso e lembrança de que o trabalho depende de um gesto simples, mas decisivo. Em outras ocasiões, em vez de simples- mente jogados, os amontoados de temperos (às vezes, dezenas de quilos) repousam ensacados sobre o chão enquanto as extremidades dos tubos de tecido são esticadas e amarradas no teto ou costuradas em outra porção do mesmo tecido, que, estirada horizontalmente no alto, lhes dá abrigo e reforça a verticalidade das esculturas. Os títulos de alguns desses trabalhos – O céu é a anatomia do meu corpo (1998), Acontece na fricção dos corpos (1998), It happens when the body is anatomy of time (2000) – reafirmam, ainda outra vez, a centralidade que Ernesto Neto concede ao corpo humano na ordenada recriação que faz do universo sensível.

 

Por fim, há trabalhos assemelhados a esses em que as estruturas contendo especiarias são levantadas do piso, ficando penduradas no ar como frutas não maduras o bastante para cair ou como gotas que quedassem congeladas antes que pudessem desabar sobre o  chão.  Essa  suspensão  simbólica  da  passagem do tempo, obtida por um arranjo tenso de matérias diversas no espaço, é procedimento frequente na  obra  do  artista,  tornado aqui apenas mais aparente pelo prolongamento do embate entre forças opostas – a gravidade e a resistência dos tecidos – até quase o limite do esgarçamento. E, se a escala intimista de trabalhos como Dropping fly (1999) ou Morena vai-e-vem (2003) permite a aproximação devagar de cada elemento pingente – e a absorção, com calma, de sua cor e de seu cheiro –, outros maiores – dos quais É o bicho (2001), apresentado na Bienal de Veneza, é talvez o exemplo mais eloquente – quase subjugam quem chega perto deles, seja por sua dimensão, pelo peso suposto, pela mistura de cheiros fortes ou pelas várias cores que concorrem pela atenção do olhar. Ficam no limite tênue que aparta o envolvimento físico do fascínio distante.5

 

A participação passiva de quem se aproxima dos trabalhos acima descritos – sentindo os odores diversos que as especiarias exalam – torna-se ativa em outra série de esculturas realizadas desde o final da década de 1990, confirmando o desejo de Ernesto Neto de fazer do visitante elemento central da constituição dos seus significados. Usando extensas peças do mesmo tecido transparente e flexível, elabora e ergue complexas estruturas penetráveis pelo público, criando sensação de aconchego e proteção para quem ali adentre e permaneça algum tempo. No interior desses trabalhos, são ainda com frequência postos elementos interativos, tais como pingentes de tecido contendo especiarias ou superfícies macias sobre as quais o visitante anda, deita e acomoda o corpo às matérias moles que o artista usa.

 

Várias dessas esculturas são denominadas de “nave” – Nave noiva, blop (1998), Nave denga (1998), Nave deusa (1998), Nave casa (1998-99) –, numa referência à natureza de abrigo que os espaços criados possuem.6 Por ser permeável à incidência dos elementos através de seu trançado minúsculo, o tecido usado não impede de todo, contudo, o contato de quem está dentro dos trabalhos com o ambiente que os circunda, funcionando mais como membrana ou pele fina do que como limite intransponível. Em Útero capela (2000), Ernesto Neto não somente inventa uma imensa “nave” penetrável e a instala em espaço público, mas também a utiliza de modo privado, celebrando o próprio casamento no interior da estrutura que cria.7 Há, nessa operação que permite a habitação temporária dos trabalhos, uma inflexão importante na obra do artista, posto que dissolve a relação de exterioridade do público com as esculturas e questiona, por isso, até mesmo a possibilidade de continuar denominando como tal o que produz. O desmanche das fronteiras rígidas entre o que é exterior e o que é próprio à obra – ou entre o que é do campo da experiência estética e o que responde ao desenrolar comum da vida – é de novo atestado em seguida, quando o artista faz um trabalho para ser montado no meio da rua e destinado a acolher uma festa com dança e música (Taba tenda de som/RageSage, 2001).

 

Há ainda um terceiro importante grupo de trabalhos feitos coetaneamente às “naves” e às construções que empregam especiarias, nos quais há igualmente explícita a referência ao corpo humano e à vontade de capturá-lo para o interior das esculturas. A partir dos Labioides (1996) – inúmeras meias de poliamida recheadas com gesso e postas sobre o piso –, Ernesto Neto desenvolveu a série dos Ovaloides (1998), gordas estruturas tubulares de lycra branca cuja verticalidade é alcançada pela introdução, em seu interior, de incontáveis e minúsculas esferas de poliestireno que as estufam. Assentadas em conjunto sobre o chão como pequenas famílias, essas estranhas criaturas possuem orifícios e fendas que solicitam o contato próximo do público, unindo os corpos dos visitantes aos das esculturas, as suas peles à maciez de uma epiderme feita de tecido. O desenvolvimento dessa ideia levou, finalmente, à feitura dos Humanoides (2001), estruturas semelhantes aos Ovaloides, mas detentoras, além de buracos (os quais revelam, incidentalmente, o “sexo” dos trabalhos), também de assentos e de rasgos que permitem às pessoas combinarem seus corpos aos das esculturas, num abraço simultâneo e mútuo que acentua o caráter antropomórfico das construções do artista. Assim como as “naves”, portanto, esses trabalhos se prestam tanto a uma relação de exterioridade, na qual são apreendidos apenas como forma e volume, quanto a uma relação de interatividade (observada somente ou efetivamente vivenciada pelo público).8

 

 

Tendo consolidado, nas muitas obras que fez em uma década e meia de trabalho intenso, um repertório escultórico conciso, Ernesto Neto inicia a década de 2000 introduzindo, por meio de quatro trabalhos, questões que lhe abrem novas possibilidades de criação. O primeiro deles – Looking for hell Adam and Eve found paradise (2002) – foi projetado para o Kunsthalle Basel (Basileia, Suíça) e feito apenas de luz e tecidos. Logo abaixo de uma claraboia por onde entra luz natural, o artista dispõe, horizontalmente e quase entrelaçando-as como se fossem peça única, duas grandes superfícies de lycra – uma verde e a outra rosa; desse plano suspenso, pendem tubos verticais de tecido branco, banhados pela luz que vem do alto e que atravessa os tecidos coloridos. Expandindo as possibilidades do uso da cor, Ernesto Neto faz com que os tecidos usados (tanto o verde e o rosa quanto os brancos que recebem a luz por eles filtrada) deixem de ser apenas recipientes de matéria portadora de cor para tornarem-se, eles mesmos, simultaneamente matéria e cor. Aos visitantes que ingressavam na área demarcada pelo trabalho, por sua vez, era oferecida, não o balizamento ambiental feito por elementos coloridos pontualmente dispersos no espaço (massas compactas de especiarias penduradas), mas a sensação de imersão física em homogêneos campos coloridos.

 

O segundo trabalho a apontar, com clareza, mudanças nos procedimentos de criação de Ernesto Neto foi apresentado no Hirshhorn Museum (Washington D.C., EUA), e chama-se The dangerous logic of wooing (2002). Preenchendo uma enorme estrutura de lycra branca com esferas de poliestireno semelhantes às já usadas em esculturas de menor porte (o conjunto dos Humanoides, por exemplo), o artista suspende-a totalmente no teto usando arroz como contrapeso à matéria que dá volume ao tecido, fazendo com que do alto pendam, até alturas variadas, partes diversas e amorfas da peça. Em vez do que ocorria com o uso das especiarias, aqui o enchimento do tecido não enfatiza a percepção cromática do trabalho nem concentra o interesse do olhar sobre partes específicas da escultura, antes destacando a continuidade de sua superfície extensa e irregular. Também não há mais uma hierarquia claramente definida entre as porções do tecido que servem de sustentação ao trabalho e aquelas que abrigam as outras matérias que o inflam; existe, ao contrário, uma indeterminação formal que se contrapõe ao ordenamento estrito existente em outras esculturas.

 

Em trabalho apresentado no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife) – A gente se encontra aqui hoje, amanhã em outro lugar. Enquanto isso deus é deusa. Santa gravidade (2003) –, há uma combinação dos elementos avançados nos dois trabalhos realizados um ano antes. Suspensa do alto do vão largo que atravessa e une dois andares do museu,  a  escultura  é  formada  por  duas  peças de lycra verde preenchidas com poliestireno que se cruzam e se tocam no espaço – numa sugestão de fusão ou cópula, frequente na obra do artista –, tendo como elementos de amarração ao teto tubos de lycra rosa que acomodam arroz como contrapeso ao restante da peça. De uma maneira ainda mais evidente e radical do que ocorre com The dangerous logic of wooing, nessa escultura Ernesto Neto admite a gradual perda do controle rígido sobre o resultado do seu intento construtivo, deixando que os materiais usados negociem entre si as partes que ocupam do espaço, e que se acomodem à força  da  gravidade,  resguardando-se,  portanto, da responsabilidade plena sobre a tensa configuração final da escultura. O artista coloca-se, assim, menos na posição de criador de formas definidas do que na de agenciador do confronto entre forças distintas, do qual resultam as dobras, as voltas, os acúmulos e os vazios do trabalho, em torno e por meio dos quais o visitante caminha. Também o uso de cores é aqui potencializado, pois, ao invés de concentradas em montes de especiarias diversas ou apenas tingindo ou projetando-se em tecidos que não abrigam matéria (como em Looking for hell Adam and Eve found paradise), em A gente se encontra aqui hoje… elas escorrem por todo o trabalho e ganham o volume da matéria que preenche o tecido.

 

Por fim, há o trabalho Greta gruta (2002), marco de mudança aparentemente brusca dos meios expressivos empregados pelo artista. Agrupando mais de duas dezenas de blocos de espuma rígida, Ernesto Neto cria uma estrutura compacta e regular do tamanho de uma habitação pequena; munido de serra, fura a sua superfície homogênea e abre espaços imprecisos dentro da matéria dura, construindo passagens e ambientes assemelhados, na irregularidade das superfícies cavadas, às texturas rochosas de uma caverna. Embora haja, nesse trabalho, semelhanças possíveis com as “naves” feitas de tecido – ambos são espaços de recolhimento e proporcionam contato íntimo com os materiais de que são construídos –, há em Greta gruta características que o distinguem claramente daquelas esculturas. Enquanto as “naves” permitem a permanência do visitante no interior dos trabalhos e o simultâneo contato sensível com o que lhes é exterior por meio da transparência fina do tecido, dentro de Greta gruta ele está isolado, pela opacidade e pela espessura da espuma, da visão, dos sons e dos cheiros de tudo o que circunda a escultura. A despeito dessa ruptura aparente com o desejo de criar espaços intersticiais, existe clara unidade conceitual entre esse trabalho e os concebidos para o Hirshhorn Museum (logo antes) e para o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (logo em seguida), posto que os três expressam o progressivo desapego do artista à ideia de construção totalmente planejada, deixando ao acaso do corte inexato de um bloco de espuma, ou ao arranjo em parte arbitrário de estruturas de tecido e poliestireno que pendem do alto, a conformação final das esculturas que faz.

 

Ao explicitar o abandono de um planejamento construtivo preciso, em que as formas da escultura acabada seriam plena- mente definidas antes de sua execução, essas construções reiteram e tornam mais nítido um processo operante, ainda que de modo antes tímido, desde o início da trajetória de Ernesto Neto. Em vez de adotar, como outros escultores, um método “prospectivo” de criação – em que o trabalho passa do esboço à maquete e daí a várias etapas em que recuos e ajustes aproximativos ao projeto inicial são rotina –, o artista assume, como elemento indissociável de seu processo criativo, a ausência de conhecimento prévio sobre o resultado exato do que ergue no espaço ou apoia sobre o piso (mesmo quando faz o desenho da peça antes de construí-la, ele é mais intenção genérica do que projeção a ser fielmente seguida). As esculturas de Ernesto Neto são, portanto, cada vez mais resultado de uma construção negociada, nas suas sucessivas etapas, com as características físicas dos lugares onde as monta, com os materiais usados (e suas combinações diversas de densidade, elasticidade, resistência e peso) e com as expectativas que possui da resposta do público, assumindo um método “retrospectivo” de criação, para o qual o que mais vale é estar atento e saber responder às situações diferentes com a rapidez que elas requerem.9

 

Esses trabalhos são, por fim, talvez os que mais claramente sugerem o afastamento gradual da obra de Ernesto Neto da influência construtiva que havia  balizado  o  seu  desenvolvimento  por um período longo, promovendo o amolecimento da racionalidade relacional  nela  implícita.  Ao  invés  de  buscar  o  estabelecimento de relações composicionais entre matérias distintas – obtendo delas uma “ordem” ou “um princípio construtivo” rígido –, tais esculturas negam a interioridade da forma ou a existência de um vetor único de forças que as organizem, expressando uma composição  escultural  sem  hierarquias.  Em  operações  análogas  realizadas  sobre o plano, das quais o trabalho Quanta luz. O corpo não mente (2001) é exemplo, o artista seguidamente suja o dedo com pigmento e o pressiona, a distâncias regulares, sobre as paredes e os tetos dos espaços expositivos que lhe cabe ocupar, deixando neles os rastros de seus gestos repetidos e criando longos “caminhos” sem rumos previamente  acertados.  A  despeito  de  suas  evidentes  diferenças de construção, depreende-se, igualmente das esculturas e dessas intervenções, uma  recusa  à  composição  definida  entre  partes  e um interesse claro por uma ideia de continuidade de volumes e superfícies.10 Alargam, cada conjunto de trabalhos a seu modo, a potência semântica de uma obra que se quer fluida.

 

 

1 O movimento neoconcreto surge, em 1959, a partir da rejeição, por um grupo de artistas concretistas do Rio de Janeiro (oriundos do grupo Frente), daquilo que eles viam como uma exacerbação racionalista dos artistas concretistas de São Paulo (oriundos do grupo Ruptura).

 

2 O início da trajetória de Ernesto Neto é claramente marcado pelas obras que os artistas brasileiros José Rezende (1945) e Tunga (1952) desenvolveram nas décadas de 1970 e 1980, as quais exploram as possibilidades de articulação simultaneamente formal e simbólica entre matérias diversas. O escultor brasileiro Sergio Camargo (1930-1990) é também uma influência reconhecida pelo artista, menos pelas formas criadas ou materiais usados do que pelas soluções construtivas simples empregadas em seus trabalhos.

 

3 A instalação Topologic fluency on a structural camp for a high density point, yeah! (1992) é exemplo desse interesse continuado. Apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, consistia em uma série de estruturas feitas de cobre, chumbo, algodão, lycra e poliamida que produziam situações de equilíbrio instável.

 

4 Esse trabalho se insere, igualmente, em uma tradição já extensa (body art) inaugurada pelos dadaístas e surrealistas e expandida em direções variadas na segunda metade do século XX, na qual o próprio corpo do artista é o suporte e o tema para operações criativas. Ainda que originalmente apoiado em motivações distintas, M.E.D.I.T. remete, por essa filiação inequívoca, a um trabalho em vídeo da artista brasileira Sônia Andrade (sem título, 1977), no qual ela também envolve o seu rosto com um fio de nylon apertado até deformá-lo por inteiro, anulando, por meio desse automolestamento, estereótipos de feminilidade.

 

5 O uso de porções concentradas de especiarias nessas esculturas, nas quais odor e cor assumem um volume definido pelo espaço que ocupam no tecido, remete tais trabalhos diretamente aos bólides caixa e bólides vidro feitos pelo artista brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980) a partir de 1963. Em vários desses trabalhos, pequenos recipientes continham nada além de massas de pigmentos puros, alimentos como pó de café e feijão ou, ainda, substâncias diversas como lama e flocos coloridos de espuma. Uma outra referência possível e anterior aos trabalhos citados de Hélio Oiticica – embora também parte integrante da tradição neoconcreta que informa a obra de Ernesto Neto – é o trabalho Cubo-cor (1960), do artista brasileiro Aluísio Carvão (1920-2001), pequeno cubo de cimento uniformemente coberto por pigmento vermelho que expressava a ocupação cromática do espaço.

 

6 É nas “naves” que fica mais clara a ascendência de trabalhos de Hélio Oiticica – núcleos, penetráveis, ninhos, Tropicália (1967) – e da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988) – objetos relacionais, A casa é o corpo (1968) – na obra do artista. Ernesto Neto ainda guarda nas “naves”, contudo, um interesse pela forma escultórica que parece não ocupar mais espaço relevante nas obras maduras de Hélio Oiticica e Lygia Clark.

 

7 Esse trabalho compôs, articulado a duas outras esculturas (Descaminhos de Lili e Corpos, corpos, corpos), a exposição O Casamento – Lili, Neto, Lito e os Loucos (2000), realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Para uma discussão da obra de Ernesto Neto a partir do conceito de “intimidade”, ver PEDROSA, Adriano. Esculturas íntimas. In: Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte Contemporánea, 2002.

 

8 NETO, Ernesto; PEREIRA, Cecília. A fragilidade do mundo. Cecilia Pereira entrevista a Ernesto Neto. In: Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte Contemporánea, 2002.

 

9 Há, nesse método “retrospectivo” adotado por Ernesto Neto, um elemento de improvisação que o aproxima dos procedimentos criativos do jazz, cujos praticantes usualmente iniciam seus solos apenas com um breve motivo melódico já conhecido, sem saber ao certo como irá desenvolvê-lo daí por diante e moldando cada frase musical tocada em função da que a antecedeu de imediato. GIOIA, Ted. The imperfect art. Reflections on jazz and modern culture. Oxford: Oxford University Press, 1988.

 

10 O descentramento presente nas construções recentes de Ernesto Neto (sejam elas esculturas ou desenhos feitos em extensas superfícies) aproxima-as, conceitualmente, do ideário minimalista, o qual também se furta a estabelecer relações fixas de organização da matéria e, portanto, a conferir-lhe um significado único. KRAUSS, Rosalind. Passages in modern sculpture. Massachusetts: MIT Press, 1977.

OS INIMGOS

OS INIMIGOS

Gil Vicente

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Parcela importante da produção artística contemporânea tem, no ato transgressor das convenções vigentes  (estéticas,  morais, legais), o seu modo de afirmar-se como presença distinta no mundo. Presença de algo para o que não existe nome certo nem lugar simbólico estável, que nega o que aí está e que afirma um devir incerto, mas no qual é depositada a esperança daquilo que é diferente. Presença no mundo, contudo, que requer um ato de reconhecimento do outro (daquele que está sendo negado) para que possua inscrição e vigência social. Parte relevante da tradição de vanguarda da arte ocidental operou, por quase um século, nessa fronteira ambígua entre o radical questionamento da autoridade de um determinado conjunto de valores e a legitimação desse gesto pelo campo de saberes e poderes que, ao contrário, afirma e defende a sua permanência. Pensar em arte transgressora é, portanto, pensar nessa relação necessariamente inacabada e irresoluta entre a negação da autoridade de um sistema de valoração das coisas que habitam o mundo e a necessidade da preservação desse sistema para que o próprio ato de negá-lo possa existir socialmente. Dito em termos mais amplos, a arte constantemente quebra os tabus dos quais contraditoriamente necessita para afirmar sua diferença diante de tudo o que mais existe. Nesse sentido, talvez seja até possível dizer que toda arte que expande o seu lugar de existência no mundo é, por definição, transgressora e, no limite, criminosa. Ela desfaz regras, ignora convenções, alarga o campo de percepção da realidade. A arte é perigosa. E é necessário, então, que existam defesas contra ela. Que novas convenções sejam criadas, que ela seja novamente acolhida nas instituições e perdoada, mesmo tendo cometido abusos e crimes, mesmo tendo abalado certezas antigas e confortáveis. Até que de novo escape dos limites frágeis com que buscam cercá-la e se mostre mais uma vez e naturalmente incomodada.

Há ainda um outro aspecto da relação entre arte e transgressão que deve ser destacado. No mais das vezes, os atos transgressivos realizados por artistas são endereçados ao Estado ou a corporações que detêm poder material ou simbólico; instituições, portanto, que garantem a manutenção das condições do mundo tal como ele está. Nesse sentido, a relação entre arte e ações transgressoras assemelha-se e associa-se, de uma maneira precisa, àquela existente entre a arte e a política, instâncias que, para Jacques Rancière, estariam igualmente comprometidas com a quebra da crença consensual de que existiria apenas um modo de vida possível. Para o filósofo francês, o campo da política é aquele em que a agenda dos temas discutidos entre os que possuem interesses diferentes na sociedade e os argumentos utilizados nessas discussões são constantemente por esses reinventados. Em verdade, diz Rancière, até mesmo os lugares onde esses embates se travam são a todo tempo reconstruídos e alargados por meio dos movimentos que cada agente em conflito faz. E à medida que a política constantemente recria, como fruto desses embates, o próprio sistema das formas que governam aquilo que pode ser visto e aquilo que pode ser dito, ela alarga e recompõe, em simultâneo, o mundo da percepção e o mundo do sensível. Nessa acepção clara e precisa, pode-se dizer que a política pertence ao âmbito da estética. Mas também a arte, diz o filósofo, tem esse poder de constantemente reenquadrar e de expandir o que pode ser percebido e sentido no presente. Assim como a política, a arte reconfigura o repertório e as formas do que pode ser pensado, dito e visto por certa comunidade em um determinado momento. Nesse outro sentido, então, a arte pertence ao âmbito da política.1

 

É nesse contexto tenso e complexo que melhor se pode apreender a singularidade da série Inimigos (2005-2010), de Gil Vicente, na qual o artista assume, em uma série de desenhos realistas feitos em carvão sobre papel e em tamanho próximo ao natural, o papel de assassino de vários dirigentes políticos, os quais, atuando em âmbitos geográficos diversos, são portadores de visões distintas, se não conflitantes, de mundo. Com faca ou revólver, de frente ou pelas costas, Gil Vicente representa o momento imediatamente anterior ao que “mata”, entre outros, George W. Bush e Kofi Annan, Lula e Fernando Henrique Cardoso, o Papa Bento XVI e Ariel Sharon. E é esse espectro amplo de orientações ideológicas dos retratados que sugere que o que está em jogo nesse trabalho é menos a afirmação de uma causa precisa e mais o repúdio, no campo do simbólico, a qualquer maneira institucionalizada de exercitar o poder. Fica patente aqui, portanto, o cansaço do artista com os modos de representação política vigentes e uma desilusão profunda com a possibilidade de mudanças por meio de lideranças formalmente constituídas. Expressão de um esgotamento que, em muitas ocasiões, tem levado outros ao confronto violento com quem detém o domínio legal do arbítrio e, no limite, a sua supressão por atos criminosos. Em seu trabalho, entretanto, Gil Vicente não busca, evidentemente, a confusão entre arte e crime, mas antes a substituição do crime como um ato pela criação de sua imagem explícita. Anuncia-o, mas imediatamente o sublima como signo suspenso em um tempo impreciso. Em vez da faca na carne, o risco do carvão no papel. Em vez do tiro à queima-roupa, o traço escuro que marca fundo quem o segue com o olho sobre o suporte claro. Considerando, todavia, o caráter ofensivo e agressivo desses desenhos para com os retratados, é somente a sua inscrição no campo expressivo da arte e, simultaneamente, no do embate democrático de juízos que impede que esses trabalhos sejam, também eles, tomados como atos criminosos. Como consequência, é a paradoxal relação entre, por um lado, a crítica dura que fazem a toda forma de poder instituído e, por outro, a sua inserção em campos de convívio que os sanciona como legais e legítimos, que faz com que os desenhos da série Inimigos se tornem exemplares da faculdade que a arte tem de gradualmente ampliar o âmbito do que é passível de ser enunciado e descrito. É, ademais, um trabalho modelar, em um sentido forte e inequívoco, da afirmação do filósofo alemão Theodor Adorno, para quem “toda obra de arte é um crime não cometido”.2

 

 

1 RANCIÈRE, Jacques. Politics of aesthetics. In _. Aesthetics and its discontents. Cambridge: Polity Press, 2009.

 

2 ADORNO, Theodor. Minima moralia. Londres: Verso Books, 1981.

O OUTRO LADO DO RIO

O OUTRO LADO DO RIO

Gilvan Samico

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Em cada xilogravura de Gilvan Samico, há o sinal do aprendizado que matura e se assenta. Nas primeiras, feitas ainda na década de 1950, era clara a presença dos mestres do ofício es- colhido – Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi –, dos quais recebeu lições diversas: do primeiro, a autonomia gráfica e a exuberância do traço; do segundo, o uso contido da cor e do espaço. Lições que, nesse período formativo, serviram à representação de seu entorno provisório (São Paulo inicialmente, depois Rio de Janeiro) ou de lugares distantes lembrados (Recife, sobretudo). Deixando-se levar, alternadamente, pela força dos ensinamentos que herdou – ou combinando-os, de modo singular, em uma mesma imagem –, soube, com inventividade e rigor, depois transmudá-los em linguagem nova. Transformação que se dá no início do decênio seguinte, quando o artista confronta as técnicas adquiridas com o universo criativo do romanceiro popular do Nordeste do Brasil. Não tanto, ou somente, com as xilogravuras que ilustram as capas dos folhetos de cordel, mas também, e principalmente, com as histórias ali contadas, as quais refundam mitos, arquétipos e lendas, atualizando um tempo que a memória não pode alcançar. Ao se deixar absorver por textos fantasiosos como o de Juvenal e o dragão – de autoria do cordelista paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918) –, é instado, portanto, a apagar a vontade de mimetizar o mundo, afastando-se de sua produção inicial. Em vez de espaços perspectivados e de um tempo histórico reconhecível, é a suspensão de uma localização e de uma época precisas que é dele requerida nas cenas que grava. De recriações gráficas do que lia ou ouvia, passa logo, contudo, a inventar, ele próprio, situações apenas inspiradas naqueles ambientes habitados por pessoas, demônios e santos e por bichos domésticos, selvagens ou frutos da invenção, as quais cava na madeira e imprime sobre papéis. É exemplo desse período de produção intensa a gravura Tentação de Santo Antônio (1962), em que as técnicas cultas aprendidas e um repertório inspirado no romanceiro popular são postos em convívio tenso, ambos redefinidos sob o poder da criação individual, o qual é irredutível tanto a uma fatura virtuosa quanto ao conteúdo do que por meio dela é narrado.

 

Em trabalhos realizados nos anos seguintes, Gilvan Samico deixa sedimentar as influências diversas e radicaliza a originalidade de seu projeto criativo. Três gravuras datadas de 1964 sintetizam, quando vistas retrospectivamente, as descobertas que então fazia, anunciando, ainda, a potência narrativa que sua obra daí por diante iria ganhar. Na primeira delas, O triunfo da virtude sobre o demônio, o artista deixa claro o seu desejo – já sugerido em trabalhos anteriores – de despir a cena descrita do compromisso com o realismo do relato, mesclando, sem hierarquias, o verossímil e o imaginado. Para o afastamento da representação naturalista, é crucial a permuta da escuridão entintada – repleta de detalhes riscados – pelo branco vago que abstrai interiores e paisagens, fruto da inversão da técnica usada para gravar: as linhas resultam não mais, como no início de sua trajetória, de incisões delgadas na madeira, mas do desbaste que retira da matriz tudo o que contorna as figuras que deseja criar. Há, por fim, no título e em elementos iconográficos dessa gravura, a menção clara ao dualismo temático que habita vários de seus trabalhos, o qual seria logo transposto, no campo formal da obra, como arranjo simétrico das cenas inventadas.

 

Em Apocalipse, a segunda das gravuras desse período “formativo” postas aqui em relevo, o artista afirma, por meio da segmentação do espaço gravado em compartimentos estanques, a simultaneidade de narrativas diversas, traço marcante em sua obra madura e que fora, antes, somente insinuado. Embora uma cena necessite da outra para que o sentido do trabalho se estabeleça de modo pleno, elas se desenrolam claramente em espaços e tempos distintos, os quais não possuem, todavia, marcas de localização detalhadas. Do pouco que se pode precisar, vê-se, na imagem superior da gravura, uma mulher proceder a uma atividade de trabalho ordinária, como a colheita de um fruto qualquer. Na inferior, ainda menos situada, observa-se uma figura híbrida assemelhada a cavalo e a dragão – esperar, talvez impaciente, o momento certo de emergir da escuridão que a envolve. A ligação simbólica e formal entre uma cena e a outra é sugerida, além do título da gravura, por um estranho pássaro que, ao apontar, desde o alto do papel, seu bico longo em direção ao chão que separa as imagens gravadas, parece anunciar o rompimento iminente dessa linha tênue e um violento final.

 

Já em O pecado, o que sobressai é a ideia da simetria composicional esboçada em outros trabalhos. Uma figura demoníaca equilibra, em sua comprida língua, uma maçã madura, apresentando, seguros por suas mãos, dois estandartes com as imagens em perfil de uma mulher e de um homem. Complementando a cena, seu rabo bifurca em duas extremidades idênticas, terminando em forma de setas que apontam, acusadoras, para as figuras icônicas descritas nas flâmulas. A apresentação sumária da narrativa bíblica do pecado original – eco das personagens e mitologias religiosas que povoam a cultura popular nordestina reforça o abandono de referências ao mundo sensível e oferece sinais de arrefecimento da vontade, até pouco antes evidente, de desfiar uma história plenamente. Abrevia a cronologia daquilo que conta a somente um resumo simbólico, e finca seu assunto no âmbito sem começo e sem fim do que é só sugestão.

 

Na gravura A luta dos anjos (1968), Gilvan Samico faz quase a súmula das transformações pelas quais sua obra havia até então passado, articulando, além da parcimônia do emprego da cor e do uso quase feérico do traço, simultaneidade narrativa em campos distintos e simetria de composição por meio do espelhamento vertical de imagens. Deixa-a permear, contudo, pela diversidade de interesses que anota no percurso que trilha e que, ao mesmo tempo, funda: se, em um dos segmentos gravados, a composição é sintética muito mais compressão de signos do que narrativa alongada –, restam ainda sinais, na outra porção do trabalho, de um espaço onde há piso firme e onde uma história qualquer é contada. Há também, nas duas cenas emolduradas, clara oposição de ânimos placidez na que encima o trabalho, agressividade na de baixo –, lembrança possível de que, em sua obra, a límpida resolução formal não significa apagamento de desigualdades. Quase uma década depois, já fixado em Olinda, é A luta dos homens (1977) que traz, em termos concisos e sem qualquer dubiedade construtiva, todos os elementos que o artista maturou por tempo longo. É instrutivo apontar, todavia, que, embora as imagens contidas nas molduras que compõem esse trabalho não descrevam qualquer história extensa, elas se comunicam a toda hora de modo orgânico: seja por aproximações ou contrastes simbólicos, seja por meio da complexa arquitetura que as linhas gravadas demarcam.

 

A partir da gravura No reino da ave dos três punhais (1975), Gilvan Samico passa a fazer apenas uma nova gravura por ano. Não há nessa economia produtiva, entretanto, sinais de enfado com os achados feitos até então; tampouco é essa parcimônia demonstração de modéstia ou recato. É esse, somente, o tempo necessário para que tome forma, com o rigor e a clareza que a pressa por vezes embaça, o mundo de pensamentos e de hábeis gestos que cria. Central nesse processo de invenção são os muitos desenhos preparatórios em que o artista projeta e ensaia a imagem que, ao cabo de um período que pode durar meses, alarga e sulca com precisão sobre a matriz de madeira e que, em seguida, imprime sobre os finos papéis por ele usados. Em algumas raras vezes, há apenas pequenas diferenças entre  o  primeiro  esboço que faz e a cena que é finalmente gravada; em outras e mais frequentes ocasiões, a imagem que fora de início pensada é alterada seguidamente até que se afigure como satisfatória a seu olhar. Tais mudanças são feitas pela supressão de elementos originais, pela combinação destes de maneiras diversas, por seu posicionamento variado nas superfícies desenhadas ou, ainda, pelo acréscimo gradual de aspectos antes ausentes desses espaços.

Entre os muitos elementos que o mundo que Gilvan Samico inventa contém – alguns deles apontados aqui –, deve-se igualmente registrar as distintas funções que uma só imagem assume em um mesmo trabalho. Em O guardião (1979) ou O devorador de estrelas (1999), as imagens, respectivamente, de uma flâmula e de uma estrela são usadas tanto como fragmento da narração de um fato como na forma de emblemas ou signos apartados de qualquer enredo e aos quais podem ser atribuídos diferentes significados. Passam de um a outro campo das gravuras assumindo, em cada um deles, uma serventia diversa. Uma mesma imagem pode ademais migrar de um trabalho a outro, assumindo funções de composição distintas e atando tempos apartados: é assim que a figura que ocupa toda a superfície de O rapto do sol (1960) – uma sereia segurando, sobre sua cabeça, a estrela maior – está também presente em gravura de mesmo nome feita duas décadas e meia adiante, iluminando, desta feita, a passagem de três barcos; ou, de modo inverso, que a imagem central de Luzia entre as feras (1968) remete à mulher que segura os ramos em um canto de O triunfo da virtude sobre o demônio, realizada quatro anos antes.

 

Outro elemento presente, desde há muito, em vários trabalhos do artista, são linhas paralelas e ondulantes gravadas, que possuem funções que vão além da composição da cena ou de ornamentação da imagem: são elas mesmas parte da história contada e sugestão de corrente ou jorro de fluidos diversos. Se um rio cruza o plano e ancora o trabalho em O guardião, são as águas de um lago que vazam do alto de O diálogo (1988) e se derramam sobre o centro da gravura. Já em A fonte (1990), um líquido espesso verte de nascente híbrida – parte peixe e parte perna de mulher –, banhando duas figuras situadas abaixo. Para além dos sentidos simbólicos enunciados de forma menos ou mais clara por estas imagens, a recorrente presença de um índice gráfico de fluidez nos trabalhos evoca a própria natureza imprecisa e movente da obra de Gilvan Samico, posto que, a despeito do seu compromisso irrestrito e ético com os procedimentos técnicos da xilogravura, pouco mais em seu ofício é contido em limites definidos. O mundo que o artista cria e grava não fica em lugar algum, ou é lugar somente de encontro e passagem: se está claramente imerso no repertório da cultura popular, faz igualmente referências ao campo simbólico erudito; se é dedicado à organização do plano com figuras de animais e gentes, dialoga também com os arranjos urdidos pelo construtivismo. De maneira deliberada ou não, avizinha ainda símbolos judaicos, cristãos e referências visuais a religiões de origem não ocidental, quase sempre retirados de seu contexto de início. Por fim, não há tampouco inserção precisa no calendário daquilo que Gilvan Samico cava e imprime, fazendo da atemporalidade das cenas justamente seu rastro ímpar.

 

Talvez em nenhuma outra gravura essa transitividade esteja mais evidente do que em O outro lado do rio (1980). Nela, um homem nada, impassível, em um curso d’água, enquanto, em uma de suas margens, desliza uma cobra e, na outra, esconde-se na vegetação um bicho que parece ser misto de onça e cabra. Pouco disposto a se encontrar com um ou com o outro animal, o homem parece resignado a continuar nadando em frente, sem optar por um ou pelo outro dos óbvios lados. O “outro lado” de que fala o título do trabalho parece estar mais além, no território enorme da invenção, aquele que não conhece origem ou destino certos. O homem nadando faz como houvera antes feito o personagem de “A terceira margem do rio”, conto exemplar de João Guimarães Rosa, decidido a viver dentro de uma canoa até a chegada incerta da morte, para sempre vagando sobre a água. Tal como a obra do escritor, a de Gilvan Samico é de classificação impossível, ambas movendo-se entre o que é próprio de um lugar e o que está em nenhuma parte.

O TEMPO IMPRECISO...

O TEMPO IMPRECISO
QUE SE CHAMA DE AGORA

José Rufino

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Ali estamos, lado a lado, na areia cor de sal, entre pessoas que também perderam filhos ou relógios, a juventude ou oportunidades, a coragem ou os dentes, os pais ou o dinheiro, a confiança ou o braço, ou o ardor, ou os bens de raiz, ou a identidade, ou o emprego, ou o juízo, ou o rumo, ou a força, ou a vida, ali estamos farejando um morto.

 

Osman Lins, Perdidos e achados

 

Se há um começo aqui, ele está na história de um nome. José Rufino não é o nome de registro do artista, mas como era chamado o seu avô paterno (1895-1979), antigo senhor do engenho Vaca Brava, situado em Areia, município do brejo da Paraíba. A apropriação do nome desse seu ascendente, já no final da década de 1980, coincide com o recebimento, como herança familiar, do acervo documental que àquele pertencera: formado por cartas, notas, recibos, bilhetes, livros e papelada diversa, esse ajuntamento de rastros materiais permitiu a reconstituição de parte do universo escriturário e sentimental no qual seu avô vivera e exercera, por tempo longo, o poder dos donos.1 Universo que inclui o ambiente familiar e geográfico no qual o artista, na infância, passou extensas temporadas. Foi a partir desse encontro com seu passado próximo e também distante que a obra que desenvolvia sob o nome de origem (José Augusto de Almeida) sofreu inflexão brusca, passando a tomar aquele acervo como suporte quase único.

 

É desse período o início das Cartas de Areia, centenas de desenhos e pinturas feitos sobre envelopes e cartas enviadas a seu avô por muitas décadas e por gentes as mais distintas. Valendo-se de meios variados (lápis, nanquim, guache, têmpera etc.), José Rufino criou, sobre esses registros de época, um outro inventário de lembranças e símbolos, estabelecendo laços entre gerações diferentes e tecendo elos entre tempos distantes. Por vezes, são imagens de paisagens áridas tiradas da memória que enchem o papel antigo; em outras, são evocações da casa grande da fazenda ou de móveis da família. Há ainda figuras solitárias e despidas que exibem seus sexos, assim como a presença recorrente de árvores e cruzes. Parcialmente encobrindo endereçamentos, carimbos, selos ou mensagens formais, as imagens criadas desvelam a sobreposição de histórias diversas que, embora apartadas pelo tempo, já dividiram um mesmo lugar.

 

Procedimento construtivo similar deu também origem a vários objetos. Em alguns deles, documentos que foram do avô do artista são parcialmente inseridos e colados em fendas de pequenos cepos, os quais são, em seguida, fixados à parede em linha; inspecionados com cuidado, intui-se do que tratam esses papéis, sem que seja jamais possível, todavia, revelar o seu conteúdo específico. Em outros objetos, cartas que pertenceram a seu ascendente são quase todas encobertas com tinta e, ligadas umas às outras como se formassem um único e longo documento, atreladas a antigas máquinas de datilografar postas sobre parede ou chão; embora as autorias do texto antigo e das manchas recentes que em parte o encobrem sejam diversas, ambos parecem ao menos ser – pelo modo como se estruturam tais construções – da mesma ordem de importância.

 

Em cada um desses trabalhos, há um conflito aparente de intenções que vai percorrer parte extensa da obra de José Rufino e que adquire, ao longo do tempo, formas de apresentação variadas: por um lado, o artista exibe documentos de conhecimento até então restrito, fazendo com que informações privadas e antigas se tornem parte de uma obra pública e recente; por outro lado, porém, encobre parte do conteúdo desses documentos com tinta ou os coloca em lugares onde o olhar não os decifra por inteiro, vedando o acesso ao seu conteúdo íntegro. É justamente por meio da emissão desses sinais contrários, entretanto, que a sua obra pode transcender a mera exibição de reminiscências privadas e tornar-se ignitor das lembranças de quem tenha com ela contato. Aproximando tempos diferentes, José Rufino faz da memória individual passagem para a rememoração coletiva, e de uma operação criativa um método para acercar-se das pequenas histórias que tecem a vida.2

 

Esse avizinhamento entre a memória afetiva do artista e a memória do outro ganhou também, a partir da segunda metade da década de 1990, a forma de instalações de médio e grande porte. Em uma das mais eloquentes – Lacrymatio (1996) –, dezenas de cartas originalmente enviadas ao seu avô são parcialmente encobertas com têmpera, presas às paredes em alturas diversas e, unidas por tubos de borracha, conduzidas a uma cadeira vazia, vórtice de significados distintos – mas paradoxalmente próximos –, como medo e apego familiar. Em algumas das cartas, nada mais é possível ler sob a camada espessa de tinta, posto que o seu gesto atual se afirma pleno sobre os registros da vida do ascendente. Em outras, contudo, ainda se distinguem, entre as marcas deixadas por pinceladas, trechos das mensagens escritas para o seu avô, sejam elas de agradecimento por alguma medida tomada, de proposição de negócios envolvendo a posse de terras ou a prosaica formulação de convite para uma celebração em família. Se é certo que a imagem de uma rede de tubos conectando unidades dispersas e as levando ao mesmo ponto pode ser tomada como metáfora de genealogia, raiz e aconchego, é fato que ela pode ser também indício do poder de mando daquele para quem tantas cartas de procedências variadas são endereçadas. Permitindo uma interpretação ou a outra, a imagem que José Rufino cria possui apelo para afirmar-se como descrição universal das ambíguas relações que envolvem, em medidas diversas, afeto e domínio.

 

De modo condensado, referências visuais ao exercício do poder estão igualmente presentes em instalação sem título e somente um pouco anterior à já mencionada. Nesse trabalho, um ambiente pequeno abriga uma cadeira, também vazia, em cujas bordas do assento e espaldar são afixadas placas de cobre e diante da qual repousa sobre o chão a fotografia de uma criança – o próprio artista –, coberta por uma camada de resina opaca. Do teto, cai o fio que sustenta a única lâmpada que ilumina mal a sala e que provoca e testemunha, de perto, o amolecimento da matéria plástica e o consequente apagamento progressivo de sua imagem. Além do nome que lhe foi dado, José Rufino parcialmente anula a própria identidade visual em favor da afirmação de um espaço e de um tempo fluido, situado entre o passado em que seu avô viveu e o presente que, para ele, não basta. E é justamente na atualização de um tempo vivido por outros e na sua ressignificação para os que vivem agora que se funda a originalidade de sua produção.

 

Desde o final da década de 1990, contudo, José Rufino prescinde dos rastros materiais de sua memória afetiva para transitar, por meio de outros trabalhos, entre tempos distintos. Interferindo em documentos que registram negócios passados de lugares diversos, ele tem evocado o cotidiano emaranhado em que viveram aqueles que os manusearam, e tem aproximado, em um processo de universalização de suas lembranças de origem, o interior da Paraíba a parte qualquer do mundo. Enquanto, na instalação Laceratio (1999), o artista apropria-se de documentos há muito esquecidos da administração portuária da cidade de Porto Alegre (apropriação feita com o consentimento de seus gestores) e neles imprime, com têmpera, as marcas de sua vontade, em Murmuratio (2001), são papéis sem uso e móveis antigos da Ferrovia Vale do Rio Doce (igualmente cedidos pela empresa que detinha os seus direitos de propriedade, sediada na cidade de Vitória) que lhe vão servir de suporte para os desenhos que faz. Ao contrário dos trabalhos anteriores, porém, os desenhos não descrevem mais imagens cavadas na sua memória, nem são apenas manchas informes que encobrem partes dos rastros de um passado por ele conhecido: evocam, quase todos, uma figura humana em processo de dissolução, parecendo anunciar mais a ausência do que a presença de quem porventura esteja ali representado. Além disso, e diferentemente dos desenhos, objetos e instalações feitos com o acervo documental que pertencera a seu avô, não há nesses trabalhos um envolvimento afetivo natural de José Rufino com os documentos que utiliza como suporte, o que o faz buscar, de modo deliberado, uma aproximação aos registros materiais do passado daquelas instituições e às lembranças das pessoas a elas ligadas por força de suas antigas ocupações. Não são apenas vários tempos, mas também espaços distantes, portanto, que se roçam nas construções do artista. Suas memórias de Areia deixam de ser somente inventário do repertório simbólico com que primeiro enxergou a vida para se transformar em meio próprio de acercar- se de quase tudo o que há em seu alargado entorno.3

 

Esse método singular de perceber e comentar o mundo atinge ainda maior complexidade na instalação Plasmatio (2002), originalmente apresentada na Bienal de São Paulo. Após passar por um ambiente estreito ou pequeno (um corredor na montagem original e uma saleta na montagem feita no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães), o visitante adentra uma sala de dimensões largas, onde logo se vislumbram, no centro do espaço, duas torres feitas de pesadas escrivaninhas empilhadas que ladeiam e confinam uma pintura. Suas manchas verticais e simétricas escorrem desde o alto a partir de uma caixa pequena de madeira, atravessam o assento de um banco cujos pés estão apoiados sobre as torres dos móveis escuros e terminam quase rentes ao piso, sugerindo a representação frontal de uma mulher ou de um homem suspensos. À medida que esse objeto de natureza incerta se torna próximo, o olho gradualmente percebe que o suporte da pintura é feito da junção de muitas folhas de papel escritas e já um pouco gastas pela ação do tempo. A figura pintada perde interesse momentâneo, e o que o olho busca é o reconhecimento do que está ali exposto de modo frágil e parcialmente encoberto por camadas ralas de tinta escura. A inspeção paciente e próxima do trabalho revela tratar-se de fragmentos de cartas e notas feitas por pessoas há muito apartadas dos lugares de afeto que as situavam no mundo; referências esparsas, mas precisas, sugerem que foram escritas por presos e desaparecidos políticos do regime militar brasileiro, ou a eles dirigidas por parentes, companheiros e amigos. São papéis impregnados de sensações de ausência e de perda, de frustração e de raiva, revelando o desconcerto diante de uma situação que se desprende aos poucos de toda razão de origem e se torna apenas um sentimento vago de estranhamento e exílio. A percepção da falta do outro nesses textos é absoluta, pois a perda sofrida é de duração incerta, provisória a todo o instante: pode se estender por uma vida inteira ou ser reparada em pouco tempo.

 

O incômodo insistente de não poder ler o que a pintura oculta força, entretanto, a um novo afastamento dessa superfície escrita e à reconsideração da imagem pintada. Por não possuir contornos claros, a figura parece por vezes ter origem nos móveis ou neles se diluir em partes, sugerindo sobras ou sombras de um corpo qualquer, rastros do que se perdeu e já não se recupera. Na parte de trás das torres, uma outra imagem – ainda mais tenuamente pintada que a primeira – reproduz a estrutura compositiva e reforça os sentidos enunciados na face anterior do objeto. São figuras que evocam não cada um dos corpos dos quais se fala nos textos – todos com nome, forma e cheiro próprios para serem lembrados –, mas a existência de um corpo coletivo e anônimo que resiste, a despeito de sua aparência imprecisa e diáfana, ao esgarçamento gradual da memória comum sobre eventos e fatos. O olho busca ademais, sem sucesso, adivinhar a distância com que a tensão entre palavras e imagens se avizinha da ruptura, o que potencializaria a visualização do trabalho e a aproximação entre a dor íntima e o caso público.

 

Tendo como centro as torres de escrivaninhas, a sala sombria e ampla expande-se e acolhe outras construções análogas. Em uma delas, uma cadeira posta de cabeça para baixo repousa sobre uma caixa delgada e longa presa horizontalmente à parede no alto; da parte central dessa caixa, pendem, até muito próximo do chão, várias outras folhas escritas juntadas e parcialmente cobertas por pinturas antropomórficas. Uma vez mais, contudo, é incerto o lugar onde acabam as marcas escorridas de corpos e começam os vernizes e óleos que tornam a madeira escura, fazendo com que a representação da cabeça humana se confunda, nos limites imprecisos das manchas, com a continuação pintada da cadeira que encima a peça em cruz. De uma torre composta por gaveteiros idênticos e de uma escrivaninha – cortada e presa também ao alto com duas cadeiras em cima –, descem mais textos (parcialmente bloqueados com tinta) que se relacionam de modo mimético com os móveis, fazendo de tais construções quase pinturas. Nessa arquitetura tensa, feita de escritos e móveis, há ainda referências – recolhidas dos relatos de presos políticos e processadas formalmente por José Rufino – aos ambientes e equipamentos de depoimento e tortura dos órgãos repressivos mantidos pelo regime de exceção que por duas décadas vigeu no Brasil. A descrição lembrada dos cômodos, mobiliário e celas de instituições que foram passagem para o desaparecimento de muitos se confunde, portanto, nessas construções, com a criação de um lugar simbólico que rememora esses corpos e lhes dá o tipo possível de permanência. Articulando esses objetos híbridos, uma teia larga, feita de fios e carimbos, corre sobre todas as paredes do espaço que contém Plasmatio, adensando o ambiente criado e enredando quem lá ingresse na narrativa fragmentada, claustrofóbica e precisa que o artista formula.

 

Embora expanda e detalhe o território inventado desde outros trabalhos, é em Plasmatio, contudo, que José Rufino melhor aproxima tempos distintos de vida e confunde espaços de ação individual e âmbitos de convívio público. Valendo-se de procedimento construtivo singular, insere documentos que atestam perdas privadas nos fluxos de memória coletiva e os transforma em instrumentos contra o poder difuso e amplo de esquecimento que as sociedades instituem. O próprio processo de aquisição desses papéis estabelece, além disso, um circuito novo por onde fluem lembranças e se combate o esvaecimento de fatos: ancorado na negociação vagarosa e tensa, necessária ao convencimento dos que detinham os textos para que os cedessem ao artista – a despeito de ele mesmo ser filho de preso político –, esse processo ativou uma rede de contatos entre pessoas que há muito não se falavam ou que, embora sem se conhecerem antes, partilhavam recordações de experiências vividas similares. Os momentos em que esses registros de perdas foram feitos são, desse modo, alongados até o presente, e seus conteúdos passam a habitar os limites incertos que simultaneamente aproximam e apartam lembranças pessoais e a história do país.4

 

Essa impregnação viscosa da esfera pública pela memória do indivíduo é também tecida durante o próprio processo de construção das imagens que José Rufino cria sobre as folhas escritas, mesmo que, para isso, bloqueie com tinta a possibilidade da enunciação completa daquelas lembranças pela palavra. Tomando as superfícies feitas da junção dos textos, o artista pinta, sobre uma de suas metades somente, formas que lembram vestígios ou marcas de corpos ausentes. Com os papéis manchados ainda úmidos, dobra-os e espalha, com pressão contida, o pigmento ali depositado sobre as partes secas do suporte que usa. É das simetrias assim impressas e entranhadas nas fibras de documentos que guardam registros íntimos que surgem as figuras descarnadas e sem rosto que se afirmam vezes seguidas no seu trabalho. Embora as folhas escritas e as imagens que em parte as encobrem se atritem no plano simbólico do que há a ser representado, é sua proximidade física (sobreposição, de fato) que as torna índices de um sentimento de perda que transcende qualquer individuação de sentidos.

 

Por serem imprecisas na descrição de espaços, as manchas simétricas pintadas estimulam o olho a desvendar o que elas efetivamente segredam, inserindo o trabalho de José Rufino em uma genealogia conceitual da qual faz parte a obra do psiquiatra suíço Hermann Rorschach (1884-1922): tal como nas pranchas psicanalíticas usadas para o estímulo de projeções de personalidade, as formas pintadas de Plasmatio ativam, em quem as vê, memórias, dúvidas e interpretações particulares sobre acontecimentos passados. Consolidam, ademais, uma operação cognitiva fundada na construção/leitura de imagens simétricas, iniciada em desenhos e pinturas feitos pelo artista sobre documentos que pertenceram a seu avô paterno (Cartas de Areia) e, posteriormente, sobre os documentos que integraram as instalações Laceratio e Murmuratio, sugerindo uma estratégia longa e clara de edificação de um método. Exibindo corpos em desaparição ou já não tão bem lembrados, as manchas criadas por José Rufino sobre as folhas escritas ecoam ainda, na aparência e na intenção expressa, as gravuras de caráter espírita feitas pelo médico alemão Justinus Kerner (1786-1862), as quais buscavam o registro de formas humanas que, à época de sua feitura, não existiam mais.5 Há, por último, nessa relação de cumplicidades na construção de marcas, o antecedente distante do sudário de Cristo, rastro ralo, mas firme, de um corpo único que o artista busca emular na rememoração conjunta que faz de corpos ausentes, sejam eles de funcionários públicos anônimos ou de presos e desaparecidos políticos.

 

É dicótoma, portanto, a maneira como, em Plasmatio, o artista realiza a operação – recorrente em sua trajetória – de deslocar tempos e sentidos. Se recupera lembranças há muito afastadas do embate com o mundo, encobre-as, em parte ao menos, com as marcas de pigmento escuro; se desvela significados não partilha- dos por muitos, no mesmo instante os esconde ou muda. Inscrito nessa indecisão aparente, há o desejo de construir situações que reclamem, de modo inequívoco, o que é recalcado, esquecido ou pouco levado em conta pela historiografia culta: a existência de um sentimento de saudade que ultrapassa a esfera do indivíduo e que resume um estado de reconhecimento de perdas coletivo. Expondo testemunhos por anos condenados à invisibilidade social (por recato ou medo de quem os formulou um dia), José Rufino não se detém apenas na articulação original de textos antes indisponíveis à consulta pública; faz da própria atuação sobre a materialidade frágil desses escritos elemento indispensável para ativar, no âmbito do enunciado artístico, o sentimento comunal de ausência que embutem. E é o que de coincidente há em todos esses vestígios pessoais de perdas que justifica e permite a intervenção sobre eles, fazendo da saudade um sentimento que une muitos e que pode, ao menos certas vezes, definir uma comunidade inteira.6 Instaurando o desconforto do luto inconcluso e organizando o espaço expositivo de modo partido e tenso, Plasmatio configura-se não como monumento ou memorial – agentes de esquecimento –, mas como ruínas incômodas por onde circulam trauma e silêncio e reverbera o fato público.

 

Sentimento semelhante de travessia incerta no tempo impõe-se no trabalho Memento mori (2002), que, embora operando na esfera da memória privada, cuida, igualmente, de fazer o registro do que é comumente destinado ao descarte. Chamam logo a atenção, no espaço em que se instala o trabalho, as muitas molduras – escuras e antigas – penduradas nas paredes por cordões e pregos. Impondo a sua individualidade em meio ao conjunto denso que formam, cada moldura é evocação provável dos retratos de parentes mortos que ornavam as salas antigas das casas, sempre arrumadas e vedadas à vida comum das pessoas que lá residiam; salas, por exemplo, como as da casa grande do engenho de seu avô paterno. Colocadas em alturas diversas, as molduras trazem, no lugar das fotografias que um dia portaram, imagens simétricas e diáfanas, monotipias feitas sobre papéis já amarelados e velhos, semelhantes às que já fizera em outros trabalhos.7 Sem exibir a nitidez usual dos retratos, essas figuras que José Rufino faz lembram traços humanos em processo de decomposição avançado, rastros de corpos que aos poucos se esvaem. A partir do centro dos papéis pintados, as imagens parecem estar esgarçando-se e abrindo, nas figuras representadas, passagens, túneis ou portas para um lugar ignorado. Em vez de sala comum de retratos, o espaço expositivo assinala e grava a desaparição, do campo da memória, daquilo que já não possui o consolo visível da matéria.

 

Posta em uma das extremidades da sala, uma cama estreita – antiga e escura como as molduras que a cercam – tem seu lastro coberto por uma outra monotipia, a qual se confunde, nas formas imprecisas de que é feita, com os vernizes que recobrem o móvel. Ao contrário, porém, das imagens penduradas nas paredes em volta, a figura que repousa na cama – lugar de nascimento e também de morte – mantém a escala humana e traços ainda claramente antropomórficos. A cama está presa à parede, ademais, por um pendurador semelhante àqueles que fixam as molduras dos retratos, como se antecipando o seu destino certo. Já recolhidas à calma de um tempo que aparentemente não flui mais, as imagens presas nas molduras parecem prestar testemunho sobre o que se processa na cama, instante último de trânsito para o que não se sabe. O trabalho de José Rufino congela, portanto, o que é passagem; faz o registro simbólico do momento tênue que separa vida e morte. Ancorado em uma construção solene e estável, o artista afirma, paradoxalmente, a natureza transiente da existência carnal.

Já em trabalho de direção de arte que fez para o filme de curta-metragem Transubstancial (2003, dirigido por Torquato Joel), José Rufino imprime imagens antropomórficas em desmanche diretamente sobre o corpo despido de um homem, filmado como se flutuasse em um espaço vazio sem localização precisa nem data de ocorrência certa. Aqui, a sobreposição da pele humana e da representação de seu suposto decaimento final leva ao extremo, no plano simbólico, a dissolução das diferenças entre tempos distintos em que se ampara a sua obra. E é justo dessa transitividade temporal que fala, por fim, Sudoratio (1997/2003). Nesse trabalho, duas dezenas de caixas antigas e de tamanhos variados são alinhadas a partir de uma mesma parede, sugerindo estranha procissão de utensílios feitos para o transporte de coisas  diversas.  De  cada uma delas parece escapar, por pequenas frestas, uma substância branca que, posta ao escrutínio somente dos olhos, não deixa que se apreenda seu peso ou densidade. Quase como um resumo da obra de José Rufino, esses volumes, de formas arredondadas que lembram imensas gotas, são índices de tudo aquilo que, gerado ou guardado há muito, ainda alcança, com vida, o tempo impreciso que se chama de agora.

 

 

1 De fato, o nome de batismo do avô do artista era José de Almeida. Adolescente, contudo, foi-lhe dada a alcunha de José de Rufino (referência a Rufino Augusto de Almeida, seu pai), modo de distingui-lo do primo José Américo de Almeida. É somente já adulto que o nome José Rufino é adotado oficialmente pelo futuro proprietário do engenho Vaca Brava. Dessa forma, o artista José Rufino fez a apropriação não do nome de registro de seu avô, mas do nome que este adotara para si quando jovem e definira como aquele que, daí em diante, carregaria como próprio. ALMEIDA, Antonio Augusto (Org.); ALMEIDA, Alice. José Rufino. Areia Paraíba. Mamanguape: Editora Davina, 1995.

 

2 A capacidade de universalizar e atualizar os sentidos de objetos fortemente imbuídos de uma história privada e passada está também presente nas obras de vários outros artistas contemporâneos de José Rufino, os quais, de modos os mais distintos, igualmente buscam reter e exibir as marcas impressas pelo tempo. Um exemplo inequívoco é a obra da artista inglesa Rachel Whiteread (1963), que, por meio da moldagem de objetos e estruturas diversas – um interruptor de luz, os contornos internos de toda uma casa, uma banheira, um armário ou uma escada –, constrói esculturas (em gesso, resina ou borracha) que registram os detalhes que neles existem e revelam, assim, os rastros (memória) das histórias que contêm. GALLAGHER, Ann. Introdução. In: Rachel Whiteread. [Catálogo de exposição]. Rio de Janeiro: Artviva, 2003.

 

3 No catálogo publicado por ocasião da montagem de Laceratio (II Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, 1999), há um texto ficcional de José Rufino que busca descrever o ambiente modorrento e claustrofóbico onde os funcionários que manusearam originalmente os papéis usados na instalação supostamente trabalhavam. Esse interesse pela informação que está à margem dos relatos oficiais da história (esteja ela em bilhetes e cartas enviadas a seu avô ou em documentos banais de escritório) tem paralelo claro na obra do artista francês Christian Boltanski (1944), que também processa e preserva, em seus trabalhos, a “pequena memória” de pessoas comuns, estejam elas mortas (vítimas do Holocausto ou cidadãos suíços que faleceram em determinado período) ou vivas (trabalhadores desempregados do norte da Inglaterra ou uma residente do interior da França). Retendo e processando imagens fotográficas dessas pessoas ou objetos (papéis, vestimentas, móveis) com os quais conviveram, ambos os artistas impedem que desapareçam os vestígios que lhes conferiam individualidade. TAMAR Garb in conversation with Christian Boltanski. In: SEMIN, Didier; GARB, Tamar; KUSPIT, Donald. Christian Boltanski. Londres: Phaidon Press, 1997.

 

4 O estabelecimento de uma relação de cumplicidade entre o artista e pessoas detentoras de memórias e registros materiais do período a que Plasmatio se refere aproxima essa instalação à obra da artista colombiana Doris Salcedo (1958), a qual esteia seu processo criativo na instauração de laços solidários entre ela e parentes de vítimas dos conflitos armados que há tempo afligem a Colômbia e, também, na utilização, em seus trabalhos, de objetos banais que lhes pertenciam. Tal como José Rufino faz, Doris Salcedo cuida de construir situações poéticas (esculturas e instalações) em que sutilmente se inscrevem e se revelam um tempo e um lugar ausentes da memória pública, e dos quais sua obra dá testemunho. HUYSSEN, Andreas. Unland: the orphan’s tunic. In: PRINCENTHAL, Nancy; BASUALDO, Carlos; HUYSSEN, Andreas. Doris Salcedo. Londres: Phaidon Press, 2000.

 

5 KERNER, Justinus. Kleksographien Von Justinus Kerner. Stuttgart: Deutiche Verlags-Huftalt, 1857.

 

6 LOURENÇO, Eduardo, A mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 

7 Além das instalações Laceratio, Murmuratio e Plasmatio, e de desenhos da série Cartas de Areia, essas imagens antropomórficas estão presentes em várias outras séries de desenhos, algumas feitas sobre papel branco e outras realizadas sobre documentos já portadores de traços evidentes da passagem do tempo, tais como notas fiscais ou fichas antigas do sistema previdenciário. Elas também remetem, por fim, ao trabalho do artista austríaco Arnulf Rainer (1929), cujos desenhos e pinturas igualmente fazem a afirmação rala do corpo humano sobre um suporte que pode ser um outro trabalho de sua autoria ou mesmo de algum outro artista (algumas vezes, reproduções são usadas; em outras, os originais).

A PRÁTICA DO CONJUNTOS

A PRÁTICA DOS CONJUNTOS

Lucia Koch

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Matemática moderna

 

O início da trajetória artística de Lucia Koch pode ser situado na segunda metade da década de 1980, época em que a percepção de um mundo que muda muito se torna a fonte de um outro que a artista faz a seu modo. Desde então, foram várias as inflexões de foco, algumas mais acentuadas que outras. Visto em retrospecto, contudo, seu percurso apresenta singular coerência, posto que questões desenvolvidas em um momento dado parecem ser sempre transportadas para adiante e com isso ganhar significado novo. Embora seja arriscado traçar os exatos motivos que expliquem essa aderência – involuntária, talvez – a um repertório de produção contido, é razoável supor que esteja relacionada ao seu envolvimento próximo e cedo, por meio do convívio com a mãe e pesquisadora Celeste, com o Movimento da Matemática Moderna. Desse movimento, cujos fundamentos foram divulgados e adotados em muitas escolas brasileiras no final da década de 1960 e início da seguinte, Lucia Koch parece ter incorporado, em sua produção, a disposição para investigar, com autonomia criativa, as diversas formas de resolução de um problema lógico que um conjunto de variáveis indica. Se isto é certo, uma das principais marcas de sua obra refere-se, assim, menos à exterioridade dos trabalhos que cria – por mais sedutora que esta seja – e mais ao método especulativo de pesquisa em que aqueles estão fundados. Não por um acaso, a relação demorada com os muitos materiais e imagens que agrupa no ateliê e em arquivos é fundamental para o encontro de novas possibilidades expressivas, constituindo-se quase em uma ética de sua prática.

 

Arte ambientada

 

Entre as questões que permeiam e distinguem a trajetória da artista, destaca-se a preocupação crescente com os usos passados e correntes dos espaços arquitetônicos onde desenvolve e abriga seus trabalhos. Interesse que faz com que sejam esses usos que gradualmente definam o tipo de intervenção a ser realizada, deixando em plano secundário, já a partir de 1990, a construção dos objetos autônomos de que até então quase somente se ocupava e com os quais ressignificava os lugares onde expunha sua obra. A partir desse momento, busca principalmente modificar – às vezes com ênfase, outras com discrição – os ambientes ex- positivos que lhe são destinados, ativando-os como lugares que existiam antes apenas como devires possíveis entre outros mais. Elemento central à percepção física e afetiva de espaços, a luz foi, a essa mesma época, eleita por Lucia Koch como um dos recursos nucleares de sua obra. Em 1992, de fato, fez os primeiros trabalhos com lâmpadas, quer para acentuar aspectos já contidos na iluminação habitual de lugares, quer para adicionar, a esses locais, sentidos ainda insuspeitados.1

 

A investigação, a partir do emprego de fontes ou de campos luminosos, dos limites cognitivos que a arquitetura de uma casa ou de um prédio impõe a quem os visita ou neles mora foi exercitada, entre 1992 e 1996, por meio de sua participação no Arte Construtora, projeto nômade que reunia artistas para exposições em espaços de grande densidade simbólica. Fosse em Porto Alegre, Rio de Janeiro ou São Paulo, cada integrante do grupo desenvolvia trabalhos a partir do convívio demorado com o local escolhido, criando uma “arte ambientada”.2  Assim foi, por exemplo, com a atuação coletiva no Solar Grandjean de Montigny, no Rio de Janeiro, em 1994, ocasião em que Lucia Koch trocou as lâmpadas incandescentes comuns que iluminavam as varandas do térreo e do primeiro andar situadas na parte frontal da casa por lâmpadas de secagem infravermelha (Conforto), alterando a percepção visual que usualmente se tinha do imóvel à noite e também as condições de temperatura e umidade habitualmente observadas naqueles aposentos externos. Já ao longo das paredes dos fundos e dos lados da casa, a artista distribuiu e afixou pequenos espelhos retangulares que refletiam qualquer fonte de luz existente no exterior do imóvel (Casa com drop-out) e que, vistos à distância, assemelhavam-se a linhas luminosas, modificando a relação sensorial antes estabelecida com aquela construção. A experiência com o Arte Construtora foi crucial para Lucia Koch, ademais, por promover a interação e a discussão de projetos entre seus participantes, sugerindo, portanto, a ideia de criação simultaneamente individual e partilhada. Em anos seguintes, vários de seus trabalhos reafirmaram ou subverteram as características de um determinado lugar, levando em consideração a dimensão pública das modificações que promovia no espaço.

 

Filtros

 

Desde o final da década de 1990, Lucia Koch reduziu o emprego de iluminação artificial em suas intervenções, valendo-se mais de filtros para correção de cor ou de delgadas chapas coloridas de acrílico para ativar a luz existente nos ambientes onde instala seus trabalhos. Embora os primeiros sejam opacos à visão e as segundas sejam translúcidas, quando colocados em vãos quais- quer por onde a claridade atravesse ambos fazem com que a luz exterior preencha espaços internos de cores variadas, interferindo na percepção estática que usualmente se tem de um lugar. Tal operação é afirmada, de modo evidente, em O gabinete (1999), trabalho realizado para a II Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. Instalando filtros de correção de cor nas duas janelas em forma- to de grade que deixavam entrar luz natural em antigo galpão de madeira, a artista tingiu o espaço vazio com faixas multicolori- das. As mudanças constantes na posição relativa do sol, todavia, faziam com que essas faixas escorressem através do vão livre do galpão ao longo de um dia e gradualmente alterassem, além disso, sua definição e intensidade cromáticas, concedendo àquelas interferências ambientais um caráter efêmero e cíclico, posto que se repetiam, com pequenas variações, de um a outro dia. O fato de que essa intervenção tão claramente aconteça no tempo – não por acaso ensejando o seu melhor registro, para quem não a viu na ocasião, em forma de vídeo – é aspecto fundamental na obra de Lucia Koch, o qual é afirmado de diversas maneiras em trabalhos subsequentes.

 

Em outras ocasiões, não é só a ideia de um espaço interno que é modificada por meio da luz exterior filtrada por cores; também paisagens de fora, quando vistas de dentro desses ambientes, parecem ser prolongação daqueles campos cromáticos que a artista ativa. Tal resultado duplo é patente em intervenção feita nos vários aposentos da Galeria Casa Triângulo voltados para a rua (Pré-escola, 2002). Por serem translúcidas, as placas de acrílico coloridas – cada uma de uma cor uniforme – afixadas em cada uma das janelas da galeria não somente permitiam a imersão do visitante em ambientes monocromáticos, mas facultavam a ele, ao mesmo tempo, ver o exterior usualmente cinza e homogêneo do centro da cidade de São Paulo envolto em tonalidades brilhantes e distintas, como se as diferenças patentes entre dentro e fora – físicas ou simbólicas – fossem apagadas pela luz.

 

É importante frisar  que  tais  interferências,  quando  feitas em locais de uso comum ou eventualmente partilhados por um grupo, necessariamente requerem  a  colaboração  daqueles  que por elas são afetados, havendo sempre a possibilidade de que, por isso, interesses variados tenham  que  ser  eventualmente  postos em confronto. Foi assim, entre outros, com o trabalho realizado em 2001 em uma claraboia que encima o hall de entrada de várias unidades habitacionais na cidade do Porto, em Portugal, ou com sua intervenção, como convidada, na 3ª Bienal de Göteborg (Light corrections, 2005), quando instalou filtros de correção de cor em todas as entradas de luz natural do prédio que abrigava a mostra, incluindo as salas onde estavam os trabalhos dos demais artistas. Menos do que estabelecer situações de embate, entretanto, interessa a Lucia Koch nesses trabalhos, além da investigação sensível do espaço, a exploração da possibilidade de contato e contágio entre sujeitos e vozes diversos, sem prejuízo à preservação do que possam possuir de singular e que não se deixa imiscuir com o que está próximo.

 

Trocas e laços

 

Embora sejam vários os trabalhos da artista em que o interesse em fazer confluir intervenção espacial e conversa se faz presente, há dois deles em que tal aspecto é especialmente evidenciado. O primeiro foi realizado no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife, em 2006. Ocupando, desde 1997, prédio construído em fins do século XIX, o museu possui escadaria que, ao cabo de três andares, é coberta por uma claraboia emoldurada por motivos decorativos pintados, onde se destaca a insígnia do clube social que, muitas décadas antes, teve ali a sua sede. Sobre essa abertura, contudo, já não incide luz solar, resultado de ampliações e modificações físicas há muito feitas no edifício. Longe da vista do público e por cima dessa claraboia, Lucia Koch instalou então filtros de correção de cor e lâmpadas incandescentes que acendem e apagam em obediência a uma série extensa de programações eletrônicas que pré-definiu. Intitulado Clube Internacional do Recife, esse trabalho resgata, pela memória de uma pista de dança que as luzes piscando ativam, a lembrança de usos passados do prédio. Embora esta intervenção tenha sido incorporada em definitivo ao acervo do museu, na noite de sua inauguração esse resgate foi transformado, além disso, em ato efêmero e partilhado com muitos. Com a participação de artistas por ela convidados, Lucia Koch preencheu esse espaço de acesso e passagem do prédio com música alta e imagens projetadas, transformando-o em lugar de celebração e festa. Lugar onde coube o hoje e o ontem e também um museu e um clube, e onde os visitantes tiveram que inventar um modo híbrido de se comportar, entre a regra e a entrega.3

 

Um trabalho em que a artista igualmente aproxima e comenta o que seria próprio de um espaço e o que seria próprio das formas como tal espaço é usado é composto por um conjunto de três intervenções realizadas na Casa Encendida, em Madri, e intitulado Casa acesa (2008). Mas se, em Clube Internacional do Recife, Lucia Koch buscou sobrepor em camadas o presente e o passado de um lugar, nesse trabalhou com sua dinâmica territorial, atuando direta- mente sobre um espaço de convívio e de aprendizagem, além de arena de apresentações cênicas e musicais. Considerando o fato de ser esta uma instituição que traz, já inscrita no nome, a ideia da luminescência, valeu-se, para a primeira das intervenções que fez ali – a maior e mais discreta delas –, de filtros de correção de cor postos sobre a claraboia que encima o seu pátio interno e central, de forma a ativar e mudar a luz natural que a atravessa.

 

Como resultado, piso e paredes do espaço foram preenchidos de cores diversas com intensidades que mudavam um pouco a cada instante, a depender da posição relativa do sol e das condições atmosféricas. Embora o trabalho remetesse, em sua mecânica construtiva, a O gabinete, aqui não somente as cores eram mais frias do que as usadas anos antes em Porto Alegre, mas também a luz natural incidente era a do inverno europeu, e não a do verão brasileiro, rebaixando o efeito visual do trabalho e incorporando-o, com sutileza, a um ambiente que, ao contrário de um galpão vazio e inativo, era já ocupado por muita gente e atividade. A segunda intervenção feita na Casa Encendida constituiu-se de caixas de luz, autoportantes e em escala humana, cobertas por gradientes de cor impressos em superfícies lisas. Colocadas em posições variadas nos corredores que circundam o pátio e que dão acesso às oficinas, biblioteca e salas administrativas do lugar, as caixas terminavam por reorganizar a compreensão visual daqueles espaços, estabelecendo, uma vez mais, um sentido público para o trabalho da artista. Por fim, Lucia Koch fez uma intervenção durante performance musical do grupo +2, formado por Kassin, Domenico e Moreno, ocorrida no mesmo pátio sobre o qual havia instalado filtros para correção de cor, e para onde confluíram, modificadas naquela noite, suas duas outras intervenções.4 Com o auxílio de lâmpadas postas acima da claraboia e de instrumentos de programação que a permitiam controlavar o seu aciona- mento desde o piso do espaço, relacionou sons produzidos no palco com luzes e cores que vinham do alto – ora acentuando o pulso da música, ora estabelecendo diálogos entre o ouvir e o ver –, sugerindo o desmanche das fronteiras entre aquilo que sentidos distintos podem reter. Complementando a interação sinestésica pretendida, colocou no fundo do palco, próximas a outros objetos feitos especialmente para a ocasião, as mesmas caixas de luz que habitaram os corredores da instituição no restante da mostra, como se fossem testemunhos portáteis de uma obra que busca tecer laços com o outro e com o entorno.5

 

Desordem de escalas

 

Embora os trabalhos que cabem no escopo amplo de uma “arte ambientada” já contenham um conjunto coeso e potente de proposições estéticas, eles não esgotam o repertório de dispositivos poéticos que Lucia Koch desenvolveu ao longo da década de 2000, e que continuamente se articula de forma inesperada em sua obra. Dispositivos que incorporam ainda outros meios e materiais e que lhe permitem dar continuidade à reinvenção crítica, através do emprego mediado da luz, dos modos convencionais de se entender o espaço. Entre esses outros aparatos, destacam-se as fotografias, iniciadas em 2001 e reunidas sob o título genérico Fundos, que a artista fez de interiores de caixas de papelão em que alimentos (leite, bolacha, suco, espaguete) são comercializados, as quais são depois impressas em dimensões agigantadas. Quando expostos em salas de museu ou galeria, os ambientes internos e quase nunca reparados de embalagens feitas para o manuseio apressado da mão se transmutam, por meio de suas imagens ampliadas, em paisagens estranhas e incontornáveis, com frequência da altura de uma parede inteira. Ao desordenar a esperada hierarquia escalar entre aqueles objetos e a extensão das superfícies que suas imagens ocupam nessa série, Lucia Koch desassocia, momentaneamente, as fotografias de seus referentes imediatos, assemelhando-as a perspectivas de lugares inventados. Mas além de pôr à prova maneiras usuais de se relacionar com o espaço, essas fotografias também dependem de uma fonte luminosa externa que ative os interiores escuros das caixas, tal como as intervenções mencionadas acima (O gabinete, Pré-escola, Light corrections, Clube Internacional do Recife e Casa acesa) dependem da luz para adquirirem significados; significados que não podem ser plenamente expressos por meios outros, portanto, que não os que são próprios dos próprios trabalhos. Aspecto mais importante dessa série fotográfica para o desenvolvimento da obra da artista, entretanto, é o fato de que, em algumas das caixas fotografadas, a claridade requerida entra por recortes e furos que mimetizam cobogós, treliças ou outros elementos construídos que filtram a luz de fora e projetam sombras em ambientes internos.

 

Recortes e furos

 

A partir da série Fundos, o procedimento de vazar superfícies contínuas é adotado, em várias ocasiões, nas chapas de acrílico colorido que Lucia Koch já usava em suas intervenções, tornando os efeitos da luminosidade filtrada visualmente mais complexos e ambíguos. Mais ainda, passa  a  utilizar  tais  padrões  recortados também em placas de metal, madeira ou mesmo em peças de tecido, ampliando a gama de materiais usados em seu trabalho. Em uma das primeiras vezes em que a artista fez uso dessa operação, empregou elementos arquitetônicos  retirados  de  fontes diversas como modelos para recortar e perfurar placas de acrílico e metal e com elas parcialmente bloquear as janelas de um bar em Istambul voltadas para o pátio interno de um prédio. Esse trabalho foi parte do projeto desenvolvido para a oitava edição da Bienal de artes daquela cidade (Turkish delight, 2003), e faz evidente referência ao fato de  muitas  das  construções  otomanas em Istambul possuírem, em sua origem, muxarabis em seus balcões, portas e janelas. As chapas de acrílico, contudo, eram coloridas, fazendo com que a luz filtrada que inundava o espaço interno do bar fosse impregnada de laranjas e azuis não  existentes no cotidiano ordinário daquele estabelecimento. E as de metal, por sua materialidade polida, refletiam de volta ao pátio a luz que sobre elas incidia, distinguindo-se, por consequência, da capacidade de absorção de luminosidade que os tradicionais muxarabis de madeira possuem. Em outro trabalho feito como parte do mesmo projeto, afixou filtros de correção de cor nas entradas de luz situadas nas cúpulas de uma casa de banho público da cidade (hararets): lavanda na área reservada às mulheres e âmbar na área destinada aos homens. De maneiras variadas, Lucia Koch promoveu, aqui como em outros trabalhos, uma alteração nas formas de apreensão sensorial de um espaço de convívio.

 

Operação semelhante foi feita no Observatório Cultural Torre Malakoff, no Recife (Matemática espontânea, 2006), quando nas aberturas de várias das janelas de um prédio erguido em meados do século XIX afixou placas de acrílico coloridas que reproduziam, em recortes precisos, padrões encontrados em cobogós feitos no século seguinte. Algumas das placas faziam com que os ambientes internos fossem, em determinadas horas do dia, ocupados de vermelhos ou azuis; sob a luz do sol forte, projetavam ainda, nos chãos ou paredes das salas, os padrões nelas recortados, lembrança de estratégias construtivas antes comuns na cidade e agora quase nunca usadas. Em outros momentos do dia, a incidência oblíqua do sol invertia o resultado ótico do trabalho, permitindo que o cenário exterior fosse visto através das cores das placas e dos padrões nelas impressos por meio de furos e cortes. Por fim, o espaço interior do prédio abrigava paredes paralelas construídas somente de cobogós e entre as quais se podia passar como se fossem corredores internos, rebaixando o modo original de relação que se tem com tais elementos – feitos para filtrar luz e controlar vento forte vindo de fora – e chamando a atenção para as suas padronagens e formas, quase como se fossem apenas mostruário de algo perto do fim, dado seu anacronismo com a arquitetura dominante no país, que cerra passagens entre o dentro e o externo, entre o que é casa e o que é rua.

 

O tempo do espaço

 

Quer por meio do uso de filtros de cor, quer por meio da estratégia de abrir desenhos, por furo e corte, em placas delgadas de materiais diversos, Lucia Koch reforçou, nessas duas intervenções recém-mencionadas, questões, procedimentos e resultados gradualmente assentados em sua obra: reorganizou a compreensão visual de espaços, fez uso da luz para atingir seu intento e estabeleceu um sentido público para os trabalhos, seja pela negociação envolvida em sua feitura, seja pelo desconcertante efeito que os resultados causaram. Esse flexível acervo expressivo foi novamente posto em uso na intervenção que a artista fez na Fundação Iberê Camargo, no contexto da mostra coletiva Lugares Desdobrados (2008).6 Em parte, valeu-se para tanto de estratégias já empregadas em ocasiões passadas, como ao cobrir, com filtros de correção de cor, as aberturas que existem no alto do prédio projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza. Interferiu, desse modo, na percepção dos ambientes em que as obras de outros criadores estavam expostas e engendrou, como havia feito em situações prévias, a necessidade de pactuar interesses e expectativas dos abrigados naqueles espaços. O que fez nas entradas de luz que permitem ao  visitante  lançar  o olhar sobre a paisagem que a cidade de Porto Alegre oferece é, porém, de natureza distinta, ampliando seu repertório de aparatos e proposições. Em vez de somente recobrir os vidros claros com placas coloridas de acrílico lisas ou mesmo perfuradas com padrões de ornamento, recortou, nesses anteparos, imagens em escala real de modelos variados de janelas, antigos e novos. Por situarem-se nas rampas usadas para interligar os diferentes níveis do edifício e, portanto, sem a concorrência dos trabalhos que a instituição usualmente expõe em suas salas, tais aberturas já normalmente dirigem o olhar para o que está no exterior do prédio. Filtrado por cores diversas, entretanto, esse olhar não podia mais reconhecer, no que estava à frente, a ideia usual que se tem de uma cena enquadrada pelas formas abertas na parede pelo arquiteto. Sensação de estranhamento aumentada pela inserção de imagens de janelas sobre as superfícies envidraçadas das passagens de luz. Assim confundido, o visitante terminava por ter sua atenção voltada menos para a paisagem conhecida e mais para os dispositivos instalados pela artista e para o projeto do edifício. Dessa superposição de superfícies de vidro por onde entra luz natural e de superfícies coloridas com imagens de janelas recortadas, estabelecia-se, em particular, um confronto entre tempos distintos: entre o tempo recente da arquitetura do prédio e o tempo em que outras formas de pensar o espaço vivido eram dominantes; entre o tempo da experiência efêmera de visitar uma exposição e o tempo indefinido e prévio que os desenhos das janelas recordavam. Confronto que sugere uma temporalidade – pervasiva na obra de Lucia Koch – que não obedece a ritmos ou a direções únicas.

 

Esse tempo perturbador e complexo é evocado igualmente no vídeo Olinda Celeste (2006), realizado em parceria com o artista Gabriel Acevedo Velarde. Mas em vez de resultar da sobreposição de ideias diferentes de um espaço, no vídeo esse tempo se afirma por meio do percurso feito ao longo de um território irregular e mutante. Tal território tem origem nas fotografias que os dois fizeram de azulejos antigos encontrados nas paredes e muros de Olinda, com as quais formaram banco digital de imagens que serviu de base para a invenção de superfícies azulejadas que nunca existiram. Paredes onde os azulejos formam grupos de padrão decorativo idêntico ou onde estes são vez por outra interrompidos por azulejos que exibem outras estampas. O que se vê no início do trabalho, em todo caso, é o deslize à deriva da câmera sobre superfície homogênea de azulejos antigos, todos com mesma cor e mesmo desenho. Ao encontro e à passagem breve e súbita de padronagem nova, contudo, a câmera para, volta e não encontra mais o que somente um momento antes parecia estar lá, achando em seu lugar azulejos que apresentam ainda um terceiro padrão, que passa a ser seguido daí em diante. À medida que a câmera aumenta ou diminui a velocidade com que percorre o território virtual criado, situações semelhantes ou análogas se repetem, subvertendo a compreensão convencional que se tem da continuidade de um espaço recém-percorrido, e questionando, além disso, a confiança no poder da memória de reter o passado como se fosse conhecimento inequívoco, no qual não pudesse mais irromper o que não se sabe a origem.7

 

O léxico e a sintaxe

 

Em projeto realizado para a 27ª Bienal de São Paulo, Lucia Koch uma vez mais desacomodou as expectativas que balizam a experiência usual de estar em um espaço, tal como já havia feito outras vezes e de outros modos. Utilizando painéis de eucatex perfurado, fez das paredes que delimitam territórios opacos destinados a artistas em grandes mostras suporte do próprio trabalho. Em vez de ser abrigo de algo, sua Sala de exposição (2006) não continha nada que não fosse a luz filtrada por furos, quase toda vinda dos largos panos de vidro que ladeiam o pavilhão onde a Bienal regularmente se instala, projetado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. A depender da hora em que se visitava a exposição e das múltiplas posições de onde se podia experimentar o trabalho – de dentro ou de fora da sala, tendo ao fundo a obra de outro artista ou o verde das árvores que existem no exterior do prédio –, padrões geométricos eram feitos e desfeitos diante dos olhos, e relações variadas eram estabelecidas entre o ato de ver e aquilo que é visto, como se a intervenção de Lucia Koch lembrasse a todo o instante a natureza frágil e contingente das coisas. Raciocínio próximo foi empregado no trabalho Stand (2007), intervenção feita também no prédio onde ocorre a Bienal de São Paulo e comissionada pela feira SP-ARTE. Utilizando painéis construídos com chapas de metal perfuradas em sete padrões diferentes, a artista ergueu uma sala acopla- da ao pavilhão, como se fora apêndice de sua planta original. Tais painéis, porém, eram de fato portões automáticos feitos sob encomenda e programados para abrir e fechar em inter- valos curtos, o que os fazia deslizar e sobrepor-se uns sobre os outros ou, em alguns casos, dobrar-se sobre eles próprios. Como resultado desses movimentos, havia alteração constante da percepção que se tinha dos padrões que formavam a sala e que concediam singularidade a cada um dos painéis, além de provocar modificação contínua dos graus de obstrução ao atravessamento do trabalho pelo olhar.

A multiplicação de situações perceptivas que é possível obter por meio da aproximação de padrões vazados em anteparos de vento e luz foi ainda objeto de uma série de outros trabalhos realizados por Lucia Koch entre 2007 e 2009. Em alguns deles, como Multiply (2007) ou Praising shadows (2008), avizinhou padrões diversos cortados, respectivamente, em superfícies de tecido e de madeira, permitindo, além disso, que se movessem sobre trilhos e se sobrepusessem temporariamente, tal como ocorria em Stand, uns sobre os demais. Já em trabalhos como Conjunto A (2008), Conjunto K (2008), Conjunto eclético (2008) ou Casa de espelhos (2009), os muitos padrões recortados sobre os anteparos usados – placas de madeira, no primeiro caso, e de acrílico, nos demais – foram somente justapostos em blocos articulados que não se superpunham, fazendo o olhar deslizar entre eles sem encontrar resolução em uma imagem única e sem produzir conforto visual. A despeito de suas especificidades, contudo, o que todas essas intervenções igualmente fazem é contribuir para a afirmação, no imaginário de quem as vê, de um léxico de padrões decorativos articulados numa sintaxe visual original e fluida, a qual evoca, de alguma maneira, o que a artista aprendeu com a Matemática Moderna.

 

Léo, Alberto, Marco, Francisco, Glória, Tuti, Beto, Lucia…

 

Há na trajetória de Lucia Koch  um  trabalho  que  talvez  tenha que ser posto à parte. Não por estar em desacordo com todo o resto, mas justamente por empreender, de forma orgânica, a aproximação de tudo o que é central à sua obra, concedendo a dimensão exata de sua relevância. Trata-se de projeto que desenvolveu, em 2004 e 2005, com membros da comunidade de Jardim Miriam (bairro na zona sul de São Paulo), como parte das ações do Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC).8 A partir de oficinas de criação oferecidas a moradores do bairro, Lucia Koch formou, com a participação de vários deles, o “núcleo de luz ambiente” do JAMAC, promovendo experimentos com materiais diversos que afetam a circulação de luz e de ar, tais como filtros de cor e cobogós. Um desses experimentos foi realizado direta- mente na casa de duas participantes do núcleo, e outros dois nas de moradoras que, em visita à sede do JAMAC, solicitaram que suas casas também fossem, de algum modo, transformadas por aqueles dispositivos. Em função da vontade manifesta de operar mudanças ambientais semelhantes em suas residências, três outros moradores (Léo, Alberto e Glória) se dispuseram a realizar, com a artista e o auxílio de arquitetos por ela convidados, projetos mais abrangentes de intervenção física envolvendo modificações na percepção e no uso de seu espaço domiciliar. Por serem projetos que resultaram (e dependeram) do confronto e da interação entre, por um lado, os desejos e as necessidades dos moradores e, por outro, os interesses manifestos na própria obra anterior de Lucia Koch, as intervenções neles previstas foram sempre frutos de decisões acordadas.

 

Quando Léo e Alberto – dois jovens e ativos frequentadores do JAMAC desde o início de sua atuação no bairro – propuseram as suas casas como locais para ações do núcleo, tinham como principal objetivo expandi-las por meio da construção de novos cômodos para uso deles próprios, ativando, ao mesmo tempo, a sua comunicação com os espaços comuns que nelas já existiam. Deixaram ainda patente, porém, a preocupação em não permitir que tais mudanças implicassem a redução da circulação de luz e de ar dos ambientes das casas, como é frequente acontecer em ampliações improvisadas – conhecidas popularmente como “puxadinhos”. Em vez de fechar áreas antes abertas com paredes de alvenaria, buscou-se inventar, então, “espaços mais transparentes” (definição de Alberto), estruturados por tubos metálicos leves e modulares. Em função da vontade de mudança deles e das propostas esboçadas com os arquitetos Marco Donini e Francisco Zelesnikar, a artista propôs o uso – no lugar de portas, janelas e divisórias comuns – de chapas acrílicas coloridas como filtros e proteção da luz externa, e de chapas de metal perfurado para ventilar os variados espaços. Já para a casa de Glória – situada em uma depressão de terreno que bloqueia o acesso de luz natural a seu interior e que a faz ser pouco arejada –, Lucia Koch e os arquitetos Tuti Giorgi e Beto Salvi propuseram a abertura de novas passagens externas e internas à claridade e ao ar, uma vez mais por meio de filtros de cor e de elementos construtivos vazados. Entre as modificações propostas, incluiu-se a substituição de parte do telhado opaco por telhas translúcidas, tratando a coberta da casa – sua face mais visível para quem se aproxima dela – como se fora fachada, dada a relação de contiguidade que estabelece com o que está do lado de fora.

O fato de esses projetos de intervenção serem feitos especialmente para moradias do Jardim Miriam e de resultarem de negociações demoradas entre seus residentes, a artista e os arqui- tetos por ela convidados põe novamente em relevo, dessa vez de maneira inequívoca, uma característica central das intervenções de Lucia Koch: elas respondem não apenas à topologia dos lugares trabalhados, mas, igualmente, aos contextos sociais que os conformam. Nesse sentido, sua obra não somente ativa percepções distintas de espaços habitados, mas também cria espaços de troca simbólica por meio dos quais subjetividades são moldadas. Nem os desejos dos que habitam a comunidade onde ela intervém nem os que animam o seu projeto artístico são tomados, em princípio, como coesos e estáveis, estando sujeitos às modificações que a própria aproximação e o convívio entre diferentes geram. Inexiste, desse modo, qualquer semelhança entre os projetos propostos pela artista no âmbito do JAMAC e a tradição de arte pública que apenas oferece, à comunidade a que se reporta desde fora, um artefato já acabado.

 

Uma vez considerado o componente colaborativo desse trabalho de Lucia Koch, é preciso esclarecer, ademais, a especificidade da relação estabelecida com os moradores de Jardim Miriam. Se sua atuação não se pauta pela apropriação de soluções arquitetônicas vernaculares visando somente ampliar a sua agenda criativa, tampouco pretende que sirva apenas de veículo para a expressão supostamente autônoma de membros da comunidade. O que o seu trabalho propõe é a possibilidade da artista e de moradores (além de outros parceiros eventuais) refletirem criticamente sobre os papéis e as obrigações que são esperados deles nesse contato, (re)definindo agências e pactuando, ainda que informalmente, padrões de convivência. As discussões que antecedem e informam a elaboração dos projetos de intervenção nas casas são, assim, tão relevantes quanto a sua própria realização, sendo parte integral do trabalho.9

 

Não se deve deduzir da natureza “dialógica” desses projetos, entretanto, que Lucia Koch abdique, por isso, da responsabilidade de assumir sua autoria. Ao criar o “núcleo de luz ambiente” no JAMAC, a artista delimitou o campo de investigação e de intervenção proposto à comunidade, além de estabelecer um repertório de materiais e de procedimentos anteriormente testado em outros contextos e lugares. O fato de esse campo e esse repertório serem discutidos, questionados e eventualmente restringidos ou alargados em função do contato e do embate com os interlocutores locais não implica a desistência do que lhes é central. Fazê-lo seria renunciar ao que há de particular nesses projetos de intervenção e tomar o engajamento em relações comunitárias como um objetivo a ser por ele mesmo valorado. Nesse cenário, não haveria distinção entre o trabalho artístico e o de cunho social, ambos confundidos e justificados por argumentos éticos. Ao contrário, é da arriscada e tensa convivência entre o caráter refratário a significações precisas do primeiro e o caráter funcional do segundo que se nutrem os projetos desenvolvidos por Lucia Koch durante a sua participação no JAMAC.

 

Um outro importante aspecto contido nesse trabalho – já implícito em sua apontada ênfase em ações processuais – é a sua temporalidade incerta, a qual não se deixa apreender pela inspeção, não importa quão longa, das propostas de intervenção arquitetônica nas casas. Analisando cada um dos projetos, apenas se intui que há neles, de forma condensada, o testemunho de um tempo passado de formação recíproca de subjetividades por meio de um contato alongado. O fato de as intervenções propostas, uma vez realizadas, modificarem a percepção que os moradores das casas possuem daqueles espaços e dos ambientes à sua volta invoca também um tempo futuro e indeterminado cujo conteúdo é igualmente associado a esse trabalho: mesmo quando formalmente concluídas, as intervenções estendem-se no tempo ou mesmo não se completam. Em vez de se oferecerem de pronto ao observador, os projetos recuam e se lançam, portanto, para tempos vividos ou vindouros, os quais não cabem na duração que convencionalmente se aguarda de uma experiência estética.

 

A apresentação desse trabalho em galerias ou espaços institucionais implica, assim, discutir esses múltiplos aspectos e questionar, no limite, a possibilidade de exibi-lo integralmente sem afrontar o que lhe confere identidade. Por mudar a relação de pessoas com os espaços onde moram e, por extensão, com a comunidade onde vivem, esse trabalho rejeita o mero registro (fotográfico ou textual) como forma adequada ou satisfatória de ser apresentado. Exposta, essa documentação factual apenas transporia, de uma maneira necessariamente redutora, relações de convívio para códigos expositivos assentados. Ao interferir diretamente em questões relevantes para a comunidade de Jardim Miriam – e não somente tomá-las como tema de reflexão –, esse trabalho possui uma dimensão vivencial e política que não pode ser propriamente exibida, a não ser de modo indicial.

 

Afastada a possibilidade de apaziguar essas ambiguidades, a artista as explicita e as integra na forma de dar a conhecer o seu trabalho. Para tanto, apresenta três conjuntos de elementos diversos, cada um deles relacionado a um projeto de intervenção específico. Plantas arquitetônicas, desenhos, fotografias, protótipos de telhado e janela, maquetes, sons e textos permitem que o visitante da exposição apreenda a natureza do trabalho desenvolvido com membros da comunidade que habita o Jardim Miriam, sem que, contudo, com ele se confundam. O valor comercial estipulado para esses objetos é, todavia, exatamente o necessário para viabilizar a execução, nas casas dos moradores (Léo, Alberto e Glória), dos projetos a que se referem. Uma vez que as intervenções sejam realizadas, seus registros fotográficos são, ademais, incorporados aos objetos correspondentes, passando a pertencer, portanto, à galeria, ao colecionador ou à instituição que, por meio de sua compra, tenham financiado a execução do projeto. Dessa maneira, Lucia Koch aplaca a demanda do sistema de arte por um objeto para exposição e venda, criando, simultaneamente, mecanismos para custear as intervenções na comunidade de Jardim Miriam. Em vez de constituírem trabalhos independentes, objetos e intervenções são associados, pela artista, de modo orgânico e crítico, atando alguns dos muitos fios distintos de que a arte contemporânea é tecida.

 

1 Nesse período, Lucia Koch tem nos artistas norte-americanos Dan Flavin (1933-1996) e James Turrel (1943) referências importantes para o uso que faz de lâmpadas em seu trabalho, embora os resultados e intenções da obra de cada um deles claramente difiram entre si e também do então desenvolvido pela artista.

 

2 Integraram as ações do Arte Construtora, em diferentes momentos, os artistas Carlos Pasquetti, Elaine Tedesco, Elcio Rossini, Fernando Limberger, Iran do Espírito Santo, Jimmy Leroy, Lucia Koch, Luisa Meyer, Marepe, Marijane Ricacheneisky, Mima Lunardi, Nina Moraes, Renato Heuser e Rochelle Costi.

 

3 A música do evento ficou sob a responsabilidade do DJ Surpresinha, coletivo de atividade eventual e de formação variável. Nessa ocasião, assumiram a identidade do DJ Surpresinha a própria artista (nessa função chamada LJ), o artista Raul Mourão, o músico Flu e a crítica e curadora Luisa Duarte. Os vídeos projetados eram de autoria do artista Gabriel Acevedo, também parceiro de Lucia Koch em outros trabalhos.

 

4 Tanto as intervenções de Lucia Koch na Casa Encendida quanto a apresentação musical do Kassin +2 fizeram parte da programação paralela à participação do Brasil como país convidado na ARCO Feria de Arte Contemporáneo, em fevereiro de 2008. Além de Lucia Koch, também expuseram em outros espaços da Casa Encendida, integrando esse mesmo projeto, os artistas Cao Guimarães e Marcelo Cidade.

 

5 A prática colaborativa de Lucia Koch – comum desde o período que integrou o coletivo Arte Construtora (1992-1996) – foi também exercitada durante sua participação na 27ª Bienal de São Paulo (2006), em que, além de desenvolver trabalho individual, estabeleceu parcerias com os artistas Hector Zamora e Jarbas Lopes.

 

6 A mostra Lugares Desdobrados, realizada entre dezembro de 2008 e março de 2009, teve a participação, além de Lucia Koch, das artistas Elaine Tedesco e Karen Lambrecht, com curadoria de Mônica Zielinsky.

 

7 O trabalho é também homenagem à mãe de Lucia Koch, sugerindo as múltiplas situações que podem resultar de um dado conjunto de variáveis que se relacionam sob certas condições, tal como implicado nos fundamentos da Matemática Moderna.

 

8 Nos anos de 2004 e 2005, participaram das ações do JAMAC, além de Lucia Koch, os também artistas Mônica Nador e Fernando Limberger, moradores de Jardim Miriam e profissionais de disciplinas diversas, convidados a apresentar e a discutir seus trabalhos com a comunidade local por meio de palestras e debates. O JAMAC funcionava em uma casa com espaços para leitura e estudo e outros destinados a oficinas de arte. O trabalho ali desenvolvido nesse período por Lucia Koch teve o apoio do Prêmio Marcantonio Vilaça de Artes Visuais, de cuja primeira edição foi uma das vencedoras.

 

9 Sobre práticas artísticas fundadas na colaboração e no convívio, ver, entre vários outros: FORSTER, Hal. The artist as ethnographer. In: The return of the real. London: The MIT Press, 1996; BOURRIAUD, Nicolas. Esthétique relationnelle. Paris: Les Presses du Réel, 1998; KWON, Miwon. One place after another: site- specific art and locational identity. London: The MIT Press, 2002; KESTER, Grant H. Conversation pieces: community + communication in modern art. Berkeley: University of California Press, 2004; BISHOP, Claire. The social turn: collaboration and its discontents. Artforum, fev. 2006; e JOHANNA, Biling; LIND, Maria; LARS, Nilsson (Ed.). Taking the matter into common hands: contemporary art and collaborative practices. Londres: Black Dog Publishing, 2007.

ARMAZÉM DE TUDO

ARMAZÉM DE TUDO

Marcelo Silveira

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

A obra de Marcelo Silveira expressa, desde quase o seu início, a natureza imprecisa e híbrida da produção visual contemporânea, em que os meios se misturam e o espaço da produção artística se confunde com o âmbito alargado da cultura. Embora se deixe, em contato ligeiro, classificar como escultura, parte significativa dela não cabe nas convenções que demarcam o campo escultórico, esgarçando as fronteiras, há muito já frágeis, que o apartam dos terrenos da pintura, do desenho ou da instalação. Trabalhos de épocas distintas tipificam, de maneiras as mais diversas, esse desconforto de origem que anima a produção do artista. Ainda na primeira metade da década de 1990, Marcelo Silveira fez peças esculpidas em madeira e recobertas com caulim, interferindo na argila clara (riscando-a e apondo-lhe pequenas peças de metal) de modo a realçar suas nuances cromáticas. Embora já deixasse evidente, nesses trabalhos, o seu interesse pela criação tridimensional (e o pouco apego à representação), neles igualmente incorporava, sem hierarquias claras, as informações sobre pintura que trazia do lugar (Recife) e do momento (década de 1980) em que primeiro se formara como artista. Também exemplares sobre a indistinção dos meios que emprega são os muitos objetos de arame retorcido e enrolado, por ele chamados de Rabiscos (1994), nos quais se aliavam uma inequívoca autonomia como objetos e a sugestão de serem, como o título indica, riscos efêmeros com que parecia querer desenhar no espaço o que não caberia em qualquer superfície. Em outro trabalho de classificação ambígua (Cajacatinga, 1997), Marcelo Silveira recorta, lixa e fura pequenos pedaços de madeira, atravessando-os depois com fios de arame e prendendo-os à parede em linhas paralelas. Assim dispostos, evocam sinais caligráficos desconhecidos que poderiam, em potência, construir quaisquer vocábulos sobre o plano onde estão atados; assemelham-se ainda, contudo, a traços feitos em madeira que esperam somente a vontade do artista para transmutar-se em formas decididamente tridimensionais. Nesse inventário de construções incertas, inclui-se o objeto alo gado que, feito um pouco mais tarde e esculpido igualmente em madeira, serve de molde para desenhos realizados diretamente sobre a parede, onde o próprio objeto é afixado, por fim, como parte do trabalho. Demarcando os contornos da peça esculpida sobre a superfície da parede, Marcelo Silveira concede que as suas formas migrem de um meio supostamente autônomo (es- cultura) para um outro de mesma estatura (desenho), causando indistinção, ademais, entre o que é apenas modelo e o que é trabalho concluído (Sem título, 2001).

 

Após experimentar, no início de sua trajetória, com técnicas e materiais variados – período em que as especificidades dos meios usados cedem ao desejo de construção do que não existe ainda –, o artista firma-se, por alguns anos, na criação de objetos feitos em cajacatinga, madeira de árvore cujos topos, parcialmente carbonizados pela prática da queimada, são encontrados na região próxima à cidade de Gravatá, Agreste pernambucano, lugar onde Marcelo Silveira nasceu e passou a infância. Em sua maior parte, são peças feitas com pedaços de madeira que, após cortados e lixados, são encaixados uns nos outros por meio de cavas e pinos, constituindo os objetos que, na trajetória do artista, são, talvez, os mais facilmente classificáveis como escultóricos. Mesmo no interior desse campo, entretanto, tais trabalhos se voltam contra classificações dóceis, articulando duas tradições distintas de escultura: a que enfatiza o entalhe do material usado (o desbaste de cada um dos pedaços de madeira) e a que se faz pela junção entre partes. Da primeira tradição, retém o interesse pelo volume e pela massa da matéria trabalhada; da segunda, o apreço pela aproximação mecânica entre peças diversas.1 São todos eles, também, objetos que remetem, uns mais claramente do que outros, a brinquedos e utensílios típicos da região de origem de Marcelo Silveira, não ficando evidente, quando observados em conjunto, se são filiados mais à tradição culta da arte ou se a eles basta o amparo na memória da produção anônima das ruas. Essas estruturas articuladas são, por vezes, postas de pé sobre o chão ou simplesmente encostadas na parede, traindo uma arquitetura precária que parece sempre próxima ao desmanche. Outras vezes, pendem do teto em balanço e iludem, mesmo a pouca distância, se são destinadas somente à visão ou igualmente ao tato, lançando dúvidas sobre as maneiras com que se pode ou se deve relacionar com os trabalhos do artista: se apenas como observador ou se também como participante ativo. Seja por meio do desastre iminente da queda, ou da mobilidade que as peças aéreas, em tese, permitem, parece haver em todos esses trabalhos a admissão contida de mudar a configuração com que são apresentados, trazendo sempre, neles implícita, a ideia de movimento.

 

Uma vez conquistado o terreno do impreciso, Marcelo Silveira tratou de expandi-lo. A partir de objetos feitos em madeira, construiu moldes deles e os fundiu em alumínio, tratando os pares assim criados como trabalhos únicos, feitos de componentes tão semelhantes na forma quanto diferentes em textura, cor, peso e densidade. Desses objetos que avizinham matérias capazes de imprimir sensações tão distintas (uma atrai a luz, a outra a repele; uma sugere aquecer o olhar, a outra parece que o esfria), há um que resume, com precisão, a tensão que os procedimentos construtivo e expositivo adotados ativam: constituído por apenas dois elementos de madeira e outros dois elementos semelhantes de alumínio, cada um desses conjuntos é arranjado em equilíbrio precário e similar sobre parede e piso; mas, enquanto parece crível que a peça em madeira se mantenha ereta por longo tempo, a outra peça, igual em sua estrutura e articulação entre partes, parece pôr em risco, dado o seu peso excessivo, quem dela se aproximar em demasia. Ao transferir os contornos e volumes de objetos de madeira para substância com características tão diversas, o artista confunde, portanto, quem espera deles alguma certeza semântica associada somente às suas formas, ampliando os sentidos da mobilidade que, apesar de sempre constrangida em sua potência plena, é constitutiva de seus trabalhos e deles a todo instante transborda. Ao menos em um caso, contudo, a criação de duplos obedeceu a uma lógica diferente: uma vez feito o molde da peça esculpida em madeira, Marcelo Silveira construiu um segundo molde da mesma escultura, unindo-os em uma só estrutura alongada que serviu para fundir, por duas vezes, uma forma que não existia antes. Descartando a peça em madeira que deu origem ao molde, o artista expõe as duas idênticas peças em alumínio alçadas ao teto por fios trançados de couro de cabra, estabelecendo, por meios diversos aos utilizados no trabalho antes descrito, a aproximação entre matérias de características distintas. Em ambos os casos, provoca dúvidas quanto à hierarquia de materiais e quanto aos procedimentos empregados, enfatizando, ao contrário, o trânsito entre a origem suposta do trabalho e o seu resultado. Fica já aqui claro, ademais, o interesse que Marcelo Silveira possui pela possibilidade de replicar formas, sejam as que ele mesmo cria, sejam aquelas que, embora modificadas por seu olhar, já existem à sua volta.

 

A despeito da ambivalência de significados que esses trabalhos carregam (e que os aproxima, paradoxalmente, como produtos de uma mesma poética), eles podem ser considerados e analisados, individualmente, de acordo com as suas  propriedades formais e alusões simbólicas. Em dois outros trabalhos, todavia, o artista – ainda que se mantendo apegado, em um deles, às relações de articulação entre partes e, no outro, à ideia de movimento – cancela essa possibilidade de análise. No primeiro (Coleção I, 1999), dispõe, sobre mesa ou balcão, cinco dezenas de pequenos objetos esculpidos em madeira e lixados. Assim como em vários outros  de  seus  trabalhos,  cada  uma  dessas  diminutas peças lembra estruturas orgânicas ou arranjos construtivos rústicos, ecoando – por meio de corte, encaixe ou justaposição de partes – as formas de um utensílio doméstico, de um brinquedo popular ou de um adereço qualquer. Nenhuma delas, contudo, representa, de fato, coisa alguma, sendo do gradual e inevitável reconhecimento de sua inutilidade ordinária que o encanto dessa “coleção” emerge. Estabelece-se nesse trabalho, além disso, um deslocamento claro de foco: das propriedades formais de peças que se bastam, as atenções de Marcelo Silveira (e do observador) voltam-se também, agora, para um conjunto delas, as quais sugerem, de modo relacional, seus (possíveis) significados. Em vez de considerar apenas cada forma específica, o olhar busca abarcar, igualmente, a relação dessas formas com outras encontráveis ao seu redor, alternando a extensão do seu campo de interesse visual sem conseguir, entretanto, uma apreensão simultaneamente localizada e ampla do conjunto. Embora ainda parcialmente ancorado no âmbito restrito da escultura, vislumbra-se, de maneira inequívoca e por meio desse trabalho, o ingresso de sua obra no campo ampliado da instalação, no qual é a relação ativa, ao longo de certo período de tempo, entre os objetos criados, o observador e o espaço que os envolve que sugere significados sempre prontos a serem redefinidos.

 

No segundo desses trabalhos-limite (Sem título, 2001), o artista abandona totalmente as articulações e os encaixes que caracterizam muitos de seus trabalhos anteriores, concentrando-se na construção de um conjunto de peças que prescindem de outras partes. Desbastando e lixando troncos antigos e gastos de árvores já mortas (além da cajacatinga, usa a jaqueira, o louro-rosa e a baraúna), Marcelo Silveira constrói esferas de diversos tamanhos e acabamento irregular, misturando-as, em seguida, a outras que funde, em alumínio ou ferro, a partir de moldes feitos das esferas de madeira. Além de variarem em grandeza, essas esferas possuem, portanto, textura, densidade e cor distintas, criando, quando aproximadas, áreas de atração e atrito simbólicos aos olhos de quem com elas divide o espaço. Cada uma delas traz, além disso, uma marca escavada, em baixo-relevo, sobre suas superfícies. São símbolos, apropriados pelo artista, que representam – pela junção gráfica de iniciais de nomes – famílias de proprietários rurais, e que são usados para marcar o gado a elas pertencente. Por meio desse entalhe em seus trabalhos, Marcelo Silveira logra esvaziar os significados estáveis possuídos por esses símbolos e os insere no âmbito de sentidos moventes da produção de arte. Aludindo, em sua própria forma, à ideia de deslocamento ágil, essas esferas concentram e multiplicam, ademais, o que antes era somente sugerido, em termos físicos, nas peças de encaixe ou, simbolicamente, na criação de duplos em alumínio. O movimento efetivo que elas permitem é, contudo, limitado: por causa de seu peso extremo e de imperfeições de corte (as quais são transmitidas às peças fundidas), as esferas maiores são obviamente difíceis de mover e restam quase inertes sobre o piso. Essa ambiguidade entre mobilidade e fixidez físicas é ainda enfatizada pela ação realizada pelo artista com a maior das esferas de madeira, medindo mais de um metro de diâmetro e pesando cerca de seiscentos quilos. Deixada, durante as madrugadas (e recolhida, com a ajuda de guincho, nas noites seguintes), sobre calçadas de diferentes bairros do Recife – todas de grande movimento durante o dia –, a esfera causou espanto ou desconcerto (registrados em fotografias) por sua inexplicável presença em lugares para onde não se supunha ser plausível mover coisa tão pesada e sem função discernível.2 Tal como acontece com os trabalhos articulados em partes, também com as esferas a ideia de movimento que as formas de um objeto sugerem é truncada pelas propriedades da matéria. Consideradas individualmente ou em grupo, as esferas são, além disso, opacas a qualquer tentativa de representar o mundo, não importa quanto tempo com elas se despenda. De modo ainda mais incisivo do que a Coleção I já anunciava, a temporalidade que elas impõem ao observador é outra: não mais a da análise que descreve o trabalho, mas a da especulação de seus significados.3

 

Essa rejeição a sentidos isolados ou únicos – sejam eles formais, narrativos ou alegóricos – permite a Marcelo Silveira se lançar em direções diversas, obedecendo apenas a sua vontade renovada de articular os seus trabalhos com o entorno simbólico e físico dos lugares onde os desenvolve. No trabalho Roupas de casa (2003), o artista vincula, na construção de objetos, duas expressões distintas de organização social: a divisão de trabalho adotada pelos artesãos de Cachoeirinha (Agreste de Pernambuco) na confecção de montarias e a arquitetura das moradias precárias dos “trabalhadores sem-terra”, fincadas ao longo das estradas que cortam o país. Sobre esquemáticas estruturas de pequenas edificações feitas com finas hastes de aço, o artista coloca “roupas” de couro que repetem e cobrem as composições vazadas dessas “casas”, configurando uma cidade inventada e móvel, contingente, mas inequivocamente concreta. Alinhadas sobre o piso, essas formas cobertas são parcialmente refletidas em espelhos de molduras ovais como os que se usavam em salas de jantar, todos também postos em fila sobre parede próxima e já trazendo, desenhadas sobre suas faces reflexivas, arquitetura delgada semelhante à que dá sustentação às casas. Uma vez mais, impõe-se nesse trabalho a ideia de que nada fica parado e de que mesmo o que parece distante se aproxima e se toca: a face externa das casas e os espelhos “da sala” que as refletem, o metal frio e o couro que o aquece, a ideia do artista e o trabalho dos artesãos que confeccionam as peças, as moradias frágeis dos “trabalhadores sem-terra” à margem da estrada e o conhecimento culto que o trabalho gera. Incorpora, por fim, matérias antes só pontualmente por ele usadas e volta a deixar à mostra o gosto pela construção que é fruto da linha e do traço.

Se, em Roupas de casa, aquele que antes era só observador negocia sua interação virtual com o trabalho – confundindo, no espelho, a sua imagem com as das casas –, em Bochinche (2003) a imprecisão do lugar que público e trabalho ocupam é de natureza quase tátil. Constituído por doze núcleos – cada um deles composto por oito pequenos blocos de madeira presos ao teto e por igual número de fios de couro que, trespassando aqueles, descem até o chão e se entrelaçam –, o trabalho fala de conversa, de burburinho, de contatos fortuitos e imprevistos como os que acontecem em lugares de festa. Percorrendo as passagens que os fios pendentes do teto formam, é possível negociar a diferença entre o percurso da visão que atravessa o espaço vazado feito de teias de couro e aquele percorrido pelo corpo inteiro, obrigado a circundar os núcleos para mover-se de um a outro canto. No meio da sala, porém, um pequeno e estranho “carro” de madeira aparenta estar pronto para deslocar-se para qualquer lado, servindo de potencial elo entre as doze unidades apartadas e entre o visitante e todas elas. Já em Combinação Torreão (2004), o que o trabalho provoca é o encurtamento físico e simbólico da distância que separa instituições de arte. Feito de fios de couro entrelaçados que reproduzem, quando esticados e pendurados no teto como planos moles, a sala de exposições do Torreão (Porto Alegre), Marcelo Silveira o expôs no Gasômetro (também em Porto Alegre), no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife) e no Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa), fazendo migrar, de um lugar ao outro, a arquitetura de um só espaço.

 

Marcelo Silveira parece anunciar, nesses trabalhos, quão pequena é a distância entre as coisas julgadas distantes. E é esse desejo de aproximar o que parece apartado que orienta a criação do Armazém República (2004), instalação feita de dois segmentos distintos que partilham, além do nome, uma estratégia de construção. Em  um  desses  segmentos,  cem  peças  esculpidas em madeira são alçadas ao teto por fios de couro, pendendo dali como se fossem carne fossilizada ou formas sem  serventia  à espera de um uso improvável. Assim como na Coleção I, trata-se de um ajuntamento de coisas criadas que, embora evoquem os contornos de objetos úteis, não são mais que volumes desprovidos de significados assentados. Ao contrário das peças pertencentes àquele trabalho, entretanto, os objetos de madeira que compõem o Armazém República não foram, desde quando ficaram prontos, logo reunidos dessa maneira. Sem conseguir impor-se, aos olhos do artista, como trabalhos autônomos, encontraram o seu lugar, como parte de um conjunto, apenas com o distanciamento que o passar do tempo concede. No outro segmento do Armazém República, uma estante de madeira abriga centenas de objetos de vidro (copos, potes, espelhos, garrafas, vasos, lustres, cacos) que se amontoam, dialogam uns com os outros e se espalham em prateleiras largas, configurando painel vertical, transparente e frágil que se contrapõe à horizontalidade opaca e robusta dos objetos de madeira pendurados do alto. Além das diferenças de propriedades físicas, as duas seções desse grande armazém parecem se distinguir, a uma primeira mirada, pelo fato de as peças de vidro terem sido achadas já prontas, e as de madeira terem sido feitas, uma a uma, pelo artista. Efetivamente, nunca antes havia Marcelo Silveira lançado mão, com tal intensidade, do universo de formas disponíveis à sua volta, tratando quase sempre de criar outras novas. Arrumadas nessa estante, contudo, as peças de vidro gradual- mente desfazem as diferenças que possuem daquelas de madeira, posto que o arranjo novo das primeiras as torna tão desprovidas de utilidade quanto o desbaste que dá forma às segundas as faz imprestáveis para qualquer uso. Ademais, o tempo longo em que cada uma das peças de madeira foi guardada no ateliê – quase como vestígios de um gesto criativo frustrado – antes de serem recuperadas como componentes do Armazém República fez com que o artista dispusesse delas quase como se fossem obra alheia, e não mais fruto de seu trabalho.4 Ativando os canais que atam, em tensão constante, aquilo que parece diferente, essa instalação dá visibilidade, portanto, à fragilidade de distinções estanques e à incessante troca simbólica que existe entre as várias matérias e formas por onde ideias e coisas do mundo se movem. Tal como o “museu de tudo” imaginado pelo poeta João Cabral de Melo Neto, o armazém de Marcelo Silveira parece, pelo dinamismo que encerra, poder sempre acolher alguma coisa mais, ser “depósito do que aí está”.5

 

 

1 READ, Herbert. A concise history of modern sculpture. Londres: Thames and Hudson, 1970.

 

2 O trabalho Sfera di giornali (1966), do artista italiano Michelangelo Pistoletto (1933), constituía-se de uma grande esfera de papel machê feita com folhas de jornais que era rolada ao longo das ruas de Turim, em uma alusão física à dinâmica dos eventos que a imprensa noticia. Enquanto o trabalho de Marcelo Silveira sugere, a despeito de sua forma, dificuldade de locomoção, a intervenção de Michelangelo Pistoletto reforça, pela matéria simbólica usada na construção da esfera, a ideia de movimento que o formato embute.

 

3 A passagem da temporalidade analítica (tempo lógico) para a especulativa (tempo experimentado) na escultura moderna é discutida por KRAUSS, Rosalind. Passages in modern sculpture. Londres: The MIT Press, 1977.

 

4 SILVEIRA, Marcelo; DOS ANJOS, Moacir; FARIAS, Agnaldo. Armazém do mundo. [Entrevista]. In: Marcelo Silveira. Armazém de tudo. Recife: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, 2004.

 

5 MELO NETO, João Cabral de. O museu de tudo. In _. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1975.

LONGE OU PERTO DEMAIS...

LONGE OU PERTO DEMAIS PARA SABER DO QUE SE TRATA

Marepe

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

A internacionalização gradual e crescente da vida contemporânea – quer em sua dimensão matérica, quer em sua dimensão simbólica – tem forçado o progressivo desmanche dos limites outrora nítidos que demarcam, no campo do sensível, os espaços de vida diversos. Cause conforto ou incômodo, essa dissolução de bordas desautoriza associações imediatas e perenes entre território e cultura, e contraria, por isso, noções essencialistas de expressão identitária. Demanda, ao contrário, paradigmas explicativos que considerem a dimensão do encontro com o outro elemento central ao estabelecimento de distinções de vá- rias ordens e à consequente afirmação da alteridade. Em vez de ideias de pertencimento que ignoram e excluem o diferente, impõem-se como necessárias, portanto, concepções outras que não somente o reconheçam e o incorporem, mas que dele de- pendam para criar, desse contato que confunde conflito e troca, modos de representação próprios de um mundo sem fronteiras certas. Nesse contexto complexo, o que distingue cada lugar de vida dos demais não é o conteúdo de um repertório estanque de narrativas e gestos, mas as maneiras pelas quais este conteúdo é afetado por repertórios de outros lugares e, simultaneamente, como ele também os afeta. Cabe aos produtores de bens simbólicos de cada parte negociar, por meios os mais distintos, as condições dessas permutas com tantas outras partes, estabelecendo menos uma política de diferenças do que uma poética da diversidade.1 É nesse âmbito que se pode melhor entender a obra de Marcos Reis Peixoto, dito Marepe, posto que é através da afirmação e da defesa que faz de uma localidade do mundo – sua cidade natal – que a torna ao mesmo tempo única e próxima de qualquer outro lugar.

 

O artista nasceu em Santo Antônio de Jesus, cidade do Recôncavo Baiano, Nordeste do Brasil, distante quase duzentos quilômetros de Salvador e habitada por pouco menos de 90 mil pessoas. Chegando-se a ela do norte ou do sul, lê-se, em grandes placas postas na estrada, dizeres que afirmam a vocação e o orgulho locais: “Santo Antônio de Jesus: o comércio mais barato da Bahia”. Seja isso verdade ou não, e quaisquer que sejam os critérios usados para formular tal julgamento, é certo que a cidade se estrutura, econômica e socialmente, em torno de atividades de compra e venda de produtos e serviços diversos, algumas delas organizadas formalmente e várias outras não. Muitas lojas pequenas e umas poucas grandes se sucedem nas ruas e galerias da região central, que abriga ainda mercado popular e feira de roupas e alimentos em dias marcados. Espalhadas sobre calçadas ou mesmo em vias de tráfego, bancas e barracas ofertam, por sua vez, de miudezas gerais a comida preparada na hora, com- pondo, com as atividades de venda formais, uma textura urbana que alia variedade e desordem. Além de seu intenso comércio, Santo Antônio de Jesus é conhecida pela concentração de altas palmeiras plantadas ao longo de suas ruas e por possuir, como muitas outras cidades de pequeno e médio porte do interior do país, um calendário de eventos composto de festas tradicionais populares – algumas profanas, outras religiosas –, jogos do time de futebol do lugar e manifestações políticas de naturezas as mais distintas. Apesar do tamanho quase acanhado para os padrões brasileiros e de estar relativamente distante da metrópole regional, a cidade não é, portanto, território isolado de tudo o que fica “longe”, posto que o caráter mercantil das atividades que sustentam e dão sentido às vidas de seus moradores traz, já embutida, a abertura para quem está fora e para o que é diferente. E é justo na permeabilidade a esse ambiente simultaneamente particular e abrangente, potencializado pelas transformações de um mundo que cada vez mais aproxima o perto e o distante, que a obra madura de Marepe se funda.

 

Vários dos trabalhos realizados pelo artista em meados da década de 1990 são testemunhas do olhar interessado e cuidadoso sobre atividades que há muito organizam a vida comum de Santo Antônio de Jesus e, igualmente, do centro comercial de Salvador, cidade onde  morou  para  concluir  seus  estudos.  Após  observar e fotografar muitas bancas de vendedores ambulantes, Marepe  refez algumas delas valendo-se dos mesmos materiais e técnicas empregados por quem anonimamente constrói as que existem nas ruas. Pôs sobre as bancas refeitas, em seguida, produtos idênticos aos que as outras vendiam, arrumando-as, ademais, de modo parecido. São elas a Banca de fichas e cartões telefônicos (1996), a Banca de venenos (1996) e a Banca de bijuterias (1996-1998). Em época próxima à que elaborou essa série de bancas, reproduziu também as Trouxas (1995) de tecidos brancos usadas para transportar e guardar a comida de trabalhadores que passam o dia inteiro fora de suas casas, ou para carregar, sobre a cabeça de quem se ocupa desse ofício, roupas lavadas e passadas. Apropria-se, assim, não de objetos que existem na trama confusa da cidade, mas tão somente de suas imagens, respeitando o valor de uso daqueles e tecendo, ao mesmo tempo, um elogio às suas formas de existência material, em constante ameaça de desaparição pela dinâmica de uma economia que continuamente reduz as oportunidades para o que não é grande ou que não está articulado em redes de interesses sólidas. Chama ainda a atenção, através desse procedimento, para aqueles que se dedicam, por vocação ou necessidade, à invenção de equipamentos destinados ao meio social em que vivem, enfatizando sua capacidade de adaptação criativa diante da impossibilidade de uma outra inserção no mundo que gera riqueza e renda.

 

Embora esses trabalhos sejam superficialmente aparentados aos objets trouvés do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), há entre eles marcadas diferenças. Além do fato de os primeiros serem construídos e os segundos capturados já prontos (ready-mades), o móvel das escolhas de Marepe é a afeição pelas formas e usos dos objetos em seu cotidiano e o fato de serem necessários à gente de seu lugar, enquanto Marcel Duchamp exercitava, em suas seleções, completa indiferença por aquilo que nomeava como arte. A despeito de reconhecer a importância do ready-made por ter autorizado a apropriação como gesto criativo, Marepe demarca as diferenças entre aquela operação e os procedimentos em que está interessado, referindo-se a esses e a outros de seus trabalhos como nécessaires. O apreço do artista pelos artefatos e pelos artífices que estão à margem da circulação oficial de bens se estende, por fim, aos pregões utilizados pelos trabalhadores que comercializam produtos na rua ou em estabelecimentos que, de tão precários, exprimem mais resistência à entropia da pobreza do que cálculo empresarial. Sobre uma superfície azulejada e branca que lembra balcão de lanchonete, Marepe coloca recipientes plásticos comumente usados para acondicionar molho de tomate; fixadas nas beiradas dessa mesa, contudo, calhas de metal sugerem conduzir, através de tubulações postas nas quatro quinas do móvel, uma substância pastosa e vermelha até bacias brancas colocadas no piso da sala, trazendo igualmente à memória uma mesa de necropsia. Nomeada de Sangue de novela (2004), essa peça evoca não somente o modo galhofeiro com que vendedores de lanches oferecem o molho que tempera os sanduíches que servem, mas também sua condição de quase excluídos de um acordo econômico e social que transforma seus negócios em uma espécie de cenário e que destitui suas biografias de protagonismo de fato.

 

A descrição desses poucos trabalhos permite já notar a preocupação do artista em trazer, para o campo codificado das artes visuais – instância que classifica as coisas que lhe pertencem como esculturas, instalações, objetos ou designações assemelhadas –, expressões características de seu espaço de vida ordinária. Diante do poder homogeneizador da cultura global – aquela que, em contato constante com outras, impõe com mais ênfase formas de pertencimento que são, em verdade, particulares –, Marepe cuida de inserir, nas próprias vias onde essa hegemonia é reclamada (exposições e publicações de arte, entre tantas mais), aquilo que pertence ao seu território doméstico, pelo qual tem estima e que aumenta, por isso, sua “potência” de agir. O desejo do artista em proteger um espaço restrito e próximo contra algo que supostamente o nega se confunde, portanto, com o desejo de ocupar o espaço simbólico mais distante, porém mais largo, que a arte instaura. Em um mundo que avizinha e confronta valores diversos ao acaso, a obra de Marepe habita o terreno do contraditório e se deixa, assim, simultaneamente afetar, em conflito irresoluto, por aquilo que eleva e por aquilo que deprime sua força de existir. A guarda do que identifica como próprio de seu lugar não é feita por meio da recusa ao que marca outros territórios; ao contrário, os objetos, as paisagens e as práticas do cotidiano de Santo Antônio de Jesus são dados a ver, em espaço ampliado, através de formas expressivas criadas em tradições distintas das pre- sentes na vida diária de sua cidade natal. Embora transformado pelos códigos descarnados da arte, esse repertório vernacular é, por causa mesmo dessa mudança, não somente defendido de obsolescência, mas transportado a um circuito de legitimação ao qual não possuía antes acesso. Dessa aproximação e embate entre diferentes modos de expressão, resulta uma obra que embute e exprime, de uma vez só, signos “flutuantes” de afeto.2

 

As fotografias que compõem o trabalho Doce céu de Santo Antônio (2001) desvelam, com clareza, o lugar simbólico ambíguo ao qual pertencem e do qual são, ademais, testemunhas. Nelas, o artista, com os pés fincados no chão, aparenta alimentar-se das nuvens que correm os céus da cidade e que alcança com o braço esticado; por estar comendo, de fato, algodão-doce, asso- cia esse pedaço do firmamento que cobre a comunidade que lá mora à proteção que somente a lembrança de coisas da infância gera. Inscreve essa ideia de proximidade no mundo mais vasto, entretanto, como registro fotográfico de performance. Nesse processo, promove não somente a modificação de um sistema cultural específico por meio de um outro distinto, mas também a inserção, no segundo desses sistemas – o campo da arte em que circula sua obra –, de maneiras de dizer, ver e agir presentes, anteriormente, apenas no cotidiano de Santo Antônio de Jesus. Ocorre que, tal como entre sistemas linguísticos diferentes, não existe correspondência unívoca entre sistemas culturais diversos. Como consequência, inexiste transparência perfeita naquilo que é resultado dessas traduções, restando sempre algo opaco e, portanto, intraduzível entre as formações culturais postas em atrito pelo artista.3 Tal opacidade é proporcional ao desconhecimento tanto do que é próprio da vida comum da cidade onde Marepe nasceu quanto dos conceitos e códigos que estruturam o campo da arte culta. Dessa forma, se o domínio da história e dos procedimentos canônicos da produção visual contemporânea não basta para desvelar os significados possíveis de seus trabalhos, o fato de os habitantes de Santo Antônio de Jesus reconhecerem a procedência e a função de cada utensílio, imagem ou gesto apropriados pelo artista não os torna, por isso, melhor entendedores de sua obra. Diante dos trabalhos de Marepe, parece estar-se sempre longe ou perto demais daquilo que, supostamente, os explicaria de modo acurado. Eles são evidência forte, em verdade, de que o roçar de diferenças produz não sínteses identitárias, mas afirmações de pertencimento híbridas e instáveis, igualmente apartadas dos componentes distintos dos quais são resultados, embora tragam sempre deles seus rastros.

 

Coexistem, então, nesse espaço de trocas que o mundo contemporâneo institui, a defesa e a partilha de territórios. Defesa formulada, de maneira exemplar, na instalação Rio Fundo (2004), em que garrafas fechadas da cachaça produzida na região e que dá nome ao trabalho são colocadas sobre bancos de madeira e fórmica – parecidos com os encontráveis em bares suburbanos do Brasil – na companhia sugestiva de copos. Esses bancos são circundados, além disso, por câmaras de ar cheias, semelhantes às usadas, pela população mais pobre do país, como improvisadas boias em banhos de mar ou de rio, servindo aqui, todavia, como proteção simbólica ao naufrágio de coisas e hábitos próprios de um lugar que devem, afirma o artista, ser preservados e celebra- dos no encontro necessário e desejado com o que está afastado. Defesa do local ainda presente no objeto intitulado Cabeça acústica (1995), feito de duas bacias de alumínio como as usadas para lavar roupa em quintais de casas modestas, uma dobradiça que as une como as bandas idênticas de uma concha, e uma assadeira cônica, igualmente de alumínio, enfiada em buraco criado onde os dois recipientes se juntam, lembrando a forma de um alto- falante. Completa a peça uma fita de borracha que evita o atrito direto entre o metal e a pele do pescoço de quem põe a cabeça, através de outro orifício também aberto, no interior desse objeto estranho. Para Marepe, esse trabalho é “proteção para o que está fora e um mergulho no que está dentro”, metáfora do sentimento de defesa do entorno que sua obra conjura.4 A voz de quem veste esse aparelho construído e que fala desde seu interior (simbolicamente, de dentro de um território cultural que quer preservar) reverbera na matéria das bacias, é moldada por ela e chega, através da assadeira e marcada pelo que é próprio daquele ambiente, ao ouvido do outro, aquele que está fora e que a escuta. De modo singelo e lúdico, o artista advoga o “direito de narrar” o mundo a partir de pontos de vistas que, simplesmente por serem emitidos de lugares diversos, possuem um particular sotaque e jamais se confundem com outros discursos.5

 

Essa defesa não impede, contudo, que, em O presente dos presentes (2002), Marepe decore pequenos tijolos de argila com fitas de seda e estrelas de papel laminado, expondo-os em seguida como se fossem oferendas. Feitos da matéria que simboliza piso e moradia, esses pequenos “pacotes” afirmam a diferença de um lugar entre tantos, fazendo, ao outro, a oferta potencial do que é mais caro a cada um: o seu chão, a sua base. E são justamente partilhas entre imiscíveis vivências ou narrativas que são promovidas na instalação O casamento de discos (2002), em que duas vitrolas antigas e vários discos de vinil são disponibilizados a membros do público, os quais devem escolher duas das gravações e tocá-las ao mesmo tempo. O artista oferece suas escolhas – contidas no limitado repertório dos discos expostos – e, em função dessa abertura à conversa, a audiência deve fazer suas opções, combinando os sons das músicas e criando, assim, algo que antes não existia e que é, ademais, inconcluso e efêmero; algo que não promove a dissolução de uma canção em outra e só perdura os instantes necessários para tocar os pares selecionados de discos. Além da defesa do low-tech contra o high-tech vigente (metáfora possível da afirmação do subordinado perante o hegemônico), essa forma rudimentar de mixagem sugere que do diálogo possa surgir uma aproximação temporária entre desiguais, embora diferenças persistam sempre. Propõe, desde seu lugar de origem, o alargamento do campo de “partilha do sensível” e, por consequência, incita que outros façam, desse espaço específico, também sua simbólica morada.6

A obra de Marepe, portanto, não somente comenta um lugar sem dimensões certas; em verdade, ela demarca e habita tal território, requerendo sempre a imaginação do outro para lhe imprimir significados, mesmo que parciais e provisórios. Poucas vezes esse apelo foi tão marcado como quando transportou o fragmento de um muro de sua cidade (dois metros de altura, seis de extensão e pesando três toneladas e meia) para o interior do prédio da Bienal de São Paulo, quase 2 mil quilômetros dali afastado. Transformou, com esse ato, o que possuía serventia assentada para os moradores locais em campo aberto para os visitantes da mostra exercitarem seu desalento diante do que não conseguiam classificar de modo certo. Sobre essa parede feita de tijolos e de cimento, destacava-se, pintada artesanalmente em azul e amarelo, a propaganda de um antigo e conhecido armazém onde seu pai trabalhara – Comercial São Luís –, oferecendo Tudo no mesmo lugar pelo menor preço (2002), confirmação de uma vontade de atrair o outro e de negociar mercadorias variadas. Deslocado e destituído de sua utilidade original, a primeira parte desse slogan – “tudo no mesmo lugar” – parecia recordar o quanto o local (Santo Antônio de Jesus, entre muitos outros lugares) está embebido de toda parte. Podia igualmente ser lida, porém, como uma afirmação que era contradita pela própria ação do artista, posto que o deslocamento do pesado muro sugeria que as coisas, mesmo as supostamente fixas, não estão sempre no mesmo lugar, mas, ao contrário, em potencial movimento. Se não tanto, indicava ao menos que esse lugar onde todas as coisas estão é um território de fronteiras flexíveis, que se contraem e se distendem continuamente. O deslocamento do muro de uma a outra cidade informava, ademais, que também o global (São Paulo, entre muitos outros lugares, a depender de onde se observa o mundo) está permeado pelo que lhe parece periférico e subordinado. Já se a ênfase fosse posta na última parte do slogan – “pelo menor preço” –, era cabível ler a frase pintada como um comentário ácido sobre a valorização simbólica e patrimonial de trabalhos (incluindo, evidentemente, o seu próprio) depois que são inseridos em (ou transportados para) exposições de arte julgadas importantes, lugares onde quase tudo cabe. Por fim, se a circulação do muro pelas estradas do país, amarrado na carroceria de caminhão aberto e exibindo a propaganda do empório de vendas mais importante de Santo Antônio de Jesus, foi certamente mais outra demonstração do apreço do artista por seu local de nascença e reconhecimento de uma inclinação para atividades mercantis, significou, igualmente, a equiparação de sua relação afetuosa com a cidade, aqui representada pelo muro, à ideia de um lugar em perene trânsito. Santo Antônio de Jesus deixou de ser, por essa operação, um território com limites bem definidos, tornando-se alegoria de um espaço genérico de permuta entre o próximo e o longe; deixou de ser somente afeto e se tornou conceito também.7

 

O deslocamento difícil de um pedaço de muro de Santo Antônio de Jesus até São Paulo pode servir, por isso, para evocar a migração, feita há tempos e em duras condições, de habitantes pobres da Bahia e de outros estados do Nordeste do Brasil para o mesmo destino. Empregados como operários da construção civil (pedreiros, marceneiros, serralheiros, pintores,  serventes),  muitos desses migrantes tiveram contribuição decisiva na acelerada transformação física de São Paulo na maior metrópole do país.8 E é a celebração do que resultou dessa mudança demográfica que estruturou a instalação Desemboladeira (2004), apresentada na Pinacoteca do Estado de São Paulo no dia em que se comemoravam os 450 anos da cidade. Sobre o piso do pátio central da instituição, Marepe dispôs, em grupos amontoados que lembravam telhados e, ao mesmo tempo, marcos do traçado de uma pequena praça em festa – sugestão reforçada pelo fio com luzes acesas suspenso na sala de exposição –, 450 desempoladeiras, instrumentos utilizados por pedreiros para aplainar a argamassa posta entre e sobre tijolos na construção de paredes. A cada ano de vida já completado por São Paulo, correspondia, então, uma desempoladeira, muitas delas embrulhadas em papéis coloridos como fossem presentes de aniversário. De alto-falantes colocados no espaço, ouviam-se ainda os sons híbridos de Signagem (1997), disco de autoria do compositor paraibano Pedro Osmar que articula a construção formal da embolada – uma das expressões musicais típicas de zonas interioranas do Nordeste – e elementos sonoros que simulam os ruídos dos grandes aglomerados urbanos, aproximando os lugares de origem da maior parte dos migrantes que edificaram a São Paulo moderna e o lugar onde vieram morar.9 Ao longo de todo o dia, as desempoladeiras foram oferecidas aos visitantes para que as levassem consigo para suas casas, meio simbólico de exaltar aqueles que ajudaram a construir a cidade e, simultaneamente, de recordar a ambígua inserção que essa população possui na vida contemporânea de São Paulo, entre a integração e a invisibilidade social. A distribuição das desempoladeiras ecoa, ademais, um trabalho anterior de Marepe, também realizado em uma data festiva. Palmeira doce (2001) foi uma performance feita em Santo Antônio de Jesus no dia consagrado, no calendário católico, aos santos Cosme e Damião (27 de setembro), no qual é costume, ainda mantido em cidades menores, organizar festas que unem celebração religiosa e brincadeiras para crianças, com distribuição farta de guloseimas. Com a ajuda dos fabricantes de algodão-doce do lugar, o artista produziu e instalou, em uma das palmeiras imperiais existentes na principal via de Santo Antônio de Jesus, como fossem cachos maduros e coloridos de um fruto esquisito, cerca de 4 mil sacos do produto, retirados depois do alto da árvore e distribuídos às crianças da cidade em meio a alvoroço ruidoso e feliz. Assim como em Desemboladeira, também aqui é a partilha física e simbólica de algo, aliada ao seu consequente desaparecimento objetual, que inscreve o trabalho no difuso campo da arte.

 

Que não se idealize Santo Antônio de Jesus, entretanto, como espaço de convívio sereno e pacato. De modo similar ao que ocorre em quase todo o país, também lá o cotidiano vivido é marcado por desigualdades sociais agudas e pela consequente exclusão de parte da população ao acesso a bens públicos básicos. Não à toa, habitações populares têm sido tema e questão recorrentes na obra de Marepe. Destacam-se, nesse âmbito, os trabalhos Os embutidos (1999) e Embutidinho (2001), casas quase toscas feitas de madeira e ferragens baratas que, situadas entre o protótipo e a maquete, reproduzem soluções construtivas inventadas pela população mais pobre do Brasil para fazer frente à ausência crônica de moradias. São representações de habitações pequenas, por vezes muito aquém do razoável, mas que trazem uma sofisticada compreensão do espaço a partir de seu uso ordinário. São trabalhos que atestam uma inteligência feita do constrangimento e que é produto, portanto, de vidas tecidas na falta de muito daquilo que mais importa. Mas embora exprimam e celebrem a capacidade de adaptação de um grande contingente de habitantes do país a uma condição adversa no mundo, tão bem encapsulada no termo gambiarra, essas construções não possuem, justamente por isso, uma conotação unicamente positiva,  expressando,  no  campo do sensível, a incapacidade do Brasil em fazer valer um direito universal. Reproduzem, todavia, táticas de sobrevivência que o artista considera merecedoras de permanência simbólica por meio de seu transporte e tradução para o campo culto da arte, concedendo visibilidade ampla para o que muitos talvez sequer notem no cotidiano apressado. Uma vez mais, fica evidente a natureza ambígua do lugar do afeto na obra de Marepe, posto que nela estão contidos, de maneira indivisa, impulsos que o animam e outros que o desolam. Embutido recôncavo (2003), por seu turno, trabalho da mesma série, tem seu chão quadrado repartido em quatro partes iguais apoiadas sobre rodas, e os planos verticais que conformam suas paredes articulados com dobradiças, possuindo, desse modo, o recurso de se voltar sobre ele próprio e de se pôr ao avesso, fazendo de seu interior fachada e, da parede externa, ambiente íntimo. Misturando o convexo e o côncavo, o artista reforça o desejo, expresso em tantos momentos de sua trajetória, de expor o que é próximo e de se abrir ao que está longe.

 

A casa ou a falta dela estão igualmente presentes na escultura chamada O telhado (1998), em que a habitação se resume a uma coberta feita de madeira e de telhas de barro apoiada direto sobre o chão vago; ou no trabalho A porta e a janela (2004), em que a casa é reduzida, como o título indica, a uma porta e a uma janela de madeira encostadas em qualquer canto, dando acesso a lugar algum ou a um espaço que é da ordem da esperança ou da saudade. Ambos novamente afirmam, pela ausência evidente de todo o resto, o problema da carência de habitações acessíveis à parcela significativa da população do Brasil, que faz muitos migrarem, com seus poucos pertences, em busca de condições melhores de vida nem sempre encontradas. Essa mobilidade forçada e difícil é apresentada, com amargo humor, em A mudança (2005), caminhão feito todo de madeira em uma escala situada entre a do brinquedo e a da reprodução idêntica, que obviamente não anda, e que é carregado de objetos domésticos feitos do mesmo material, inclusive aqueles, como fogão ou geladeira, que, evidentemente, não funcionam. A afirmação do local na obra de Marepe não é, assim, apenas laudatória. Junto com a celebração de ritos, vistas e destrezas manuais de sua região que julga, por critérios estéticos subjetivamente formados, ser necessário defender do poder homogeneizador da cultura global, o artista também expõe as desigualdades que permeiam e que dão contorno ao seu lugar de origem, e que devem, conforme deixa implícito, ser combati- das e mudadas. Afinal, se um muro de três toneladas e meia se deslocou por quase 2 mil quilômetros, um caminhão de madeira pode fazer trajetos até maiores.

 

Essa ambivalência de apego e lamento pelas coisas próximas marca igualmente trabalhos que lidam não mais com a rua ou com a arquitetura, mas com aquilo que ocupa o espaço interno das casas. Tal domesticidade, contudo, não implica introversão exacerbada ou afastamento do olhar para longe da esfera pública. Ao contrário, permite enxergar, de modo crítico, o quanto a vida privada em sua cidade, e em outras tantas das quais ela é índice e emblema, articula-se e relaciona-se com as práticas de sociabilidade vigentes no país. Na instalação Os filtros (1999), Marepe interpõe, entre as bases e os topos de filtros de cerâmica, seções intermediárias retiradas de outros filtros idênticos, criando objetos utilitários alongados que lembram ainda formas escultóricas canônicas.10 Postos sobre pequenos bancos de madeira ao lado de pequenos copos de vidro, esses imponentes utensílios parecem indicar, pelas filtragens sucessivas que sugerem impor à água que sai das torneiras, uma ideia de pureza relacionada a um objeto encontrado em casas modestas de todo o Brasil e, simultaneamente, a dificuldade de obter, no cotidiano de muitas dessas habitações, água abundante e potável.11 Já nos trabalhos da série Biscoitos de mainha (2006), o comentário amoroso sobre a culinária familiar, presente nas réplicas (feitas com massa sintética) de pequenos biscoitos presos em formas de assar alimentos, é perturbado pela aparência estranha de alguns deles, os quais reproduzem armas, corpos sem vida ou outros motivos que lembram a violência das ruas do país. Nem no aconchego do lugar de morada, indica o artista, é possível fechar-se à vida que corre do lado de fora, quer no que ela tem de atrativo, quer no que ela assusta ou causa repulsa.12

 

Ao longo de toda sua trajetória, Marepe defende o lugar simbólico que lhe é achegado e conhecido e que eleva a sua potência de agir – o lugar “certo”, portanto – sem, porém, recusar o contato estreito com o lugar distante e estranho do outro, o qual, por ameaçar a integridade daquele território amoroso, em princípio deprime a sua força de existir – o lugar “errado”, por conseguinte. Muitos de seus trabalhos afirmam, de fato, que é somente por meio da promoção do convívio entre esses lugares – o “certo” e o “errado” – que, em um mundo de fronteiras em progressivo desmanche, é possível imaginar e construir novas formas de pertencimento. Recusando a nostalgia por uma filiação identitária atemporal e, igualmente, a rendição a modos de vida com os quais não se identifica plenamente, invoca um espaço simbólico de bordas flexíveis e em construção constante, necessariamente tecido de negociações, conflitos e acordos de incerta duração.13 Não se trata de estabelecer oposições cegas entre geografias e formações culturais diversas, mas, em vez disso, de absorver, traduzir e lançar, aos circuitos de difusão apropriados, os efeitos frequentemente contraditórios dessa inevitável vizinhança. Para atingir tal intento, sua obra constantemente frustra as expectativas dos que esperam reconhecer nela apenas o elogio do passado e do periférico, em suposta oposição binária a um tempo presente e a um território central, onde os primeiros evocariam uma vida apegada a modos de vida particulares e os segundos, uma adesão a uma genérica arte internacional. Por meios variados, o artista constrói laços ou propõe associações possíveis entre a defesa do vernacular e o desejo pelo cosmopolita, entre o que conforta e o que traz sofrimento, entre o que é necessário à sobrevivência e o que é somente representação de algo. Instaura, assim, um espaço de “dissenso” em meio a conceitos e ideias convencionais que ignoram as complexas formas identitárias vigentes no mundo contemporâneo, solicitando, de quem entra em contato com seus trabalhos, que negocie e questione os possíveis significados que estes trazem.14 Espaço de dissenso que é também esboço da cartografia nova e inconclusa de um mundo que une Santo Antônio de Jesus a tantos mais lugares que repartem, com a cidade de Marepe, a incerteza de sentidos com que se lida, forçosamente, no cotidiano comum e no campo ampliado da arte.

 

 

1 De acordo com Édouard Glissant, “a noção de ser e de absoluto do ser está associada à noção de identidade ‘raiz única’ e à exclusividade da identidade, e que se concebermos uma identidade rizoma, isto é, raiz, mas que vá ao encontro das outras raízes, então o que se torna importante não é tanto um pretenso absoluto de cada raiz, mas o modo, a maneira como ela entra em contato com outras raízes: a Relação”. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p. 37.

 

2 Para Gilles Deleuze, existem “dois tipos de signos vetoriais de afecto, conforme o vetor seja de aumento ou de diminuição, de crescimento ou de decréscimo, de alegria ou de tristeza. Essas duas espécies de signos seriam denominadas potências aumentativas e servidões diminutivas. [A estes, ele ainda acrescenta] […] uma terceira espécie, os signos ambíguos ou flutuantes, quando uma afecção a um só tempo aumenta e diminui nossa potência, ou nos afeta ao mesmo tempo de alegria e de tristeza”. DELEUZE, Gilles. Spinoza e as três “éticas”. In: _. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 158.

 

3 MAHARAJ, Sarat. “Perfidious fidelity”: the untranslatability of the other. In: FISHER, J. (Ed.). Global visions towards a new internationalism in the visual arts. Londres: Kala Press; Institute of International Visual Arts, 1994.

 

4 Depoimento do artista publicado no catálogo do 46º Salão de Artes de Pernambuco. Recife:

Companhia Editora de Pernambuco, 2004.

 

5 Segundo Homi Bhabha, o “direito de narrar não é simplesmente um ato linguístico; é também uma metáfora do interesse humano fundamental pela liberdade, o direito de ser ouvido, de ser reconhecido e representado. Tal direito pode habitar a pincelada hesitante de um artista, ser percebido em um gesto que fixa um movimento de dança ou se tornar visível em um ângulo de câmara que paralisa seu coração. Repentinamente, em pintura, dança ou cinema você renova seus sentidos de pessoalidade e perspectiva, e, nesse processo, você entende algo profundo sobre você mesmo, sobre seu momento histórico, sobre o que concede valor a uma vida vivida em uma cidade em particular, em um momento particular, sob condições sociais e políticas particulares”. BHABHA, Homi. The right to narrate. Disponível em: <http://www.uchicago.edu/docs/ millennium/bhabha/bhabha_a.html>. Acesso em: nov. 2004.

 

6 Jacques Rancière denomina de “partilha do sensível” “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha”. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. p. 15.

 

7 Para Gilles Deleuze, quando a potência de agir aumenta suficientemente no encontro ao acaso entre corpos, “entramos na posse dessa potência e nos tornamos capazes de formar um conceito, começando pelo menos universal (conveniência de nosso corpo com algum outro), mesmo se na sequência devemos atingir conceitos cada vez mais amplos segundo a ordem de composição das relações”. DELEUZE, Gilles. Spinoza e as três “éticas”. In: ______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 162.

 

8 O maior fluxo de migração de pessoas originárias de estados do Nordeste (principalmente da Bahia) para São Paulo se deu entre as décadas de 1950 e 1970, período de industrialização intensa do Brasil e, de modo mais concentrado, da região Sudeste do país.

 

9 MESQUITA, Ivo. Desemboladeira. Texto não publicado de apresentação da instalação homônima de Marepe, exibida no dia 25 de janeiro de 2004 na Pinacoteca do Estado de São Paulo. O título do trabalho é referência simultânea à ferramenta de pedreiro (desempoladeira) e à sincopada forma musical nordestina (embolada).

 

10 A relação mais imediata e formal é com a série de esculturas verticais do artista romeno Constantin

Brancusi (1876-1957), feitas da sobreposição de estruturas modulares, quer em madeira, quer em mármore.

 

11 FARIAS, Agnaldo. Las cosas que deben mirarse. [Desde Brasil: Marepe]. Artecontexto, v. 1, n. 1, 2004.

 

12 MAREPE; LAGNADO, Lisette. Marepe. [Entrevista]. In: 27ª Bienal de São Paulo. Como viver junto: guia. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.

 

13 Segundo Miwon Kwon, o lugar “certo” seria aquele que transmite e reafirma uma sensação de pertencimento e de identidade enraizada, enquanto o lugar “errado” seria aquele que desorienta e ameaça o sentido coerente que se tem do mundo e de si próprio. É o encontro com o lugar “errado”, contudo, que expõe a instabilidade do que pensava antes como o lugar “certo”. KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Cambridge, Mass: MIT Press, 2002.

 

14 Para Jacques Rancière, o papel do “dissenso” é “sempre reexaminar as fronteiras entre o que é suposto ser normal e o que é suposto ser subversivo, entre o que é suposto ser ativo – e, portanto, político – e o que é suposto ser passivo ou distante – e, portanto, apolítico”. RANCIÈRE, Jacques; CARNEVALE, Fulvia; KELSEY, John. Art of the possible. [Entrevista]. Artforum, v. 45, n. 7, 2007. p. 266.

INVENTÁRIO DE GESTOS

INVENTÁRIO DE GESTOS

Mauro Piva

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Iniciada em 1999, a trajetória artística de Mauro Piva exibe poucas inflexões ao longo dos anos. Evidencia, ao contrário, o adensamento gradual de um repertório conciso de temas, o alargamento somente necessário das técnicas usadas e a rejeição constante à argumentação estridente, criando um espaço onde encantamento visual e reflexão crítica se confundem sem alarde. É a manutenção desse foco austero, contudo, que precocemente faz, de seus desenhos e pinturas, um corpo coerente e maduro de invenção visual.

Já desde os primeiros desenhos expostos, fica clara a delimitação do campo de assuntos que ao artista interessa discutir. Figuras humanas solitárias ou aos pares são traçadas inteiras ou, muitas vezes, fragmentadas, como se não fora possível afirmá-las por completo. Mesmo quando desenhadas íntegras, falta a elas rostos e, portanto, as marcas de expressão facial que as tornariam singulares. As figuras estão imersas, ademais, em ambientes também só esboçados em porção reduzida do suporte branco ou apresentados de forma indicial, evocando paisagens desertas ou, com maior frequência, interiores domésticos, tais como quartos, banheiros ou salas. Mauro Piva define, entretanto, os gêneros das figuras que cria por meio de sutis distinções de linhas e de cor de vestuário (somente calça e camisa de malha): a masculina é feita com ombros ligeiramente alargados e desenhada sempre com roupas em tons de marrom, enquanto a feminina tem seios insinuados sob a camisa e veste roupas acinzentadas. Aliado à pequena dimensão dos trabalhos – feitos do tamanho que exige a aproximação quase tátil do observador –, esse rebaixamento cromático convida o olho a percorrer as superfícies de papel com vagar, reconhecendo o que há inscrito nelas. A ausência de uma narrativa evidente nas cenas criadas envolve-as, contudo, em uma temporalidade suspensa ou incerta, na qual não cabe a enunciação de desfechos quaisquer. Como se fossem personagens de situações recorrentes e exemplares – mas nunca plenamente enunciadas –, essas figuras apenas sugerem um desconforto ou uma inadequação cuja origem, sem ser jamais precisada, parece advir da esfera do afeto. Não há nesses trabalhos, todavia, a pretensão do comentário crítico ou celebratório desse estado de desamparo. Apenas espelham e acentuam a ausência, no mundo contemporâneo, de uma fala estável ou de um corpo liberto. Ao anunciar os elementos que fundam sua poética, esses desenhos ecoam ainda a influência declarada do artista brasileiro José Leonilson (1957-1993), cuja produção comenta e descreve relações amorosas como forma de conhecimento vital em que prazer e dor se roçam, e que também faz uso ativo da superfície branca do papel para enunciar os sentidos de seus trabalhos.

 

Em um conjunto posterior de trabalhos, Mauro Piva não mais fragmenta as figuras que desenha, embora mantenha sua estrutura modelar e permaneça fazendo, de suas cabeças, apêndices indistintos e inúteis, metáfora possível da redução do poder que a razão exerce sobre os movimentos dos corpos. Os espaços onde as figuras estão imersas, além disso, não são mais apenas sugestões de lugares, mas ambientes com piso e paredes definidos, algumas vezes retratados como se vistos do alto. O vazio do papel, antes tão eloquente e prenhe de significados, é ocupado pela projeção de uma arquitetura inventada pelo artista, a qual é, todavia, mais cenário genérico do que descrição de interiores de casas, nela cabendo até mesmo elementos naturais, como gramado ou árvore. O que era localização ambígua se torna, por meio dessa definição maior, espacialidade reconhecível e virtualmente transitável, ainda quando contrarie ou subverta a representação mimética de lugares habitáveis. Nem por isso há, contudo, reversão do que é central à produção que Mauro Piva aos poucos tece e firma: a encenação visual de tudo o que, nas relações amorosas, se enuncia de modo pouco claro ou sobre o que se cala. Quando sozinhos, seus modelos anônimos parecem indefesos, retraídos, pouco à vontade. Em diversos desenhos, carregam, em paradoxo aparente, uma coroa na cabeça nua ou a mantêm sempre próxima, no que parece ser menos a ostentação de um símbolo de grandeza do que adereço que inutilmente procura compensar a falta que o outro faz. Quando acompanhados, dispensam qualquer substituto material, parecendo buscar, nem sempre de forma fácil, a aproximação e o contato com o par. Nesses trabalhos, fica mais clara a referência – apenas sugerida em seus desenhos iniciais – que o artista faz ao pintor italiano Giorgio De Chirico (1888-1978), cujas paisagens urbanas desoladas descrevem um espaço abstrato imerso em um tempo impreciso, o qual por vezes habita com manequins afins aos modelos desenhados por Mauro Piva, portadores genéricos do que pode haver de específico em mulheres e homens.

Um terceiro agrupamento de desenhos testemunha a aproximação progressiva do artista com o espaço concreto de convívio conjugal. Mobília e objetos são introduzidos nas imagens criadas, e as superfícies de paredes e piso replicam padrões e texturas encontráveis em moradas de fato. Mas a despeito dos ambientes descritos serem mais detalhados – lembrando a aparência que possuem em uma casa –, a sugestão de irrealidade não é banida totalmente dos trabalhos, manifestando-se, com frequência, em uma arquitetura disfuncional. As vistas aéreas, antes eventuais, estão presentes em muitos desses desenhos, assemelhando-os a plantas arquitetônicas baixas onde episódios diversos são vividos por homens e mulheres que continuam, entretanto, destituídos de singularidade. Dentre os trabalhos que pormenorizam os ambientes imaginados, alguns escapam a essa visada do alto, descrevendo, frontalmente e de fora para dentro, janelas de apartamentos ou casas. De várias delas, homens ou mulheres olham para o exterior, à espera de alguém ou de algo. Através de outras, é possível ao observador vislumbrar, em uma indução perversa da espreita, encontros domésticos. A especificação maior dos cômodos onde as figuras se encontram, se tocam e se afastam – ou mesmo sua contiguidade – não concede aos desenhos, porém, uma potência de narração maior. As cenas permanecem fracionadas, como se cada uma condensasse uma situação exemplar de relações entre casais. Reunidos, todos esses desenhos – assim como os das séries que os precedem – formam um inventário extenso de gestos íntimos e de falas implícitas de amantes, pouco importa suas idades ou, a despeito da polaridade masculino/feminino neles presente, sua orientação sexual. Inventário que só transcende o caráter de recordação particular e ganha sentido público à medida que se reconhecem, nos trabalhos, situações também por outros experimentadas.

 

É defensável, portanto, entender os desenhos de Mauro Piva como paráfrases visuais daquilo que Roland Barthes anotou, em livro homônimo, como fragmentos de um discurso amoroso.1 Para o pensador francês, a enunciação de tal discurso por meio da linguagem é sempre partida (feita de “cacos”, conforme definiu) e necessariamente incompleta, posto que depende de circunstâncias aleatórias, insignificantes e dispersas, sendo menos uma retórica do que uma coreografia que é a todo instante recriada. Por não ser possível encadear cada um desses fragmentos em uma estrutura de conhecimento coerente e estável – o que implicaria a construção de um discurso apaziguante sobre o amor –, ele constrói um argumento literário em que expõe, a partir de repertório formado pelas leituras que fez, pelo convívio com amigos e pela própria cultura afetiva, o que o sujeito que ama vive e, por seus atos, fala. Em forma de verbetes, Roland Barthes sumariza e sugere – de modo assemelhado ao que Mauro Piva faz por meio de seus desenhos e de suas lembranças neles gravadas – situações em que emergem os sentidos de angústia, carinho, ciúme, conivência, culpa, dependência, encontro, espera, festa, lembrança, magia, mutismo, plenitude, sedução, suicídio, verdade, entre muitas outras construções ambíguas da linguagem. Algumas são simples, outras mais complexas, não havendo, entretanto, hierarquia entre elas. Feitos de palavras ou de imagens, esses glossários amorosos documentam experiências comuns a muitos e, simultaneamente, ativam a memória sensível de quem os lê ou observa.

 

Uma vez plenamente constituído um raciocínio visual ancorado na sintaxe do desenho, o artista passa, a partir de 2004, a traduzi-lo em termos da pintura sobre tela. Essa operação de expansão dos meios e de simultânea manutenção do assunto envolve adições de sentidos ao que faz e, também, o estabelecimento de soluções construtivas diversas das que até então empregava. Há, inicialmente, uma mudança na escala de feitura dos trabalhos: em vez de cenas em miniatura, Mauro Piva adota o próprio corpo como modelo e medida das figuras que pinta, embora a ausência de faces dilua a identidade das imagens e as transforme, tal como ocorre nos desenhos, em meros arquétipos. Como os suportes não são aumentados na mesma proporção que o objeto da pintura, os trabalhos cessam, porém, de descrever cenas em interiores domésticos, sejam eles existentes ou inventados. Em vez da paisagem familiar, passam a reportar-se ao campo do retrato, ainda que nem sempre privilegiem a exibição dos rostos vazios das figuras, deslocando sua atenção para a apresentação exclusiva e seccionada de outras partes do corpo (torso, pernas), destacadas contra um fundo onde não há coisa alguma. A despeito de ser a aproximação virtual da imagem pintada que faz com que segmentos das figuras deixem de ser descritos – alijados que são dos perímetros limitados das telas –, os resultados desse procedimento atam esses trabalhos aos primeiros grupos de desenhos que o artista exibiu, os quais traziam figuras propositadamente distantes do olhar e inacabadas. Valendo-se de procedimentos de construção  distintos,  pinturas  e  desenhos  mostram  mulheres e homens inconclusos, metáfora visual que, no contexto de sua obra, pode sugerir incompletude no plano da afeição amorosa. A importância que os fundos vazios – negros ou brancos – possuem na composição espacial das pinturas – e, consequentemente, na tessitura de significados de introspecção e de abandono das figuras pintadas – reforça a ideia do quanto elas são devedoras daqueles trabalhos iniciais.

 

A substituição da rigidez e opacidade dos desenhos feitos com aquarela, nanquim e grafite, pela maleabilidade e brilho próprios da tinta a óleo usada, permite ainda que Mauro Piva reafirme, por meio de soluções canônicas de definição de valores cromáticos e de construção de uma modelagem ilusória, o realismo que a escala humana adotada nas pinturas sugere. Destituídas da melancolia e do clima onírico que a dimensão intimista e a materialidade rala dos desenhos embutem, suas pinturas possuem uma fidedignidade descritiva que as aproxima da assertividade fotográfica. A relação entre o observador e os trabalhos é, por isso, também alterada, movendo-se do escrutínio lento e apartado ao qual convida o desenho para o confronto imediato e próximo com a imagem que a pintura alargada expõe. Em termos de uma genealogia pictórica, tanto a arbitrariedade com que enquadra imagens e apresenta um corpo em partes, como a exata definição com que constrói figuras e as roupas que as vestem aparentam ser referências formais a uma tradição holandesa de pintura – da qual Rembrandt (1606-1669) e Jan Vermeer (1632-1675) são integrantes destacados – que enfatiza a fragmentação das superfícies pintadas, prezando, ao mesmo tempo, a legibilidade do que nelas se representa. A exibição de rostos em dimensão natural sem traços quaisquer de individuação, ou de figuras quebradas por não caberem inteiras nas dimensões adotadas do suporte, contradiz, entretanto, a aproximação do mimético que a pintura do artista supostamente promove, causando mais incômodo ao olhar do que provocando identificação com o que é mostrado. De fato, é menos pela minúcia de relatos truncados do que pela precisão de seus sentidos que a adesão ao real das imagens pintadas opera. Mais eróticas que líricas, mais ácidas que humoradas, mais tensas que calmas, as pinturas de Mauro Piva são desdobramentos coerentes de uma produção que tem mostrado o quão extenso e acidentado é o território que o desejo ocupa na vida ordinária. Obliquamente avizinhadas dos desenhos feitos no início de sua trajetória, essas pinturas adicionam, ao inventário de situações afetivas que o artista anota e visualmente descreve, aquelas que só por meio da pintura podem ser registradas.

 

 

1 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ADORAÇÃO

ADORAÇÃO

Nelson Leirner

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Logo no início do romance O jogo da amarelinha, seu autor, Julio Cortázar, faz uma advertência aos leitores: o que eles têm nas mãos não é um livro apenas, mas muitos. Para provar seu in- tento criativo, sugere, ele mesmo, duas possibilidades de leitura. A primeira seria lê-lo da maneira corrente até o capítulo 56 e prescindir dos 99 restantes, sem prejuízo da construção de um sentido para o que havia escrito. A segunda forma de ler o livro seria iniciá-lo já no capítulo 73, daí pular para o 1, o 2, o 116 etc., seguindo uma ordem indicada ao fim de cada um dos 155 capítulos. Há ainda, contudo, o desejo implícito de que o próprio leitor “crie” outros livros, articulando os capítulos de modos distintos ou suprimindo parte deles, alterando, com isso, o significado dos acontecimentos narrados e a reação dos personagens a essas novas situações.1

 

A extensa obra de Nelson Leirner também não é somente uma, mas muitas. Há nela sentidos diversos que se sobrepõem ou se apartam no tempo. Sentidos que são postos à luz ou mantidos em sigilo a depender de quais trabalhos são dados a ser vistos e de que maneira são articulados entre si pelo artista. Ao longo dos anos, alguns desses significados foram mostrados em exposições amplas e discutidos em publicações de caráter antológico ou retrospectivo. Em outras ocasiões, apenas fragmentos de sua obra foram exibidos, fazendo alusões fortes, contudo, aos sentidos possíveis que o conjunto de seus trabalhos possui.2 Este texto não pretende, portanto, ser a súmula de uma obra que se move a todo instante e que com inteligência escapa de reducionismos. Tal qual faria o leitor ideal de O jogo da amarelinha, que ao articular capítulos que reconstroem a disposição linear dos episódios do livro desvela nele mais um sentido, busca-se aqui pôr em evidência somente um dos significados que pulsam na trajetória do artista. Se a adoção dessa estratégia implica saltos no tempo e a exclusão de parte de uma produção extensa, implica igualmente justapor trabalhos antes pensados como distantes e criar a possibilidade de (re)ver a sua obra a partir de uma posição que, sem aspirar a uma originalidade impossível, se julga amorosa e se quer precisa.

 

É do trabalho mais antigo entre os que são a seguir comentados que se toma emprestada parte do título para dar a esse ensaio um nome; é justo, pois, que dessa eleição se trate a princípio. Adoração (altar para Roberto Carlos), realizado em 1966, é trabalho- chave no percurso de Nelson Leirner, pois condensa experimentos levados a cabo nos anos anteriores e enuncia, com clareza, o campo de interesses sobre o qual o artista iria desdobrar a sua obra ao longo das décadas seguintes. A instalação é composta por uma estrutura cilíndrica de tecido carmim que abriga, em seu interior e em disposição própria ao culto, um retrato feito de tinta e luz neon do então líder da “Jovem Guarda”; emoldurada por várias imagens de santos e santas – todas menores que a do cantor e postas em quase penumbra –, a imagem de Roberto Carlos é apresentada de forma ambígua, evocação de alguém próximo e, contudo, ausente. À entrada do “altar”, uma roleta sugere, de modo inequívoco, que custa algo ingressar no espaço de veneração ao ídolo.

 

Por aproximar, de maneira proposital e ostensiva, instâncias simbólicas distantes, o trabalho ecoa e reitera a vontade de diluir fronteiras entre formas diferentes de expressão, movimento já anunciado nas séries de apropriações e de pinturas híbridas feitas desde o final da década de 1950 e confirmado nos objetos expostos em mostra ocorrida um ano antes.3 A instalação é também comentário evidente, porém, sobre a expansão acelerada da cultura de massas no Brasil e a consequente subversão de hierarquias assentadas há tempo: em lugar do ícone religioso, é o mito profano que se torna objeto de adoração; ao invés de ser espaço para acolhimento do espírito, o “altar” é feito em palco para idolatrar um expoente das transformações estéticas correntes.4 Não há nenhum elogio ou sequer condescendência, entretanto, no reconhecimento do espaço proeminente que a indústria cultural passa a ocupar no cotidiano urbano do país. A homenagem suposta ao ídolo popular fica no limite exato que a separa da zombaria, da sugestão do ridículo que é cultuar um artista como um santo. É o anúncio claro dessa ambivalência que faz de Adoração (altar para Roberto Carlos) trabalho exemplar sobre o que, daí por diante, seria operação recorrente na obra do artista: sua disposição para “desclassificar” as coisas do mundo, baralhando os valores (morais, estéticos, patrimoniais) atribuídos a elas e, mesmo sem torná-las indistintas, promover a sua desordem taxonômica.5

 

 

A vontade de expor ao público as estratégias ambíguas que presidem as esferas de consagração mundana levou cedo Nelson Leirner – filho de artista e habituado aos mecanismos institucionais de construção de juízos críticos – a debruçar-se sobre o próprio meio das artes como o objeto privilegiado de sua investigação.6 Selecionado, em 1967, para integrar o IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, o artista (então já conhecido entre os pares e críticos) interpelou publicamente os membros do júri acerca dos critérios que os haviam levado a aceitar, como trabalhos artísticos, os dois objetos que houvera inscrito. O motivo dessa inusitada inquirição foi certamente o caráter igualmente incomum desses trabalhos, nomeados conjuntamente Matéria e Forma: um deles era um porco empalhado posto dentro de um engradado de madeira que trazia, atado ao pescoço, um pernil defumado; já o outro era um tronco de árvore vazado no forma- to exato de uma cadeira que, pendurada ao cepo, fazia também parte do trabalho. A essa inesperada interpelação, parte dos crí- ticos que compunham o júri se manifestou com desdém (Mário Barata), ironia (Frederico Morais) e com alguma curiosidade (Mário Pedrosa), embora tenham todos reafirmado, com graus variados de convicção, a pertinência de atribuir valor artístico aos objetos de Nelson Leirner. Os dois outros jurados (Walter Zanini e Clarival do Prado Valadares) não responderam publicamente à provocação do artista, em uma admissão implícita de que não foi unânime a decisão do júri. Houve ainda aqueles, contudo, que, acompanhando a discussão pelos jornais, manifestaram-se contrários à plácida aceitação desses trabalhos em um evento destinado à exibição de arte.

 

Essa situação imediatamente remete, embora de modo reverso, à recusa do trabalho enviado por Marcel Duchamp – sob o pseudônimo de R. Mutt – à mostra da Society of Independent Artists, ocorrida em Nova Iorque cinquenta anos antes do salão de Brasília. Consistindo tão somente de um urinol de louça igual a tantos outros exceto pela assinatura de um autoproclamado artista, Fountain (1917) foi excluído pela comissão organizadora de um evento que se propunha a exibir, em  ordem  alfabética, todos os que nele se houvessem inscrito. A esse ato de censura, seguiu-se a revelação do real autor do trabalho rejeitado ( já então amplamente legitimado como artista) e o seu bem-sucedido empenho em inserir o urinol  no  cânone  artístico, desqualificando  a sua exclusão arbitrária da mostra e constrangendo os organizadores que violaram regras que eles próprios haviam  definido para justificar sua atitude.7

 

Apesar de suas diferenças, tanto no gesto de Nelson Leirner quanto no de Marcel Duchamp há o desejo comum de pôr à vista o caráter negociado das atribuições de valor artístico, dissipando a ilusão de que há critérios objetivos e permanentes para o reconhecimento, em alguns artefatos, de uma ansiada natureza estética. Ao questionarem, respectivamente, a aceitação e a recusa dos trabalhos que haviam enviado a salões de arte, ambos criaram situações que demonstram que o poder de consagrar não reside apenas na autoridade que o artista se confere por meio do ato criativo; e que tampouco se funda exclusivamente nas ações e escolhas de críticos, de marchands e do público. Tornam claro que é a própria disputa pelo monopólio daquele poder – travada entre os vários participantes do campo artístico – que constitui, ao mesmo tempo em que a ele se conforma, um conjunto de mecanismos de interação social (exposições, salões de arte, publicações) por meio do qual emerge o consenso – sempre provisório e sempre aspirando à perenidade – em torno da validade de critérios de consagração. O fato de Fountain haver sido recusado na mostra da Society of Independent Artists demonstra, portanto, tão somente sua inadequação às convenções que então definiam os limites do que, naquele lugar e tempo, era convencionalmente aceito como trabalho artístico. Já a inclusão do porco e do cepo como objetos de arte no salão de Brasília seria a prova de que a rejeição ao urinol do artista francês e sua posterior legitimação como um dos trabalhos fundadores da arte moderna haviam sido absorvidas e transformadas em jurisprudência por críticos contemporâneos no Brasil.

 

Como uma maneira de prestar tributo à ação desmistificadora de Marcel Duchamp, Nelson Leirner dedica-lhe um trabalho – Paramutt (2001) – em que alinha, postos sobre a parede, dez livros idênticos que trazem na capa uma reprodução de Fountain. Aos canos dos urinóis de louça impressos no papel, apõe torneiras de metal e, ligadas a elas, mangueiras plásticas que descem até o chão e se enroscam umas às demais. Possível metáfora visual dos fluxos criativos fundados na obra de Marcel Duchamp e de seus múltiplos entrelaçamentos na contemporaneidade, a estrutura formal de Paramutt evoca ainda um objeto feito para a adoração e o culto. Há nessa reverência excessiva, entretanto, assim como havia no altar para Roberto Carlos construído pelo artista anos antes, o senso agudo da ambivalência de sentidos, do saber ser necessário pôr a própria contribuição de Marcel Duchamp sob o signo da provisoriedade do valor que lhe é atribuído.

 

Quanto a O porco, ele não mais carrega hoje o presunto amarrado ao pescoço – desaparecido ou comido logo após seu ingresso no salão de Brasília –, fazendo por isso pouco sentido continuar associando-o ao nome genérico Matéria e Forma, dividido à época com o trabalho, já destruído, do tronco. Permanece, porém, como testemunha eloquente do que Nelson Leirner batizou de Happening da crítica, desvelamento do opaco campo de forças onde alguns artefatos são distinguidos de outros tantos e cultuados como objetos artísticos. Para fazer justiça plena à sua capacidade dessacralizadora, é igualmente necessário, contudo, reconhecer que, ironicamente, o julgamento de O porco não acabou ainda. Ao relembrar, com sua própria presença, o fato de que nada há nele de natural que lhe garanta o reconhecimento perene como objeto de arte, a legitimidade uma vez conquistada no meio artístico pode a qualquer instante ser contestada e posta em disputa.

 

A vocalização dos variados juízos de valor que, em embate constante, consagram ou não os resultados da invenção individual como pertencentes ao campo da arte foi novamente ativada pelo artista – embora não fosse essa a sua intenção inicial – por meio dos Trabalhos feitos em cadeira de balanço assistindo televisão, realizados em 1997. Sobre fotografias feitas pela neozelandeza Anne Geddes – nas quais bebês desnudos aparecem em meio a rosas, repolhos, cactos, melancias, cogumelos e mais outras flores, legumes e frutos –, Nelson Leirner desenha caricatos órgãos genitais adultos, tornando claro o que para ele está já sugerido nessas imagens largamente comercializadas  como  ilustrações de cartões e calendários: o uso dessas crianças para saciar o desejo pedófilo de alguns, a despeito do que pretenda com seu trabalho a fotógrafa. Expostos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1998, os Trabalhos foram logo censurados por juiz daquela cidade e retirados da mostra da qual faziam parte, sob a acusação de estarem expondo as imagens dos bebês em um inadequado e ilegal contexto de erotismo e sexualidade.8 A essa medida, seguiu-se uma longa e instrutiva disputa, na imprensa e na justiça, em que artistas, advogados, diretores de museus e religiosos pleitearam, cada qual de um ponto de vista distinto, o direito de estabelecer valores (não só estéticos, mas também éticos) sobre aquilo que propunha o artista como resultado de seu ofício. Independentemente de seu desfecho – os desenhos permaneceram apreendidos e só alguns meses depois mostrados (sem problemas, dessa vez) em São Paulo –, o episódio pode ser retrospectivamente tratado como um outro happening promovido (inadvertidamente) por Nelson Leirner, embora desta feita causando a diluição das fronteiras entre o campo da crítica de arte e o espaço mais amplo de formação de valores morais.

 

 

A investigação que Nelson Leirner faz das “regras da arte” e dos movimentos dos participantes do que para ele é jogo arriscado tem desdobramentos vários em sua obra. Um dos mais célebres é a série Homenagem a Fontana (1967), alusão à reconhecidamente importante  produção  do  artista  ítalo-argentino  Lucio  Fontana. O objeto específico da mira irônica de Nelson Leirner é aqui o conjunto dos trabalhos nomeados como conceitos espaciais (concetti spaziali), tentativa de pôr em relevo o ato supostamente supremo do artista. Os rasgos (squarci) de Lucio Fontana – uma das séries mais conhecidas dentre os conceitos – são o resultado de uma dupla operação construtiva. Em um primeiro momento, a preparação cuidadosa da tela monocromática como superfície ideal da pintura e plano da representação simbólica do mundo: local para onde converge, em potência, toda a tradição da arte do Ocidente. No instante seguinte, o corte decidido e preciso sobre a mesma tela, gesto de vontade que viola e rompe o espaço ilusório da pintura e que pretende reafirmar, de modo claro, a agência íntegra do artista.9 Para prestar a sua “homenagem”, Nelson Leirner construiu, com tecidos coloridos e zíperes, “te- las” em que se pode repetir, quantas vezes for assim desejado, uma ação que se queria única. Parodia, dessa forma, o rompi- mento singular e definitivo da superfície da pintura, fazendo do gesto pretensamente original de Lucio Fontana um movimento anônimo e reversível. Indo mais além no seu intento de criticar a unicidade do ato do artista, Nelson Leirner transformou essa sua série de trabalhos em objetos múltiplos (os primeiros produzidos no Brasil), os quais foram à época vendidos ao preço de seu custo. Igualou-os, assim, a um produto de manufatura têxtil – “desclassificando-os”, portanto – e facultou a qualquer um a construção de trabalhos assemelhados ou mesmo idênticos.

Entre outros trabalhos que também reprocessam e desvelam intentos artísticos passados, há alguns que, por seu caráter sintético, impõem-se como exemplos. Um deles é a instalação La Gioconda (1999), formada pela apropriação e ajuntamento de dezenas de reproduções do conhecido trabalho de Leonardo da Vinci. São imagens impressas em pôsteres, cartões postais, capas de catálogos, revistas e livros; imagens que ilustram ainda gravatas, cartas de baralho, quebra-cabeças e várias outras mercadorias, atestando a presença ostensiva e ao mesmo tempo difusa da Mona Lisa (1502) nos circuitos simbólico e mercantil do mundo contemporâneo. Na profusão de cópias que compõem o trabalho, fica evidente o quanto uma imagem que encapsulava um olhar imerso em um contexto preciso perde, por excessiva exposição, o poder de preservar, em si mesma, o caráter único de sua gênese. Agrupadas e dispostas sobre a parede, as reproduções parecem afirmar que não há, de fato, sequer necessidade de ver obra de arte tão conhecida, senão como maneira de verificar a adequação do original em relação às tantas cópias que dele existem, em uma inversão perversa entre o que é singular e o que é somente repetição em série infinda. Como a dar ênfase ao processo de dessacralização da imagem da Mona Lisa, algumas das reproduções usadas são justapostas a sacolas de lojas de museus, outras são quase desfiguradas por interferências diversas e uma está sob a ameaça de ser oculta pelo descerrar de uma cortina. Não há gratuidade, entretanto, nessas bem-humoradas intervenções realizadas por Nelson Leirner, assim como não é fortuita a escolha da imagem da Mona Lisa como suporte para a sua feitura: processo e imagem usados fazem, em verdade, alusões claras a dois trabalhos de Marcel Duchamp construídos a partir de reproduções da mesma pintura.

 

Apropriando-se, em 1919, de uma reprodução do trabalho de Leonardo da Vinci, Marcel Duchamp desenhou, sobre a imagem da Mona Lisa, um bigode e uma barbicha, assinando-a como um trabalho de sua autoria (L.H.O.O.Q.). Transformou, por meio desse gesto, uma cópia banal de uma pintura do Renascimento – período de valoração extrema das habilidades artesanais – em objeto artístico único. Tomando, em 1965, mais outra reprodução da Mona Lisa, desta vez o artista apenas a colou sobre um cartão e lhe apôs um título novo (L.H.O.O.Q., barbeada), atos que fazem a imagem assim (re)apresentada remeter mais ao seu trabalho anterior do que à própria pintura do mestre florentino.10 O trabalho de Nelson Leirner leva adiante, portanto, a disposição, anunciada por Marcel Duchamp, de apropriar-se de uma imagem reproduzida de modo incessante e de apontar, sem nostalgia ou lamento, a diluição do sentido primeiro que animou a sua criação. O exame atento das reproduções utilizadas na instalação La Gioconda revela, contudo, que não há ali cópias somente da Mona Lisa, mas também da apropriação de sua imagem feita em L.H.O.O.Q., trabalho há muito incorporado na historiografia da arte e reproduzido em livros, cartões-postais e revistas. Aproximando as imagens da Mona Lisa e de L.H.O.O.Q. em seu próprio trabalho, Nelson Leirner evidencia o fato de elas serem agora equivalentes, ambas destituídas de seu “valor de culto” e portadoras quase apenas de “valor de exibição”, termos usados por Walter Benjamin para indicar a perda do caráter aurático da obra de arte em virtude de sua continuada reprodução.11 Algumas das intervenções feitas pelo artista em La Gioconda são, além disso, referências diretas ao travestismo presente no trabalho de Marcel Duchamp, operação que celebra o apagamento das classificações redutoras e transmuta, no contexto empregado, a adoração severa por um objeto de arte em envolvimento lúdico com o poder de criação do artista.12

 

Valendo-se de um outro trabalho igualmente conhecido de Leonardo da Vinci – A santa ceia (1495-1498) –, Nelson Leirner investiga, em série extensa, que implicações existem no fato de uma pintura, feita em escala natural e projetada para ocupar a parede do refeitório de um mosteiro, ser reproduzida, com maior ou menor fidelidade e em formatos diversos, em salas de estar e de espera.13 Intervindo, de variadas maneiras, sobre cópias baratas de A santa ceia, o artista indica, como consequência de sua presença excessiva no mundo, o caráter puramente ornamental que a imagem dessa pintura possui hoje, em detrimento do poder de evocar a devoção que detivera um dia. Enquanto o trabalho de Leonardo da Vinci certamente despertava, entre os monges que com ele conviveram, sentimentos de comunhão com a cena pintada, Nelson Leirner sugere que a desmedida reprodução de sua imagem esvaiu aos poucos a sua potência de comunicar alguma coisa que não seja o conforto visual do adorno. Em um dos trabalhos que compõem essa série, o artista desfia, até a sua metade, uma tapeçaria que reproduz A santa ceia, promovendo o desmanche físico e também simbólico da imagem retratada de modo tosco. Em outro trabalho – mais propositivo e quase um resumo do conceito que anima a série toda –, uma diminuta reprodução da cena esculpida em gesso é cercada por uma moldura que em muitas vezes ultrapassa o seu tamanho, abrigando, a partir do centro, uma sucessão de passe-partouts feitos de materiais variados: veludo negro, espelhos, asas azuis de borboletas, veludo negro de novo, mais espelhos e, finalmente, antes  da  madeira  dourada  que  define  as  bordas da peça inteira, um largo passe-partout coberto por decalques de coloridos motivos florais. Fazendo da superfície dessa desmesurada moldura quase um mostruário de possibilidades decorativas – todas próximas ao convencionalmente catalogado como kitsch –, Nelson Leirner chama a atenção, sem contudo elaborar juízo de valor correspondente, para a frágil distinção entre a imagem criada por Leonardo da Vinci e os elementos de enfeite que a envolvem a todo instante.

 

É de anulação gradual de hierarquias valorativas que trata também a série Construtivismo rural, iniciada em 1999 com a apropriação de tapetes populares feitos de couro de boi que eram então pendurados pelo artista à parede como se fossem pinturas. Ao usar somente tapetes que, pela junção de pedaços diferentes de pele, ostentassem padrões geométricos definidos, Nelson Leirner parecia querer tornar evidente a perturbadora proximidade entre essas figuras de ornamento e o repertório erudito de formas pertencentes à tradição de arte construtiva. Havia ademais, nessas primeiras construções rurais, várias referências à sua própria obra, como se reiterasse, de modo novo, questões que há tempo o mobilizavam. Tal como na série Homenagem a Fontana, aqui também o artista ironizava a racionalidade que preside a construção do objeto artístico moderno e as supostas autonomia e pureza das superfícies pintadas. Tornava de novo evidente, portanto – como já o fizera por meio do porco empalhado que carregava um pernil preso ao pescoço –, que, ao invés da assepsia utópica pretendida pela tradição hegemônica da arte moderna, a produção de objetos simbólicos faz-se sempre acompanhar por uma tensão entre a “matéria” de que são feitos e a “forma” com que são apresentados.14

 

No desenvolvimento imediato que dá a essa série, o artista inverte, todavia, o método que havia empregado: passa a apropriar- se de imagens já pertencentes ao cânone do construtivismo para só então as (re)produzir – com maior ou menor aderência às suas formas e dimensões de origem – por meio do corte e da costura das peles dos animais. Aproxima, de modo inverso, mas com sarcasmo igual ao presente nas apropriações iniciais, o circuito da arte e o meio do artesanato. O foco crítico desses trabalhos é ainda mais definido, entretanto, que o daqueles que inauguraram a série Construtivismo rural, posto que várias das imagens apropriadas são de pinturas dos movimentos concreto e neoconcreto brasileiros, ambos legitimados – dentro e fora do Brasil – como os fundadores de vertentes que se pretendem as mais fecundas da arte contemporânea do país.15 Ao reproduzir essas imagens usando retalhos de couros de boi, Nelson Leirner subverte a sua serventia corrente (divulgar e celebrar aqueles movimentos) e torna-as cúmplices do seu intento de flexibilizar a historiografia da arte nacional: expondo a série Construtivismo rural em reconhecidos espaços de legitimação de valor artístico (seja na Bienal de Veneza ou no Museu de Arte Moderna de São Paulo), Nelson Leirner transpõe imagens pertencentes à tradição construtiva  brasileira para o campo de jogos semânticos que são em tudo estranhos a ela; sem pretender questionar a excelência dessa tradição, sugere não ser a mesma, contudo, a única a enraizar e a nutrir a diversa produção artística do Brasil.

 

 

A ambivalência com que Nelson Leirner exibe, por meio de seus trabalhos, os mecanismos de formação e consagração de juízos é também encontrada nas várias situações em que busca desmanchar as fronteiras que apartam a arte dos espaços da vida comum. Em uma delas, o artista buscou partilhar com o público a experiência vivenciada durante um ano com o Grupo Rex, coletivo de artistas integrado por ele e por Geraldo de Barros, Wesley Duke Lee, Carlos Fajardo, José Rezende e Frederico Nasser. A pretexto do encerramento definitivo das atividades da Rex Gallery & Sons – o local de onde o grupo enunciava, em mostras, textos e debates, uma posição crítica à institucionalização da arte –, Nelson Leirner organizou, em 1967, uma inusitada exposição de seus trabalhos. Conforme amplamente divulgado à época, aqueles que fossem à abertura da mostra poderiam levar para casa, gratuitamente, os trabalhos pelos quais se interessassem, desde que os obstáculos físicos à sua remoção que o artista havia criado – tais como quebrar as correntes que amarravam alguns deles em bases ou atravessar um tanque de água que separava o público de outros trabalhos – fossem superados. Em vez do envolvimento lúdico e desinteressado com a escolha e a retirada dos objetos que o artista por certo havia desejado, a multidão que compareceu à inauguração da mostra arrancou, em poucos instantes e de forma violenta, todos os trabalhos da sala. Se é possível argumentar que o acontecido promoveu a dessacralização do artefato artístico e envolveu criticamente o público com o espaço institucional da arte, é igualmente lícito supor que o seu comportamento durante a efêmera Exposição não-exposição tenha sido motivado somente pelo desejo de apropriar-se de um objeto ao qual, por estar exposto em um galeria de arte, atribui-se um valor também patrimonial.

 

Uma outra situação criada por Nelson Leirner com o intuito de desmistificar o sistema de exibição de arte ocorreu, ainda em 1967, no cruzamento de duas movimentadas ruas de São Paulo. Exibindo, junto com o artista Flávio Motta, bandeiras que havia produzido com a ilustração de temas pertinentes a dois dos usos correntes dados àquele suporte (adoração de santos e de atletas), Nelson Leirner não atraiu, como é razoável arguir que pretendeu, o interesse ou sequer o estranhamento do público diante do deslocamento de objetos artísticos do interior da galeria para o meio da rua. Chamou a atenção, porém, de fiscais da Prefeitura, que confundiram Flávio Motta e ele com vendedores sem licença e recolheram os seus trabalhos aos depósitos do poder municipal. Com resultados aparentemente opostos aos alcançados com a Exposição não-exposição, as Bandeiras na praça – nome atribuído a essa ação pelo artista – reiteram, em verdade, a quase impossibilidade de um objeto ou ato escapar à necessidade de um reconhecimento institucional (seja o dado pelo museu ou mesmo por uma galeria que se negava a assumir o poder detido, como a Rex Gallery & Sons) para ser nomeado e consagrado como arte.

 

A imprecisão do juízo diante de algo que não se classifica claramente como arte ou não arte fez com que, ainda outra vez, Nelson Leirner tivesse frustradas suas expectativas de estimular o envolvimento do público com o seu trabalho. Convidado, em 1970, a fazer uma intervenção na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, o artista ergueu, no vasto saguão de entrada da instituição, duas grandes estruturas metálicas preenchidas e cobertas de plástico preto. A partir delas, distendeu longas porções do mesmo material – unidas de modo a formarem tubos fechados e moles – direcionadas às salas e demais dependências do prédio. De acordo com seu intento, esse material seria idealmente inflado, amarrado e manuseado de várias maneiras pelos frequentadores da faculdade para transformar, mesmo que brevemente, o local onde despendiam parte significativa de seu tempo. Em vez, contudo, do consumo simbólico do plástico assim disposto, alunos e funcionários vandalizaram, tão logo se encontraram diante do trabalho de Nelson Leirner, toda a estrutura montada, em um afã de apropriar-se daquele material como matéria-prima para a confecção de objetos utilitários diversos. Como não reconheceram inequivocamente no que viam um valor estético, atribuíram-lhe valores de uso e foi dessa forma que consumiram o trabalho (Plásticos).

O comportamento apático ou agressivo do público diante das generosas propostas de partilhar a construção de sentidos para seus trabalhos fez Nelson Leirner recuar diante da natureza conflituosa dos mecanismos de apreciação crítica de tudo o que não é já consagrado, forçando-o a reelaborar sua estratégia de tornar o espectador um agente ativo no circuito de arte. É nesse contexto que, em 1971, publica, em jornal de grande circulação, instruções de como fazer “obras de arte originais” (Múltiplos ao cubo) a partir da junção serial  de  artefatos  industrializados  (lâmpadas,  tubos de ensaios, bolas de pingue-pongue etc.). Estabelece, de modo irônico e didático, os meios para apaziguar a tensão entre sua postura crítica em relação à unicidade autoral do trabalho artístico e o desejo consumista que faz o público querer apropriar-se privadamente do objeto de arte.

 

O empenho em desfazer a aura que envolve o gesto criador do artista resultaria ainda no Projeto aula, ação e mostra realizadas em 1989. Sob a sua orientação técnica, um grupo de pessoas de formação variada (psicólogo, engenheiro, economista, arquiteto, dentista, advogado, outros artistas) fez, com canetas esferográficas de várias cores, desenhos florais copiados de livro de ilustrações. Revelando, desde logo e publicamente, o processo partilhado de construção desse seu trabalho, Nelson Leirner exibiu o conjunto dos desenhos – todos bastante assemelhados – sem qualquer identificação de autoria individual, tornando-os emblema e manifesto de sua vontade de construção anônima e coletiva da arte. E é por ter promovido o amolecimento das fronteiras que convencional- mente separam o campo restrito de consagração artística e  o espaço amplo onde se desenrola a vida ordinária que é possível relacionar o Projeto aula à série de trabalhos genericamente intitulados pelo artista de Você faz parte, nos quais espelhos não só refletem a imagem do público, mas o integram, simbolicamente, ao objeto de arte.16  No berro inquiridor e impaciente que dirige ao espectador em frase impressa sobre as dezenas de “ jogos americanos” que compõem a instalação Você tem fome de quê? (2001), Nelson Leirner parece, todavia, decidido a manter o ceticismo quanto à vontade efetiva do público de se reconhecer como partícipe do jogo da arte.

 

Já no trabalho Museu ao ar livre dentro de um museu (2002), Nelson Leirner exercita, em escala grande e precisa, uma operação recorrente em sua obra, a qual denomina de Xeque-mate: lançando olhar atento e generoso às coisas já prontas do mundo vasto que o cerca (brinquedos, artefatos de devoção religiosa, peças de artesanato, cacos de tudo e bricabraque), o artista primeiro escolhe para  si  algumas  dessas  coisas,  promove  entre  elas  inusitados encontros simbólicos e por fim as insere, cuidadosamente dispostas sobre uma prateleira, em lugar socialmente destinado à apreciação e ao culto de objetos de arte. Encurralado diante do deslocamento dos sentidos atribuídos, por convenção e hábito, às coisas comuns e aos espaços institucionais de arte, o olhar acostumado a decodificar classificações estanques é forçado a deter-se com vagar perante esse ruidoso e divertido armazém de significados. Em vez de expandir as fronteiras do museu para a rua, como buscou fazer em ações passadas, Nelson Leirner pretende aqui trazer o mundo todo para o seu interior largo; ao invés de dessacralizar o objeto artístico por retirá-lo do lugar onde é adorado, procura, como já havia feito no Happening da crítica, pôr à mostra os mecanismos que o consagram.

 

 

Embora o meio da arte seja, obviamente, o ambiente onde o artista se move com frequência maior, há outras esferas de construção de valores que não escapam à sua vontade de pô-las pelo avesso ou de corroer-lhes a opacidade. Tomando como paradigma de análise o funcionamento institucional do campo artístico, Nelson Leirner se debruça sobre os mecanismos de consagração nos campos do esporte, da ciência e da economia política. No trabalho Futebol (2001), o artista simula uma partida disputada entre times iguais, ambos formados por pequenos macacos de borracha posicionados no campo de maneira simétrica. A cerrada torcida que os circunda, entretanto, é composta por uma multidão heterogênea de figuras egressas de práticas religiosas ou retiradas do circuito de cultura de massas, promovendo uma mistura de imagens de devoção e objetos de brincar. As marcadas diferenças entre as figuras não implicam, contudo, hierarquia de qualquer ordem. Trata-se, ao contrário, de dar relevo ao “sentido festivo de solidariedade” que envolve praticantes do jogo e aqueles que lhe dão suporte. É curioso, porém, notar a inversão de expectativas que Nelson Leirner promove: em vez de estarem em posição para serem cultuados, os santos, as divindades e os bonecos postam-se, eles mesmos, em posição de adoração ao desenrolar da partida de futebol. Por possuírem atributos e poderes supostos diversos, desse conjunto emana, ademais, um burburinho simbólico que evoca a conflituosa criação de consensos valorativos no mundo do esporte. Em outro conhecido trabalho de Nelson Leirner em torno do jogo – a instalação Esporte é cultura (1975) –, uniformes agigantados de jogadores, juízes e dirigentes de clubes (alguns dos formadores das ideias de valor no futebol) são perfilados de modo hierático, impondo ao espectador uma postura de reverência diante do que se torna quase um altar.

 

Também no campo da ciência, a definição do que é ou não é considerado como procedimento legítimo e válido depende do embate entre os membros da comunidade que o integram. Tal como na arte e no esporte, os limites do que é aceito e valorado pelo campo científico podem ser mudados, fazendo com que se descarte o que era consenso e se permita que um enunciado teórico posto antes à margem se torne elemento central na explicação de um fenômeno. Fazendo uso explícito da hibridação – método próprio da ciência genética –, Nelson Leirner põe à prova, na série Clonagem (1998), o alargamento das fronteiras da ética no campo da manipulação de genes. Promovendo cruzamentos entre artefatos e imagens de espécies distintas, cria objetos que são desvios de toda regra, construções heteróclitas que escapam a normas quaisquer de classificação. Não existe taxonomia que abarque híbridos de galo e tigre ou de tapete de couro de boi e gravata estampada com vacas. São objetos que medem a liberdade de invenção do artista – legitimada ou reduzida à brincadeira em arena ampla de negociação de sentidos – pela licença de criação existente na prática científica.

 

Em conjunto de trabalhos esboçados na década de 1960 e somente executados a partir de 1999 – Projeto care (ajuda) –, Nelson Leirner questiona, por fim, o viés economicista que norteia a for- mação de valores sobre as relações internacionais que envolvem o Brasil. A despeito da intensificação recente do fluxo internacional de serviços e bens causada pelo que se convencionou chamar “globalização”, o artista aponta a persistência de algumas trocas simbólicas por décadas em curso. Em instalação que pertence à série, Nelson Leirner põe, sobre toalha de banho que traz impressa a bandeira de seu país, um carrinho de compras repleto de latas de cerveja e de refrigerante vazias. Pela origem variada e longínqua de seus fabricantes, essas latas sugerem a presença forte do capital externo na economia do Brasil: em tempos passados, como resultado de suposta “ajuda” humanitária (care); em épocas recentes, como fruto de  investimento.  Algumas  delas,  deitadas no fundo do carro, mantêm a forma de fabricação intacta; outras, encimando o monte, estão transmutadas – por corte e dobra – em engenhosos brinquedos de metal. Se no intercâmbio formal de serviços e bens com outros países a balança de pagamentos brasileira pode apresentar déficit ou ganho, há uma outra conta de trocas – indicada pelo artista – em que artesãos fazem (hoje como antes) dos restos de produtos comercializados matéria-prima para a concreção de seus sonhos. Nesta permuta simbólica, a equivalência de valores é impossível e, portanto, desnecessária.

 

 

Se o progressivo desmanche de categorias de catalogação é uma das marcas da trajetória de Nelson Leirner, nenhum trabalho a resume melhor do que um que não possua tamanho, nome ou sentido permanentes. Montado em 1984 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e intitulado então de O grande desfile, esse trabalho consistia do enfileiramento portentoso de algumas centenas de objetos – feitos para a veneração ou o entretenimento – retirados do extenso repertório simbólico que habita o imaginário popular no país. Descendo do segundo ao primeiro piso do museu por meio da escada longa que os une, a procissão de pequenas e grandes imagens impregnava de referências cotidianas diversas a instituição que, por acordo social, detém o poder de separar o que é arte do que é outra coisa qualquer. Desde então e a cada vez que o trabalho é montado, uma arrumação diferente das peças é feita, um nome distinto é a ele dado e objetos novos são incorporados ao grupo de origem. Em 1985, como parte de exposição realizada na Galeria Luisa Strina (São Paulo), o artista batizou esse trabalho de O grande combate, voltando as imagens – agora reunidas em bloco – contra uma parede coberta por pequenos aviões de brinquedo em simulação de batalha. No ano seguinte, foi a vez de montá-lo na Pinacoteca do Estado de São Paulo como O grande enterro, ocasião em que o agrupamento formado passou à condição de cortejo pesaroso e grave. Entre outras aparições urdidas por Nelson Leirner, os objetos foram ainda arranjados de forma circular para celebrar A grande missa no Paço das Artes (São Paulo, 1994) ou dispostos no parapeito das janelas de vidro do Museu de Arte Contemporânea (Niterói, 1998) com as costas voltadas ao público para melhor admirar a Terra à vista. Fortalecido pelo acréscimo de quase 2 mil integrantes, o conjunto de imagens compactamente alinhadas foi protagonista também de A grande parada (Bienal de Veneza, 1999), demonstração do híbrido poderio simbólico da cultura popular e de massas. Embora o agrupamento de objetos em cada uma dessas montagens siga em parte o paradigma da multidão – grande número de indivíduos relativamente coesos em torno de um mesmo fim –, não há traços, nesses conjuntos de imagens tão marcadas, do aniquilamento da heterogeneidade social que a sociedade de consumo engendra.17 Não existe igualmente neles, contudo, a vontade de afirmar identidades fixas de seus componentes. Ao pôr cada um desses objetos em contato com seus dessemelhantes e em contextos sempre distintos, o artista multiplica suas possibilidades de significação e de destinação simbólica, tornando-os, portanto, avessos a rígidas classificações taxonômicas.

Em mais outra montagem desse trabalho – realizada em 2002 no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife) –, Nelson Leirner pela primeira vez agrupou as imagens em dois conjuntos espacialmente separados, ainda que, postos um defronte do outro, pareçam se equivaler no poderio simbólico detido e no princípio de organização a que prestam obediência. Para um e/ ou para o outro ajuntamento de objetos, o artista arregimentou corações-de-jesus, zé pilintras, marinheiros, nossas senhoras, anões de jardim, sacis-pererês, batmans, brancas de neve, cangaceiros, budas, dançarinas, mickeys, muitos e diversos animais, são jorges, índios, aviões, tocadores de pífanos, patos donalds, padres cíceros, carros, pinguins de geladeira, pombas-giras e vários outros partícipes do imaginário popular religioso e profano. No lugar exato em que se tocam e confrontam os grupos, duas imagens de santos trespassadas por balas parecem atrair, com equânime justeza, as atenções dos muitos indivíduos que lhe integram. Síntese das vontades difusas dos agrupamentos, as imagens feridas são Objetos de desejo imaginários, totens e prêmios prometidos pela aniquilação do grupo adversário. Transformados em concorrentes miméticos, cada um dos grupos deseja somente aquilo que seu oponente também quer, movimento especular que se resolve, aos olhos do espectador, pela dissolução progressiva das diferenças simbólicas entre os dois conjuntos de imagens. Ainda que fisicamente separados, eles persistem em criar laços que os unem em torno de uma aproximação de sentidos provisória. E é justo dessa ambiguidade semântica que se tece a potência da obra de Nelson Leirner.

 

 

1 CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

 

2 Para análises abrangentes da obra de Nelson Leirner, ver: FARIAS, Agnaldo. O fim da arte segundo Nelson Leirner. In: Nelson Leirner. São Paulo: Paço das Artes, 1994; e CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner. Arte e não arte. São Paulo: Galeria Brito Cimino/Grupo Takano, 2002.

 

3 Exposição realizada em 1965 na Galeria Atrium, São Paulo, simultaneamente a uma mostra de Geraldo de Barros. Para uma discussão de trabalhos realizados no período anterior ao tratado neste texto, ver CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner. Arte e não arte. São Paulo: Galeria Brito Cimino/Grupo Takano, 2002.

 

4 O ano de realização de Adoração (altar para Roberto Carlos), 1966, é o ano em que o programa “Jovem Guarda”, produzido pela TV Record, de São Paulo, passa a ser retransmitido para várias outras capitais brasileiras. É também o ano em que as comemorações do 23º aniversário de Roberto Carlos atraem 15 mil pessoas ao centro de São Paulo, causando o bloqueio de ruas e a perseguição e destruição dos vidros dos carros que transportavam os “ídolos da juventude”. FARIAS, Patrícia. Música popular e mercado. In: DIAS, Â. M. (Org.). A missão e o grande show. Políticas culturais no Brasil dos anos 60 e depois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

 

5 Sobre o conceito de “desclassificação”, ver BOIS, Ive- Alain. The use value of “formless”. In ; KRAUSS, R. E. Formless. A user’s guide. New York: Zone Books, 1997.

 

6 A mãe do artista, Felicia Leirner (1904-1996), foi escultora; seu pai, o industrial Isai Leirner (1903-1962), integrou a diretoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo e também a diretoria e o conselho da Bienal de São Paulo na década de 1950.

 

7 Para uma discussão detalhada desse episódio e de seus desdobramentos, ver DE DUVE, Thierry. Given the Richard Mutt case. In: ______. Kant after Duchamp. Cambridge: The MIT Press, 1998.

 

8 CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner. Arte e não arte. São Paulo: Galeria Brito Cimino/Grupo Takano, 2002.

 

9 TAZZI, Pier Luigi. Lucio Fontana – trinta anos depois. In: XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998.

 

10 JUDOVITZ, Dalia. Unpacking Duchamp: art in transit. Berkeley: University of California Press, 1995.

 

11 BENJAMIN, Walter. The work of art in the age of mechanical reproduction. In: _. Illuminations. Londres: Fontana Press, 1973.

 

12 A relação entre a obra de Nelson Leirner e o legado de Marcel Duchamp é analisada em RIBEIRO, Maria Izabel Branco. Nelson Leirner. In: Por que Duchamp? São Paulo: Paço das Artes/Itaú Cultural, 1999.

 

13 A Santa Ceia de Leonardo da Vinci cobre uma das paredes do salão originalmente utilizado como refeitório pelos monges do Mosteiro de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

 

14 A aproximação entre a série Construtivismo rural e o trabalho O porco é feita em LAGNADO, Lisette. O combate entre a natureza fetichista da arte e sua historização. In: LEIRNER, N.; ESPÍRITO SANTO, Iran do. Biennale di Venezia – Padiglione Brasile. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1999.

 

15 Os trabalhos Cinzavermelho (c. 1959), de Aluísio Carvão, e Espaço modulado (1958), de Lygia Clark, são duas das apropriações da tradição construtiva brasileira mais evidentes presentes nessa série.

 

16 Entre os vários trabalhos nomeados dessa maneira e possuidores de estrutura formal semelhante, encontram- se um realizado em 1964 (Você faz parte II), outro em 1990 (Você faz parte) e um terceiro realizado em 2000 (Você faz parte… O retorno), demonstrando ser esta uma questão que persiste interessando o artista ao longo de sua carreira.

 

17 FARIAS, Agnaldo. O fim da arte segundo Nelson Leirner. In: Nelson Leirner. São Paulo: Paço das Artes, 1994.

O ATELIÊ COMO ARQUIVO

O ATELIÊ COMO ARQUIVO

Paulo Bruscky

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

A obra de Paulo Bruscky tem já várias décadas de expansão e desdobramentos. Desde o final da década de 1960, ela inaugura, aprofunda, confronta ou se alia a algumas das mais relevantes invenções então feitas no impreciso e poroso campo das artes vi- suais: da poesia concreta ao poema processo, da instalação à arte postal, da arte xerox ao livro de artista, da art door à manipulação da fotografia, da performance ao vídeo, e destes a criações de catalogação difícil. Uma vez quis pintar nuvens, insatisfeito com as limitações que tela e tinta lhe haviam imposto no início de seu trajeto artístico. Em outra, desenhou em papel, com o auxílio técnico adequado, os impulsos nervosos emitidos por seu cérebro, traduzindo pensamentos em riscos. Durante toda a vida, e por força de tantas e diversas incursões no universo do que é experimento, travou contato com muitos outros que partilhavam o desejo de mapear, tal como cartógrafos que percorressem apenas desertos ou labirintos, o lugar incerto que a arte gera e ocupa. Trocou correspondência, impressões e ideias com membros do Fluxus, do Gutai e com artistas de partes as mais distintas do mundo, criando, no seu ateliê do Recife – cidade onde nasceu e vive –, ponto nodal da rede informal e densa que conecta e une criadores que não cabem em classificações comuns.

 

Esse intenso intercâmbio com outros artistas, a necessidade de obter as informações variadas que a sua produção demanda e uma paixão desmedida pela guarda do que lhe parece relevante (para ele ou para outros) fizeram com que Paulo Bruscky gradualmente formasse, no apartamento que lhe serve de local de ofício, um acervo vasto de quase tudo. Por todos os seus cômodos (incluindo banheiro e cozinha), espalham-se estantes, gavetas e caixas. Nelas estão depositados livros (de arte, história ou poesia), catálogos, trabalhos já feitos (de outros ou seus), projetos (concretizados ou não), fotografias, cartas, jornais, discos, fitas, documentos diversos, vídeos, dossiês de artistas e o que mais informe ou registre a sua obra. Embora quase nunca o que faz se materialize como objeto pronto naquele ambiente – seus trabalhos requerem, no mais das vezes, o espaço do convívio amplo para de fato existirem –, tudo o que produz é resultado do contato permanente com esse acervo e também o acresce depois como testemunho da proximidade entre arte e vida. Assim como é para o ateliê que faz confluir o que lhe importa, é dali igualmente que lança, quase nunca com endereçamento certo, o que tem a oferecer ao mundo.

Transformado em imenso arquivo, o seu ateliê desafia, contudo, métodos ordinários de classificação. Nele, tudo se toca e, não raro, fronteiras que apartam técnicas, períodos, autorias e nacionalidades se desmancham ou se confundem. Se a desordem do material recolhido aparenta desleixo, ela é sobretudo índice da impossibilidade (e impropriedade) de organizar – observados os parâmetros de catalogação bibliográfica e artística vigentes – a complexa relação de contaminação e contiguidade ali enxergada por Paulo Bruscky. Tentativas de criar categorias adequadas e abrangentes de ordenação são sempre frustradas pela mobilidade potencialmente infinda, aos olhos do artista, dos sentidos  das coisas ali contidas. Mesmo o descarte supostamente possível é sempre postergado, fazendo com que papéis e objetos diversos se acumulem baralhados sobre o piso – espaço de desclassificação onde as diferenças se anulam –, ali podendo permanecer por anos. Por seu conteúdo abrangente e arrumação instável, o ateliê de Paulo Bruscky espelha (e duplica, portanto) a natureza fluida de sua obra, a qual não se acomoda ou ajusta a lugar simbólico algum, definindo-se como processo e liberta de um único fim.

OLHAR A POEIRA, POR EXEMPLO

OLHAR A POEIRA, POR EXEMPLO

Rivane Neuenschwander

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Olhar a poeira, por exemplo. Não como um todo indiviso, nuvem opaca e indistinta. Mas olhar detidamente cada uma de suas pequenas partículas suspensas no ar (e também o espaço exíguo que separa umas das outras), identificando o que não é notável ao senso apressado e comum. Mais ainda: não somente decompor em partes o que se apreende tantas vezes como inteiro, mas aceder ao fato de que é da percepção do ordinário e do quase impalpável que se engendra, em um processo não consciente de cognição, a percepção do que é relevante e visível.1 É desse impulso de conhecer o mundo escapando de um juízo totalizador e amnésico de suas porções constitutivas que, ao longo de uma década de produção intensa, Rivane Neuenschwander compôs uma obra impermeável, ela mesma, a definições abrangentes.

 

Valendo-se de modos de expressão variados (instalações, filmes, objetos), a artista torna manifesto o que, na vida corrente, é só rumor, pedaço ou entrevisto. Inexiste nesse intento, contudo, elogio algum ao que é frágil ou contingente, posto que a sua obra não se ocupa de criar refúgio para o desconforto que se possa sentir no mundo. Há, ao contrário, o desejo de dar a potência devida ao murmúrio incessante das pequenas coisas que o formam e habitam, sejam elas uma palavra, um gesto, uma imagem ou um momento. A sutileza de seus trabalhos é da ordem, portanto, daquela encontrada na prosa de Clarice Lispector ou no cinema de Eric Rohmer: afirma que o importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir.

 

 

O importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir. A experiência moderna do tempo, entretanto, é de síntese, não de particularização. Não mais se marca a duração dos acontecimentos – sejam eles individuais, sociais ou físicos – em função do que lhes é específico, tal como são o sono, as colheitas ou as marés. Através de gradual aprendizado e da construção de símbolos reguladores numéricos (calendários, relógios), a consciência social do tempo foi-se desgarrando do que era singular para se transformar em meio sintético de orientação no fluxo de eventos em que se tece a vida.2  Em trabalhos diversos, Rivane Neuenschwander  reflete sobre esse esquecimento compartilhado do que é único, demonstrando a natureza idealizada da marcação habitual do tempo e afirmando a peculiaridade de sua origem.

 

Em Deadline calendar (2002), a artista recorta, das embalagens de vários alimentos, as pequenas porções onde estão impressas, geralmente em tipos apagados ou miúdos, as datas que assinalam a validade dos produtos – momentos em que estes perdem o estatuto de bens apropriados ao consumo e se convertem em lixo – e as agrupa de modo a construir um calendário para doze meses seguidos. Por meio desse procedimento simples, relaciona cada um dos 365 dias do ano à lembrança do fim da vida útil de um alimento distinto, contrapondo-se, assim, à noção do tempo como um regulador social apartado das coisas mundanas. Desvela a natureza convencional da contagem do tempo e exibe os índices da transitoriedade orgânica como prova de que não são os dias, afinal, que “passam”; são, ao contrário, inúmeros e rotineiros ciclos de vida e de morte (curtos ou longos) que lhes dão conteúdo e significado temporal.

Quase como um memorial para o decaimento inevitável e gradativo de toda matéria do mundo – processo contra o qual se pode medir a extensão cronológica dos demais incidentes da vida –, Rivane Neuenschwander filma, em outro trabalho, o vaguear de uma bolha que, silenciosa e frágil, flutua ritmada por entre paisagens vazias e cinzas, tal como um metrônomo orgânico feito para uma música inexistente. Nesse Inventário das pequenas mortes (sopro) (2000), com coautoria de Cao Guimarães, podem bem estar arrolados os fins breves dos seres e das coisas que, embora pouco visíveis e sem fazer quase barulho, povoam o cotidiano usual e vários dos trabalhos da artista: trilhas de formigas, restos de comida, sabão mergulhado em água, talco espalhado no piso.

 

A associação do conceito de tempo a acontecimentos comuns – contraposta ao seu entendimento corrente como medida genérica da duração dos fatos – emerge igualmente da instalação Chove chuva (2002). Pendurados do teto por fios de aço, dezenas de baldes de alumínio com furos pequenos no fundo são enchidos com água, causando um gotejamento ritmado sobre outros tantos baldes, postos no chão exatamente sob os que se acham no alto. Transcorrido certo tempo, os baldes suspensos esvaziam-se e são novamente enchidos com a água que escoou ao longo desse intervalo, dando início a processo idêntico de esgotamento. Se o ato de encher os baldes com periodicidade repetida produz, para quem cabe realizar essa tarefa, sentimento preciso da duração de um evento, também a apreensão visual e auditiva do esvazia- mento da água neles contida permite relacionar, subjetivamente, a frequência do gotejamento à duração de outros fenômenos. O que é ocorrência singular (pingos que caem em cadência certa) torna-se, assim, condição para entender-se o que é fato genérico (a ideia do tempo em que tal fato acontece). Do ordinário é que se faz o abstrato.3

 

 

Do ordinário é que se faz o abstrato. De laranjas, um alfabeto. No trabalho Palavras cruzadas (2001), Rivane Neuenschwander desidrata e descasca centenas de laranjas, deixando-lhes apenas pele suficiente para que nelas se leiam, em alto relevo, os caracteres com que se constroem palavras e frases. Postas aleatoriamente em caixas de papelão que formam pequeno labirinto sobre o piso, as frutas são um convite ao toque daqueles que o percorrem e ao consequente rearranjo das letras feito de acordo com vontades diversas. Menos, contudo, que esperar do visitante a escrita de um texto qualquer, o que a instalação sugere é a desnaturalização dos símbolos linguísticos, tornando sua origem menos turva e associando-os, de uma só vez, à visão, ao olfato, à memória do gosto e ao tato.

 

Intento semelhante da artista rege o trabalho Alfabeto comestível (2001), em que 26 tipos de especiarias – escolhidas de modo que a suas iniciais correspondessem a todas as letras do alfabeto (açafrão, black pepper, colorífico, dill, espinafre, feijão árabe etc.) – são individualmente coladas sobre suportes rígidos, criando listras horizontais e paralelas, em uma alusão possível a soluções pictóricas formais. Afixadas na parede seguindo a ordem alfabética dos nomes dos alimentos, cada uma dessas placas possui cor diferente e desperta, no público, a lembrança de sabores e cheiros característicos, fazendo desse contato indireto com as letras – mediado por alimentos distintos – uma experiência que apela, simultaneamente, aos sentidos e ao intelecto. Em vez de conjunto neutro de símbolos que tudo descreve, o alfabeto deixa-se aqui atravessar por tonalidades variadas e por memórias gustativas e de olfato – umas vagas, outras claras – que atestam a experiência múltipla do corpo no mundo e, portanto, a permeabilidade entre mecanismos de cognição diversos.4

 

Se, nesses dois trabalhos, Rivane Neuenschwander aproxima comida e fala, em outros ela articula o uso do vernáculo com maneiras de comunicar ancoradas em experiências de afeto.5 Em todos, porém, desmancha a ideia da língua como instituição gerada longe da vida comum. O vídeo Love lettering (2002), com coautoria de Sérgio Neuenschwander, exemplo conciso desses trabalhos, exibe imagens de pequenos peixes vermelhos que carregam, presos às caudas, pedaços de papel onde se leem, em meio ao vaivém azul e verde do aquário, palavras isoladas e alguns pequenos trechos de frases: my love, sweet, angel, no, my dear, from, calls, news, eyes, talking, kissing, voice, hands, mouth, your, I, miss, Rio, London, come, today, next, you, here, night, wish, hotel, from:, to:, entre outros mais. A princípio desconexos, aos poucos os substantivos, pronomes, adjetivos, verbos e preposições que os peixes transpor- tam começam a formar sintagmas na memória recente de quem assiste ao desenrolar das imagens, baralhando a ordem em que foram primeiro apresentados e desvelando fragmentos possíveis de uma carta amorosa. O sentido de agregação de elementos dispersos que o vídeo promove, de encontro entre pessoas que, embora distantes, buscam contato escrito porque se gostam, é reforçado ainda pelo próprio movimento dos peixes, os quais, mesmo que, por vezes, se cruzem ou se afastem uns dos demais, em outras nadam bem próximos. Também a trilha sonora do vídeo (de autoria do duo O Grivo) é feita de fragmentos de sons mecânicos e orgânicos que, gradualmente, fundem-se em algo uno, ecoando, na música que compõem, o surgimento de sentidos precisos a partir da confluência, mediada pela memória afetiva de cada espectador, de elementos linguísticos difusos.

 

Das letras do  alfabeto  às  palavras  inteiras,  e  dessas  à frase completa. No trabalho Eu desejo o seu desejo (2003), Rivane Neuenschwander não trata mais dos símbolos irredutíveis da língua, tampouco dos vocábulos que, roçando uns nos demais, apenas sugerem locuções variadas. Tendo solicitado a quarenta pessoas (todas mantidas anônimas) que formulassem um desejo qualquer por escrito, ela amealhou uma coleção de sentenças diversas e inteiras, cada qual expressando uma vontade particular de confirmação ou mudança de algo. Eu desejo calma; I wish I could figure out what has to be done; Eu desejo a felicidade das minhas filhas; Je désire ne plus avoir de patrie; Sexo cinco vezes por semana; I wish I could say an unconditional yes; Eu desejo o céu na terra são alguns deles. Por obedecerem às normas ortográficas e gramaticais das línguas em que estão redigidos, esses desejos traduzem a subjetividade de cada um em termos entendidos por todos os que conhecem tais padrões de emprego linguístico. Mas são também os conte- údos dos desejos que podem, sugere a artista, ser apropriados por outras crianças, mulheres ou homens, em uma sobreposição entre a socialização dos códigos de comunicação interpessoal e a partilha de desejos íntimos.

 

Essa apropriação se faz possível pela impressão dos desejos coletados sobre milhares de fitas coloridas – semelhantes às que carregam nomes de santos e que são amarradas ao pulso para exprimir devoção ou por esperança de alcançar benefícios – e por seu oferecimento a todos os que forem ao local onde se mostre o trabalho. Disposto sobre uma grande extensão de parede, o conjunto das fitas-desejos parece evocar a sala de ex-votos de uma igreja católica, embora sejam distintas as temporalidades em que os dois ambientes votivos se estruturam: ao invés de retribuir o alcance de uma graça, cada uma das fitas exprime apenas a vontade da realização de algo em futuro indefinido. Essa indeterminação temporal se desdobra ainda no espaço, posto que, ao escolher o desejo de outra pessoa (não só o seu enunciado formal, mas também o que simboliza) e retirar a fita correspondente da parede, o visitante da exposição transporta-o, atado ao pulso, a um contexto de vida diverso. Muitos deles, fazendo o mesmo, tecem uma teia quase invisível de trajetos a partir de um só ponto, dispersando os desejos coletados por um território amplo e de extensão incerta. Inversamente, os visitantes podem escrever os próprios desejos em pedaços de papel e inseri-los nos furos da parede dos quais as fitas são retiradas, trazendo aspirações e anseios de toda parte e de toda sorte para um único espaço. Por permitir que se deseje o desejo de alguém mais e por incorporar, em futuras montagens da instalação, os novos desejos assim dei- xados, Rivane Neuenschwander faz com que sejam os visitantes que completem o trabalho, concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado.6

 

 

Concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado: é o que ocorre claramente em Palavras cruzadas (mover as laranjas), de modo não tangível em Alfabeto comestível (lembrar do cheiro e do gosto dos alimentos) e menos ainda evidente – mas igualmente essencial, todavia – em Love lettering (ativar as lembranças do passado afetivo). Cessão de controle que acontece, em verdade, desde trabalhos mais antigos e, embora de maneiras às vezes oblíquas, sempre com importância decisiva na criação de sentidos. É o caso de Paisagem suspensa (1997), formado por cabeças de alho esvaziadas de seu conteúdo sólido e recompostas em sua aparência original pela junção frágil das peles do bulbo, as quais, penduradas no teto por fios finos e quase tocando o piso, envolvem nada. A percepção da materialidade tênue do trabalho, porém, somente é revelada quando a presença de alguém caminhando próximo desloca o ar e move os fios que sustentam os alhos. Sem essa presença, não há como revelar de que (não) é feita a instalação, nem como ativar sua força poética, que é tornar visível o que é construído por uma operação de esvaziamento.

 

Também em trabalhos criados pela adição de matéria (e não apenas de sua retirada), Rivane Neuenschwander oferece meios para a presença ativa do público em sua obra. Em Andando em círculos (2000), trabalho sintético desse seu intento, ela carimba, no piso de salas expositivas, círculos de cola transparente. À medida que os visitantes andam no espaço e inadvertidamente pisam sobre as áreas demarcadas com a substância adesiva, deixam nelas grudada a inevitável sujeira que, trazida de vários cantos, carregam sob os sapatos. Como resultado, aos poucos os círculos traçados no chão se tornam visíveis ao olho humano, preenchidos pelos rastros involuntários da passagem, por ali, de pessoas diversas.

 

Já em O trabalho dos dias (1998), a artista funde, de modo mais explícito, as marcas de sua presença e da presença de outros no que faz. Em duas salas cúbicas e brancas construídas para a Bienal de São Paulo, forrou paredes e pisos com quadrados de papel adesivo que já retinham os restos, vestígios e sobras caídos no chão de sua casa: coisas prosaicas como farelo de pão, fios de cabelo, insetos mortos e os entulhos miúdos que gradualmente se assentam nas superfícies de cozinha, sala e quarto. Ao entrar nesses espaços marcados pelo que é privado, os muitos visitantes da mostra terminavam trazendo, para o seu interior, os indícios do espaço público onde estavam. Nessa adição de sujidades em camadas, a casa e a instituição sobrepunham-se de forma quase indistinta, pondo ao claro a porosidade que existe entre o que é comumente tomado como distante e separado. O que parece longe pode estar também perto.7

 

 

O que parece longe pode estar também perto. É possível distinguir, em alguns dos trabalhos acima descritos, dois principais procedimentos construtivos na obra de Rivane Neuenschwander, ambos compatíveis com a sua educação formal como escultora, mas que, embora em aparente oposição, são submetidos igual- mente à sua vontade criativa e, muitas vezes, sobrepostos ou confundidos.8 O primeiro procedimento é baseado em operações de ajuntamento de matéria, tais como recobrir, com a poeira recolhida de casa, parte das linhas que marcam a junção de barras de sabão de coco que ela agrupa como quadrados (sem título, 1999) ou, como faz em outro trabalho, tornar visíveis as linhas finas que separam os tacos de um piso escuro por meio da meticulosa inserção, nesses espaços estreitos, de fino pó de mármore (sem título, 1999). O que eram planos monocromáticos sem distinção alguma se tornam, mediante essas ações, desenhos feitos de “linhas orgânicas” encontradas em conjuntos de barras de sabão ou no piso de uma sala.9

 

O segundo procedimento, por sua vez, é evidente desde trabalhos mais antigos (feitos entre 1997 e 1998), em que matérias variadas são sujeitadas a processos de radical desbastamento ou subtração, ampliando, paradoxalmente, seu tempo esperado de vida como objetos. Diante de molho de tomate quase seco sobre o prato, a artista raspa todo o excesso e deixa à vista somente trilhas tênues de polpa que ligam as porções onde repousam, sozinhos ou agrupados, os pequenos caroços do fruto. Em outro trabalho, toma de folhas de árvore ainda verdes e recorta, com zelo, as suas coberturas delgadas, tornando visíveis as estruturas vegetais intrincadas que mantinham firme o que foi dali retirado. O que era destinado ao descarte (por ser perecível) ou ao esquecimento (por ser comum) se torna, assim, objeto imbuído de conteúdo gráfico. Se, nesses trabalhos, Rivane Neuenschwander escava, sobre suportes orgânicos, imagens inventadas que são quase mapas, em Carta faminta (2000), diversamente, são muitas lesmas que, postas sobre finas folhas de papel de arroz, as consomem devagar e de modo irregular, definindo nelas as bordas de imaginárias cartas geográficas.

 

O interesse da artista por tudo o que é criado e feito visível por atos de supressão se expandiu, em seguida, também para matérias sintéticas. Valendo-se de sacos de fibra plástica trançada usados para armazenar mantimentos (arroz, feijão, soja, farinha), ela apaga, com solução solvente, todas as referências impressas que identificam marca ou procedência, deixando à vista somente os seus elementos de desenho ou pintura, os quais ainda enfatiza, recobrindo-os com tinta vinílica. Enfileirando dezenas desses sacos modificados sobre o piso, ela concede, nessa instalação – _ _ _ _ _ _ _ _ _ (product of) (2003) –, teor simbólico ao que antes era apenas invólucro, pondo em evidência o que o olhar distraído não via. Continente e conteúdo – aqui como em outros trabalhos – são apenas estados transientes das coisas, podendo, portanto, ser alterados a todo instante.

 

Expediente de construção similar é usado no trabalho Globos (2003), concebido para a Bienal de Veneza. A partir da reunião de quase duas centenas de esferas dos mais diferentes tamanhos (da bola de pingue-pongue às bolas gigantes usadas para recreação de crianças) e materiais (plástico, couro, borracha, acrílico), a artista apaga, uma vez mais com solvente, todas as referências nelas escritas. Em seguida, entretanto, aproveitando-se das cores e grafismos originais dos globos e considerando os graus variados de resistência a intervenções sobre as suas superfícies, faz neles interferências diversas com fitas adesivas, vinil e mesmo tinta, sugerindo associações de cada uma das esferas à bandeira de um país.

 

Como as aproximações entre o tamanho e o material das bolas e os estandartes dos países são definidas apenas pelas possibilidades de intervenção já existentes, há implícita, nesse método, a subversão simbólica de hierarquias econômicas ou geopolíticas estabelecidas; é clara a alusão, ademais, à existência de um mundo muito maior do que aquele oficialmente presente na Bienal, onde constava, por meio de seus artistas, apenas a terça parte das nações representadas pelos globos. Dispostas aleatoriamente na sala, as esferas podiam ainda ser manipuladas livremente pelos visitantes, que refaziam, quase como as lesmas sobre os papéis de a Carta faminta, a cartografia do mundo a seu gosto ou ao acaso de um deslocamento qualquer das bolas espalhadas sobre o piso.

 

Ao apagar sinais que inicialmente os globos continham e depois adicionar, sobre eles, marcas que não possuíam, Rivane Neuenschwander sobrepõe os dois métodos que usualmente emprega – desbaste e adição –, com desapego a qualquer norma rígida que abafe, em sua obra, a surpresa do invento. Em outro trabalho, a artista utiliza ambos os processos simultaneamente, encobrindo com tinta as imagens de barcos que eram parte de vistas pintadas do mar, adquiridas por ela em mercados populares. Subtraídas de um dos principais elementos que demarcam o gênero, várias dessas marinhas são, em seguida, postas em fila sobre a parede – sugestão de um horizonte artificial e fragmentado – e, em um deslocamento simbólico e físico, confrontadas com número igual de pequenos barcos feitos com papéis achados na rua e postos em frente às pinturas. Diante da evidência da falta de algo nas telas, Rivane Neuenschwander induz a visão da audiência para dentro de imagens banais e cria a oportunidade de se ver, nessa Imprópria paisagem (2002), o que passa despercebido por não ser esperado ou por estar aquém da visada apressada que se lança habitualmente sobre o mundo. Permite que se veja, ao menos, alguns dos muitos detalhes do mundo. Permite olhar a poeira, por exemplo.

 

1 Esse percurso do conhecimento é sugerido por Gilles Deleuze, para quem as pequenas percepções são menos partes da apreensão de um fato do que seus requisitos ou elementos genéticos. DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.

 

2 ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

3 Esses e outros trabalhos de Rivane Neuenschwander que partilham o interesse pelo assinalamento específico da passagem do tempo (e não meramente por seu transcurso abstrato) se inserem em uma tradição profícua, diversa e longa da produção cultural contemporânea, a qual inclui, entre muitos outros exemplos possíveis, a peça Tacet 4’33 (1952), do compositor americano John Cage (1912-1992), em que o concertista, em vez de tocar as teclas do piano, suspende as mãos no ar durante o tempo assinalado no título da obra, deixando que a manifestação do público e todos os demais sons que cheguem à sala de concerto se transformem em música; a instalação Livro do tempo (1960-1961), da artista brasileira Lygia Pape (1927-2004), formada por 365 pequenos blocos diferentes de madeira cortada e pintada, índices dos dias de todo um ano; o trabalho I got up (1968 em diante), do artista japonês On Kawara (1933), composto por cartões-postais enviados por ele a amigos informando o lugar e a hora em que acorda a cada dia que passa; a instalação Kulturgeschichte 1880-1983 (1983), da artista alemã Hanne Darboven (1941), resultado do agrupamento de milhares de textos e imagens que narram, a partir de referências à cultura, à política e à sua vida pessoal, o período de um século mencionado em seu título; e o filme Chungking express (1996), do cineasta taiwanês Wong Kar-Wai (1958), em que, abandonado pela namorada, um de seus personagens conta o tempo que daí se segue comprando, diariamente, uma lata de abacaxi com data de validade idêntica àquela em que espera tê-la de volta. Assim como na obra de Rivane Neuenschwander, em cada um desses trabalhos o transcurso do tempo é associado a uma sucessão de atos, eventos ou fatos, os quais lhe dão um sentido e uma ordem determinados.

 

4 À proximidade visual de Alfabeto comestível das pinturas de Agnes Martin (1912-2004) – a organização do plano por meio de linhas de cor paralelas e horizontais é a marca mais facilmente reconhecível de suas telas –, soma-se o fato de que, assim como o trabalho de Rivane Neuenschwander, as pinturas da artista canadense provocam formas distintas e transitivas de entendimento, ancorando-se em aspectos pictóricos formais e, simultaneamente, em associações subjetivas entre sentimentos e cores diversas.

 

5 Para uma discussão sobre a relação entre comida e linguagem na obra de Rivane Neuenschwander, ver SZYMCZYK, Adam. The sensorium of sense, the empire of the senses. In: Spell. Rivane Neuenschwander. [Catálogo]. Frankfurt Am Main: Portikus, 2002; e BIRNBAUM, Daniel. Feast for the eyes. Artforum, mai. 2003.

 

6 A necessidade da participação do público para que esse e outros trabalhos se completem os torna próximos de alguns trabalhos do artista cubano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996), que punha, em salas de exposição, montes de bombons embalados ou pilhas de cartazes com imagens e/ou textos impressos para que fossem levados para casa pelos visitantes. Também os avizinha, pela generosidade implícita, a trabalhos do artista tailandês Rirkrit Tiravanija (1961), que, em uma ocasião, transformou a galeria em um misto de depósito e cozinha, onde preparava refeições e as oferecia ao público.

 

7 No trabalho Piedra que cede (1992), o artista mexicano Gabriel Orozco (1962) rola, por vários lugares da cidade, uma bola feita com massa de modelar, deixando aderir, na sua matéria mole, as impurezas da rua, além de permitir a adequação de sua forma esférica aos obstáculos e reentrâncias que encontra. Já o artista belga radicado no México Francis Alÿs (1959) calçou sapatos com solas magnetizadas (Zapatos magnéticos, 1994) e caminhou pelas ruas recolhendo qualquer resíduo metálico que encontrasse. Embora esses dois trabalhos também façam, a exemplo de Andando em círculos e O trabalho dos dias, uma coleção das pequenas coisas do mundo, há neles muito mais controle sobre o resultado do que o que se permite Rivane Neuenschwander, que transfere para o público a responsabilidade por sua forma última.

 

8 A artista realizou curso de especialização em escultura no Royal College of Art (Londres) no período de 1996 a 1998.

 

9 “Linha orgânica” é um termo associado a trabalhos realizados na década de 1950 pela artista brasileira Lygia Clark (1920-1988), que punham em evidência a linha formada pela mera junção de dois planos distintos. SARMENTO, Edelweiss. Lygia Clark e o espaço concreto expressional. [Entrevista]. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 jul. 1959. Suplemento dominical, p. 3. Republicado em LYGIA Clark. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997.

MESMO DIANTE DA IMAGEM MAIS NÍTIDA...

MESMO DIANTE DA IMAGEM MAIS NÍTIDA, O QUE NÃO SE CONHECE AINDA

Rosângela Rennó

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

O meio expressivo usado por Rosângela Rennó em seus trabalhos é, quase sempre, a fotografia, embora se valha, por várias vezes, de texto ou vídeo. Raramente, porém, a artista fotografa. Prefere ater-se ao vasto inventário de imagens já existentes e encontráveis em qualquer parte, investigando,  de  modos  os mais diversos, os seus possíveis e instáveis significados na organização da vida em comum, quer no campo do conflito, quer no do afeto. Há pressuposto, nesse procedimento, não apenas o fato de que fotografias são arquivadas, mas também o intento de desvelar a ética que comanda a produção e o uso dessas tantas imagens. Sem a pretensão de certeza que o discurso científico reivindica – procedendo, antes, à sua abertura ao que é incerto –, elabora uma arqueologia e uma genealogia da fotografia, situando-a como parte integrante de um sistema de saberes e valores que ancora formas de poder em sociedade, tanto as definidas quanto as difusas.1 Talvez a principal estratégia utilizada para tanto seja apresentar as fotografias que coleta em lugares distintos – e que escolhe por motivos variados – de uma maneira que cause estranhamento a quem as olhe, ainda que sejam conhecidas ou banais: é quando tornadas opacas por esse deslocamento que essas imagens podem, afinal, ter seus sentidos renovados.2 Tendo se valido, no início de sua trajetória, das fotografias que mais lhe estavam disponíveis (as suas e as de seus familiares), é ao lançar-se à pesquisa do corpo extenso de imagens produzidas por outros – instituições ou indivíduos – que concede ao seu projeto, contudo, maior potência e foco.

 

É exemplar, a esse respeito, a instalação Imemorial (1994). Ocupando uma extensão longa de parede e do piso à frente desta, fotografias escuras e enfileiradas mostram, em dimensões maiores que as naturais, rostos de homens e de algumas poucas mulheres, além de outros que pertencem claramente a crianças. Observadas com vagar, as fotografias sugerem sua procedência provável. Chamam a atenção, desde logo, a rígida posição frontal das cabeças, o vestir digno e modesto, e a sisudez dos olhares fitando a câmara que os capturou há um tempo impreciso, embora as roupas que cobrem ombros e colos revelem estar esse momento já afastado. Aspectos que, reunidos, permitem supor serem tais retratos parte da identificação formal de indivíduos para o ingresso no mundo do trabalho. Origem possível que é reforçada pelo esquemático enquadramento dos rostos: o mesmo empregado em fotografias 3 x 4 e largamente utilizado para fins burocráticos. As fotografias são, além disso, todas numeradas, como se a marcar a sua entrada em um arquivo que registra pessoas como dados. Não há, porém – fica evidente mesmo a uma inspeção ligeira do olhar –, alegria ou conforto discerníveis nesses retratos, sensação acentuada pelos tons sombrios em que as imagens são apresentadas. Em verdade, sua disposição no espaço lembra, inescapavelmente, a de lápides feitas em pedra, metáfora da perda de vidas singulares para o anonimato, tal como a regulação social do mundo contemporâneo requer. Encimando as fotografias, o nome da instalação (em letras brancas sobre parede de mesma cor) apenas sublinha o recalque de identidades que esses retratos paradoxalmente atestam.

Ao escolher e retirar essas imagens do arquivo funcional de uma empresa e apresentá-las em lugar e modo estranhos à sua serventia de origem, Rosângela Rennó não resgata, contudo, identidades autônomas quaisquer. O que põe a claro é justamente o deslembrar que os contratos trabalhistas reservam aos empregados, refazendo suas formas de pertencimento à vida a partir das assimétricas relações de poder em que aqueles são fundados.3 Destaca, ao mesmo tempo, o papel que a fotografia arquivada exerce nessa operação de esquecimento do que é único, contraditando sua suposta função de lembrar aquilo que já passou e de ocupar, assim, o lugar simbólico detido antes pelo monumento. Confrontado apenas com esses retratos, o observador não saberá, portanto, o nome de nenhum daqueles funcionários, quais eram ao certo seus ofícios, se aquelas crianças já morreram ou se continuam a viver em lugar ignorado. Ao observar, porém, o semblante tenso de um, a roupa apertada e definitivamente inadequada do outro, ou, ainda, o olhar assustado de um terceiro que a câmara paralisou um dia, é levado talvez a imaginar o ambiente e o momento no qual viveram suas vidas e as razões da amnésia social para onde seus desejos escaparam.4 Percepção dúbia que evoca o que diz a personagem feminina do filme Hiroshima mon amour (1959), do cineasta francês Alain Resnais (1922), para quem as fotografias reconstituem o passado somente “na falta de outra coisa”: algo indefinido que não há mais e que não pode, por isso, ser plenamente lembrado. É justamente essa ambivalência da imagem fotográfica – a de ocultar o que aparenta exibir e, ao mesmo tempo, trazer obliquamente à memória aquilo que não mostra – que mais intriga e anima a artista na construção de sua obra.

 

Na série intitulada Vulgo (1998-1999), Rosângela Rennó apresenta retratos extraídos e ampliados de um outro arquivo fotográfico com o qual pôde trabalhar. São novamente cabeças humanas (dessa vez, apenas homens) que põe à mostra também como integrantes de um conjunto maior de imagens, embora em uma coisa estas difiram, de imediato, das apresentadas em Imemorial: em vez da frontalidade ostensiva dos retratos 3 × 4, são quase somente as nucas e os cocurutos dos retratados que são dados a ver agora, sob cabelos invariavelmente cortados quase rentes à pele. Em apenas uma delas se vê uma testa e parte de uma face, ainda assim voltadas para baixo, em aparente submissão a quem visualmente as anota. Essas fotografias possuem, ademais, dimensões muitas vezes maiores do que as de seus referentes, concedendo a oportunidade, então, de um escrutínio detalhado das imagens deles mostradas, cuja ênfase, realçada em tons de vermelho sobre o branco e preto de origem, são os redemoinhos que os cabelos formam. Exame que deixa perceber, ainda, breves anotações feitas às margens dos retratos, sugerindo tratar-se de indivíduos cujas vontades são submetidas a algum tipo de controle institucional e que estão, além disso, sujeitos a procedimentos de análise, como ocorre a internos de sistemas psiquiátricos e prisionais. De modo análogo ao uso de imagens em arquivos laborais, essas fotografias certamente se prestaram, algum dia, a conferir autoridade ao poder disciplinar que funda e justifica sistemas de regulação. Poder que já se valeu de tipologias fisionômicas para atestar o que governaria o comportamento transgressor na vida em comum, como os formatos dos crânios e rostos dos que se desviam de normas socialmente acordadas.

O arquivo fotográfico de onde essas imagens foram subtraídas não é, portanto, um arranjo neutro de informações visuais coletadas, servindo antes – por meio da escolha, da acumulação e da comparação desses retratos – à afirmação de modelos menos ou mais arbitrários de explicação e manejo de uma dimensão da realidade. Embora abrigue representações de vidas singulares, simultaneamente as torna equivalentes e indistintas, meros ele- mentos arrolados para a comprovação empírica de enunciados discursivos genéricos.5 Ao recontextualizar parte desse arquivo específico em seu trabalho, a artista uma vez mais demonstra, então, como o uso do meio fotográfico pode velar o que suposta- mente exibe, sem escapar, porém, de comunicar o que nele não se enxerga de imediato. Como contraponto à geração institucional do anonimato que essas imagens atestam, aproxima delas uma projeção em vídeo – Vulgo/Texto (1998) – em que centenas de alcunhas verdadeiras se sucedem (dente de lata, zé penetra, escadinha, diabo louro, marcinho maluco, beira-mar, jacaré, mau-mau, ferrugem, mão santa…), fornecendo indícios mais claros da condição de internos do sistema prisional dos retratados e explicitando um modo usual de rejeição e resistência à perda imposta de alteridade. Essa estratégia defensiva não logra, entretanto, recuperar laços sociais partidos, posto que tais apelidos são logo também capturados em ainda outros arquivos e também eles privados de uma relação unívoca com sujeitos quaisquer, como prova, paradoxalmente, sua apresentação nesse trabalho. Antes, Vulgo e Vulgo/Texto dão testemunho, como Imemorial igualmente já dera, do lugar difuso a que frações da sociedade são remetidas, na memória coletiva, pelo poder da imagem fotografada.6

 

No vídeo Vera Cruz (2000), Rosângela Rennó também opõe texto à imagem, desta feita na forma de um registro ficcional – baseado, todavia, no relato escrito de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal – da chegada dos portugueses à terra que viria a ser chamada Brasil e do seu encontro com os habitantes nativos do lugar. No trabalho, quase nada é dado a ver, exceto a imagem em movimento de um suposto e antigo filme riscado, manchado por fungos e em processo de decomposição avançado. Sons, apenas os do vento e do mar. Mas se de todos são subtraídas a imagem e a voz – apagamento do que individualiza e confere identidade de imediato –, dos portugueses é transcrita ao menos, como legendas escritas, a sua fala. Não a fala indistinta, mas aquela dita por personagens que exercem funções específicas no agrupamento do qual tomam parte (o capitão, o padre, o soldado, o escrivão…) e que reagem às situações vividas de modos particulares. Por meio desse artifício, a esses é dado o poder não só de descrever o encontro com o outro, mas também o de definir quem lhes é estranho (os índios) de forma indiferenciada. Se os textos lidos nas legendas permitem ao observador imaginar cenas que lhes façam correspondência – dessa maneira resgatando, em alguma medida, as imagens que o vídeo sonega –, também as contaminam de uma visão de mundo que enxerga o diferente como mero desvio de uma presumida normalidade.7  Valendo-se de pouco mais do que o uso da palavra impressa, Vera Cruz demonstra como também o filme – mesmo, e talvez sobretudo, o filme documental, histórico, fotográfico – pode ser instrumento de afirmação de hierarquias e de anulação, portanto, do direito supostamente equânime de narrar a vida de perspectivas diversas. Reforça, ainda e por isso, a ideia de que o texto pode ser, assim como a imagem criada de alguém ou de algo, instrumento de amnésia social.

 

 

Se em Vulgo/Texto e em Vera Cruz é a palavra que busca, incessantemente e sem sucesso, contrapor-se ao anonimato que arquivos de imagens geram, em o Arquivo universal (1992-) é produzido movimento de sentido contrário, apenas para chegar-se a resultados similares. Esse trabalho é formado por um conjunto de escritos prosaicos coletados em jornais nos quais há, invariavelmente, alusões a fotografias, mesmo se com ênfases e de jeitos variáveis. De tais textos, feitos para serem lidos e já quase esquecidos antes do fim de um dia, a artista retira os nomes das pessoas mencionadas e os substitui somente por letras maiúsculas seguidas de um ponto (o agricultor X.Y., a decoradora D., a ex- governante M.M., o empresário A…), além de, no mais das vezes, suprimir informações que identifiquem sua origem geográfica e temporal. Esses escritos têm, assim, ocultadas as marcas de individuação humana que traziam e reduzido o seu poder de evidência, destituindo, por isso, os seus protagonistas de identidades determinadas. O esquecimento a que já eram destinados é, desse modo, confirmado e acentuado. Reapresentados sobre as paredes em suportes variados e com graus diversos de visibilidade (emoldurados, projetados, adesivados), os textos são, contudo, tratados como se fossem quase-imagens constituintes de um “arquivo uni- versal” de fatos, cabendo ao observador tomá-los como ativadores do pensamento criativo – ancorado no repertório de conhecimentos que detém – e, dessa maneira, pretensamente rememorá-los. Ao realçar a sua potência imagética, porém, Rosângela Rennó submete os textos colecionados à mesma lógica de indistinção e de oblívio a que se sujeitam fotografias arquivadas.

 

Esse oferecimento de um arquivo de imagens à imaginação do outro está também presente na instalação Cerimônia do adeus (2003), composta por quatro dezenas de fotografias posadas de recém-casados, em que os noivos, vestidos para o protocolo de confirmação do enlace, são retratados no interior de carros ou encimados em motocicletas. Menos que a captura de momentos íntimos, essas imagens testemunham cenas que só existiram um dia para serem fotografadas e terem, dessa forma, preservada a sua ocorrência singular. Há, talvez por isso, nessas imagens em branco e preto que compõem o trabalho, um inequívoco acento nostálgico: de cada uma delas pulsa e emana, vindo de algum instante no passado, um referente que não se confunde com outro algum, o do momento exato em que duas pessoas se deixam imobilizar juntas em celebração de um projeto de partilha de afeto. Quando vistas ampliadas e dispostas todas juntas em grade sobre a parede – modo de organização espacial que faz do que é único apenas parte de um grupo –, essas fotografias terminam, entretanto, por diluir o que pôde um dia haver de distinto nas expectativas de cada casal, confirmando o papel de anulador de alteridade que os arquivos exercem.8 O tempo não sabido e sem retorno que se passou desde que essas cenas foram gravadas também se encarrega, além disso, de confrontar suas promessas de individualidade. Algumas dessas reproduções possuem regiões esmaecidas que dissolvem partes de rostos ou apresentam vincos que anunciam, para um futuro incerto, a decomposição de seus “originais”. Alterações físicas que agem, em verdade, como indicadores de que, ao serem imobilizados em imagens fotográficas, esses casais foram não apenas tornados eternos, mas, em um sentido preciso, também mortos, posto que as habitam, desde o instante em que foram nelas inscritos por um rito social, como seres vulneráveis ao que está por vir ainda.9 Poder ambíguo que a fotografia possui e que pode ser comparado ao da máquina concebida por personagem do romance A invenção de Morel (1940), do escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), a qual registra e pereniza as imagens dele e a de amigos em idílio e que, em troca, os acomete de doença que acelera o seu fim carnal.10 Essa imobilidade temporal dos retratos faz recordar, ademais – por oposição ao envelhecimento progressivo e inevitável a que foram ou estão sujeitos aqueles homens e mulheres fotografados e reunidos em Cerimônia do adeus –, também a morte futura de quem as olha. É justamente essa relação especular e sombria com o trabalho – causada pelo enfraquecimento da relação entre as imagens apresentadas e algo que seja específico somente a elas – que convoca o observador a relembrar e projetar, nessas fotografias tornadas todas semelhantes pela artista, narrativas pessoais.

 

Os eventos diversos vividos pelo observador também um dia foram, contudo – como os passados por quase qualquer um –, muitos deles registrados em meio fotográfico, liberando os que deles participaram da necessidade de recordá-los. Em vez de lembranças, pode-se guardar, assim, somente imagens, dado que elas provam e evocam a presença em lugares distantes ou próximos e a participação em rituais de encontro ou passagem. Mas enquanto a memória se define por sua imprecisão, fluidez e mesmo sujeição ao erro, a fotografia é depositária da crença de que apenas atesta e confirma fatos; enquanto uma mimetiza a errância de acontecimentos passados em busca de recriá-los no pensamento, a outra os reduz a um relato preciso e único, tornando-se menos instrumento de recordação que – por subtração de dúvidas – agente de amnésia.11 Por se terem estabelecido como suporte onde fotografias são comumente arquivadas em narrativas arbitrárias, os álbuns são, portanto, espaços simultaneamente de registro e de esquecimento de vidas particulares, ocupando posição privilegiada na afirmação da ambivalência desse meio de fixação e reprodução de imagens. São instrumentos que, ao reunir conjuntos de fotografias, comprovam o pertencimento de alguém a um círculo familiar e a uma época, mas que, ao mesmo tempo, destituem de tal pertencimento a sua conformação complexa.12 Em situações extremas, a serventia dos álbuns como depositários da memória parece ser mesmo colocada ativamente à prova, dado que muitos são postos fora ou vendidos por quase coisa alguma.

 

É uma centena desses álbuns descartados (incluindo várias caixas de diapositivos em variados formatos) que Rosângela Rennó adquiriu em feiras livres, brechós e lojas de antiguidade em cantos diversos e que dispõe na instalação Bibliotheca (2002). Por meio do confronto visual com essa coleção de arquivos – supostos veículos de esquecimento do que é sutil e incerto –, paradoxalmente busca reconhecer, na fotografia, a função também de ativar a lembrança movente de um fato, e não somente a de admitir, pela certeza que uma imagem trai, sua inequívoca ocorrência passada. A uma primeira visada, porém – em estratégia que só realça a posição que advoga –, a apresentação do trabalho chega a frustrar o olhar, posto que sobre pequenas mesas reunidas em grupos se encontram não os álbuns coletados, mas as fotografias de suas capas impressas em brilhantes superfícies de acrílico, cada uma acompanhada de um número de ordenação, de 1 a 100. Seus referentes – os próprios objetos feitos para colecionar imagens – estão imediatamente abaixo de tais coberturas, aprisionados em paredes translúcidas da mesma matéria e fora do pleno alcance da vista. Invioláveis ao tato e somente obliquamente notados pela visão nessa sorte de vitrine em que se encontram lacrados, eles parecem, de pronto, apenas ser provas de que as cópias fotográficas expostas se referem a originais que não podem ser abertos. Essas mesas-vitrines ainda expressam, em cores que cobrem os seus tampos e frisos, uma ordem construída e imposta aos itens ali colocados, de modo semelhante ao que ocorre em qualquer outra biblioteca. Cada um dos álbuns exibidos é classificado, por meio de código cromático aplicado a esses móveis, em função de uma dupla pertença territorial: o continente em que as fotografias neles contidas foram tiradas (são as cores dos tampos que o informam) e o continente onde foram encontrados (fato ensinado pelas cores dos frisos). Sobre mapas-múndi instalados em paredes próximas a cada agrupamento de três a cinco dessas mesas-vitrines, são afixados alfinetes que trazem impressos em suas cabeças os números de registro dos álbuns ali dispostos e as cores que identificam o seu lugar de origem, precisando o seu correspondente lugar de destino.13

 

Ao bloquear o acesso visual às narrativas privadas potencialmente contidas em cada álbum, a artista claramente descose a relação próxima que quaisquer fotografias têm com o lugar e com o momento em que foram tiradas, fazendo-as, por esta imposta cegueira, pertencer a um espaço indistinto e a um tempo impreciso. Oculta imagens, portanto, para que, diante apenas de sua evocação indicial, possam estar disponíveis e ser reinventadas, a partir de referências variadas, nas mentes de quem não as pode enxergar. Essa vontade de resgatar um sentido mnemônico para o meio fotográfico que Rosângela Rennó expressa é asseverada, de maneiras diferentes, por dois outros elementos da Bibliotheca. Um deles é uma caixa-arquivo com fichas catalográficas para cada um dos cem álbuns, onde se podem ler descrições de suas características físicas e de seu conteúdo iconográfico (suspeito ou comprovado), além de indicações renovadas sobre a procedência geográfica das imagens que eles encerram e de sua localização quando foram encontrados. Uma vez mais, há aqui o confronto entre o texto e a fotografia como meios diversos de acercar-se de um fato. Mesmo a consulta mais cuidadosa a tais fichas não iguala, entretanto, a experiência de olhar as cenas contidas nos álbuns lacrados a que remetem. Não somente porque o que está nelas escrito é incapaz de descrever por completo mesmo as imagens mais simples, mas também porque o texto, justamente por sua incompletude descritiva, requer a imaginação do leitor para recriá-las, o que faz escorrer, para o campo dessa reencenação pensada, a rememoração também das histórias que aquele viveu um dia. O que está contido nas fichas se situa, portanto, simultaneamente aquém e além do poder narrativo das fotografias não vistas.

 

Existe, por fim, um livro, também nomeado de Bibliotheca. Nele não há texto algum, trazendo impressas, contudo, centenas de imagens copiadas dos álbuns antes que estes fossem enclausurados, resumo que justifica ter, esse objeto, o mesmo nome da instalação que o abriga. As fotografias não estão, todavia, identificadas no livro em função de seus referentes ou de suas origens, sendo apresentadas em organização sujeita apenas a justaposições de ordem formal ou simbólica. E, ao separar essas imagens dos suportes que amparam suas impressões originais e lhes conferem sentido social – os próprios álbuns fechados nas vitrines –, a artista as libera, uma outra vez, da função de ser testemunhas da construção de histórias singulares inscritas em um tempo histórico dado, tornando-se, por isso, somente ruínas do curso de vidas passadas. De modo análogo ao que o fazem as organizadas descrições discursivas dos álbuns encontráveis nas fichas catalográficas, a apresentação desordenada e anônima de imagens daqueles extraídas oferece, a quem manuseia casual- mente o livro, a possibilidade de recuperar e projetar, sobre esse novo e vago arquivo de memórias alheias perdidas, as próprias lembranças, por vezes já quase também decompostas. Assim como em bibliotecas quaisquer que guardam livros, aqui é igualmente o visitante que, ao eleger as imagens arquivadas que animam ou refazem a sua memória – como naquelas outras escolhe volumes escritos –, faz desse conjunto de informações algo que pertence a cada um de maneira diversa e que o explica.14 A Bibliotheca não é, portanto, somente uma, mas muitas.

 

A potência de conhecimento que qualquer fotografia guarda não é, então, de todo abafada em função de seu uso como instrumento de substituição da memória e, por conseguinte, como indutor de amnésia. Continuam a pulsar, na sua superfície, informações variadas prontas a serem ativadas como elementos de cognição daquilo  que  ela  apresenta  como  imagem  descarnada. E como a demonstrar tal persistência a contrapelo das evidências, Rosângela Rennó toma de conjuntos de fotografias feitas pela polícia em quatro cenas de crimes – produzidas, portanto, para registrar e investigar tais fatos – e desconstrói cada uma delas em muitas outras imagens. Todos esses pedaços – emoldurados individualmente como diapositivos preparados para projeção – são justapostos sobre mesas ou caixas de luz, solicitando, do observa- dor, a recomposição mental das fotografias relacionadas a cada um dos crimes. Assim esquadrinhadas e interrompidas pelas bordas das molduras de suas muitas partes, as cenas perdem, contudo, forçosamente o seu poder de informar sobre o evento que supostamente registram, posto que não há mais nelas uma hierarquia de valores visuais, levando o olhar a vagar de um a outro fragmento sem saber ao certo onde deve repousar. Tal efeito se sobrepõe, em verdade, à destituição de alteridade dos indivíduos mortos fotografados, já em marcha desde quando suas imagens foram arquivadas como parte de processos criminais. Não por acaso, a essa série de quatro trabalhos é dado o título de Apagamento (2005). É essa obliteração de sentidos e identidades, entretanto, que permite a observação daquilo que não seria percebido caso a integridade da fotografia fosse preservada: papéis em cima de um guarda-roupa, a imagem de uma criança em um porta-retratos, uma roupa jogada no chão, bibelôs em cima de um móvel, a sombra de uma cerca projetada no piso, uma fruta que já não serve, uma janela deixada entreaberta, uma garrafa esquecida em um canto, mesmo os cabelos da perna de uma pessoa morta.

 

Existe, nesse procedimento da artista, algo próximo ao adotado pelo personagem-fotógrafo do filme Blow-up (1966), do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), que recorta e amplia muitas vezes uma fotografia feita ao acaso por suspeitar que nela, em um ponto distante do assunto central da imagem,  reside  a prova de que um crime foi cometido. Em ambos, há a certeza de que as fotografias carregam com elas também um “infrassaber”, coleção de informações parciais e somente sugeridas que são irredutíveis aos fatos nelas apresentados como inequívocos e importantes.15 Há contida, ainda, em tais estratégias a ideia de que uma imagem fotográfica não registra apenas o momento de ocorrência de um fato principal, mas instantes diversos nos quais subeventos se misturam, se modificam e se confundem de modo heterogêneo.16 Embora de impossível demonstração, tal noção é implicada na sobreposição, feita por Rosângela Rennó com algumas das imagens de crimes que ela “apaga”, de fragmentos de fotografias distintas, criando um palimpsesto de cenas que aludem não só a espaços separados, mas, também, a tempos diferentes que coexistem em um mesmo fato. O referente, portanto, não é fixado de pronto em uma fotografia, mas estabelecido, de formas variadas, a partir de seu escrutínio por olhares diversos.

 

É dessa imprecisão e desse poder latente da imagem fotográfica que a artista busca evidências em muitos de seus trabalhos, requisito  importante  para  proceder  à  arqueologia  desse  meio de reprodução de tudo e entender o papel por ele exercido nas relações de sociabilidade. Ao desfocar, granular, apagar, contra-dizer, descentrar, traduzir, fragmentar ou deslocar imagens já existentes e inseridas nos circuitos onde signos se deslocam em velocidade, Rosângela Rennó imobiliza-as e simultaneamente restitui, a quem as olha, o poder de ressignificá-las a partir de uma subjetividade que é, contudo, por elas também formada. Poucas vezes essa vontade crítica foi mais claramente exposta do que na montagem de painéis que abrigam antigas fotografias depois pintadas todas em cor chumbo, dessa maneira obliterando seu poder de registrar ou rememorar o que foi já vivido. Essa Parede cega (2000) é o espaço que talvez melhor simbolize, em sua obra, a impossibilidade de conhecer o passado por meio de imagens bem classificadas e definidas, e que argumenta, de modo mais veemente, pela existência de “margens da visibilidade” em qual- quer fotografia, além das quais nada pode ser mais nela visto.17 Ao querer ultrapassar tais margens, é necessário desistir  da  fé cega depositada na imagem fotografada, suspender seus códigos estabelecidos e entender sua inscrição comprometida no curso da vida. Requer admitir que, mesmo diante da imagem mais nítida, pode-se sempre insinuar nela, pelo pensamento que a percorre e investiga, o que não se conhece ainda.

 

 

1 Os termos arqueologia e genealogia são aqui mencionados no sentido empregado pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que o primeiro serve à investigação da constituição entrelaçada dos campos diversos de saberes, enquanto o segundo pretende desvelar a integração desses com relações sociais de poder. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

 

2 RENNÓ, Rosângela. Depoimento. In: Rosângela Rennó. Belo Horizonte: C/Arte, 2003.

 

3 HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997.

 

4 Fazendo uso dos termos consagrados pelo escritor francês Roland Barthes (1915-1980), é possível afirmar que é o punctum das fotografias desses funcionários (aquilo que atrai o olhar e que é, contudo, de nomeação difícil) que ativa o seu studium (aquilo que as localiza no campo da história e da cultura). BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

 

5 SEKULA, Allan. Reading an archive: photography between labour and capital. In: WALLIS, B. (Ed.). Blasted allegories: an anthology of writing by contemporary artists. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1987.

 

6 Alguns outros artistas têm contestado, na contemporaneidade, a suposta neutralidade dos conhecimentos históricos que os arquivos fotográficos geram. O francês Christian Boltanski (1944), por exemplo, tem demonstrado, por meio de fontes arquivais diversas, o lugar de oblívio a que, ao longo do século XX, grupos étnicos ou sociais foram relegados. Também a norte-americana Carrie Mae Weems (1953) recontextualizou fotografias etnográficas de escravos e de seus descendentes, feitas nos Estados Unidos no século XIX, para acentuar seu papel na construção de identidades raciais discriminadas.

 

7 Vera Cruz insere-se em uma linhagem de trabalhos de artistas brasileiros contemporâneos que anotam o valor nulo que o corpo social do país confere aos povos indígenas, na qual se destaca o Zero Cruzeiro (1974-1978), de Cildo Meireles (1948), que estampa, em uma de suas faces, a imagem de um índio. Na outra face dessa nota sem valor fiduciário algum, o artista exibe, em comentário eloquente sobre valores sociais vigentes no Brasil, a imagem de um interno de instituição psiquiátrica.

 

8 Essa anulação fica igualmente apontada no objeto Afinidades eletivas (1990), em que fotografias de dois casais são articuladas de modo a parecerem estar, à visão de quem circunda o trabalho, se misturando e confundindo.

 

9 SONTAG, Susan. On photography. Londres: Penguin Books, 1979.

 

10 CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

 

11 ALMEIDA, Bernardo Pinto de. Imagem da fotografia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

 

12 O progressivo arquivamento de fotografias em álbuns digitais não altera a natureza dessa inerente disfuncionalidade. Por permitir maior e mais rápido acúmulo irrefletido de imagens, torna-a somente mais ampla ainda.

 

13 Segundo esse código cromático inventado, vermelho indica a Europa; verde, a Oceania; marrom, a Ásia; laranja, a África; azul-escuro, as Américas do Norte e Central; e azul-claro, a América do Sul. Uma descrição e uma análise detalhadas desse trabalho são feitas em MELENDI, Maria Angélica. Bibliotheca ou das possíveis estratégias da memória. In: RENNÓ, Rosângela. O arquivo universal e

outros arquivos. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

 

14 MANGUEL, Alberto. A biblioteca, à noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

15 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

 

16 DERRIDA, Jacques. The photograph as copy, archive and signature. European Photography, v. 19/20, Winter 1998/Summer 1999.

 

17 ALMEIDA, Bernardo Pinto de. Imagem da fotografia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

INVENÇÃO, MEMÓRIA, SONHO

MESMO DIANTE DA IMAGEM MAIS NÍTIDA, O QUE NÃO SE CONHECE AINDA

Valeska Soares

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula.

Italo Calvino

 

Da obra de Valeska Soares, pode-se esperar poucas certezas semânticas. O que ela oferece, em doses medidas, mas nunca menos que o bastante, são sugestões, estados de ânimo, pequenos estímulos à construção de tramas particulares de entendimento. Não se encontra nela, ademais, apego excessivo a estilo ou técnica, matéria ou tema. Existe, ao contrário, a promoção deliberada do trânsito entre formas distintas do conhecimento. A despeito, entretanto, de que meio ou procedimento a artista faça uso – fotografia ou cheiro, texto ou arquitetura –, sua produção sempre avizinha o fascínio exercido por ideias ou coisas e a desorientação que a excessiva proximidade delas engendra. Promove, dessa maneira, a diluição dos limites tênues que apartam o prazer do saber do entorpecimento do juízo crítico.

 

A instalação Détour (2002) é exemplar da imprecisão e da irredutível singularidade com que, para Valeska Soares, cada um constrói o discernimento sobre o entorno sensível que habita. Em uma referência possível à fabula de Lewis Carroll (Alice através do espelho e o que Alice encontrou lá), uma porta giratória leva o visitante a entrar em uma sala iluminada e ampla onde duas das paredes são recobertas por espelhos; situadas em faces opostas do ambiente, refletem uma a outra e tudo o que entre elas se posicione. Nas demais paredes, imagens fotográficas de um portal cerrado e de seu reflexo sobre o piso são impressas – enfileiradas – ao longo de toda a sua extensão, multiplicando-se virtualmente para um e outro lados do recinto. Não há paralelismo, porém, entre os dois planos espelhados, submetidos a sutil desvio de prumo. Não há também, portanto, repetição infinda de imagens idênticas. Há, em seu lugar, proliferação especular de imagens – seja dos portais, seja de quem a sala ocupa – rumo a lugares cuja visão gradual- mente escapa aos olhos do visitante. A ilusão de reflexo circular urdida pela artista cria túnel virtual do qual o olhar apreende somente um segmento; todo o resto, como Alice logo aprendeu quando entrou na “casa do espelho”, é preenchido por invenção, memória e sonho.

 

De pontos diversos desse ambiente descontínuo, emanam, ainda, sons de vozes distintas que contam uma mesma história por todo o tempo. É a história de Zobeide, cidade criada pelo escritor Italo Calvino; nela, as ruas “giram em torno de si mesmas como um novelo”, quase uma armadilha para estranhos. Ao deslocar-se pela sala, o visitante negocia as ênfases e os tons de vozes tecidos pelo percurso de vida de cada um dos que relatam a ficção. Cacos de uma narrativa inteira sobrepostos um ao outro em atrito, essas falas são juntadas de forma única e nova apenas na mente de quem despenda com o trabalho algum tempo. Há, nessa configuração do ambiente, portanto, um convite inequívoco à participação do observador, sem o que o esforço da artista se resumiria à construção objetual fortuita.1 E é justo nessa aposta na potência da imaginação do outro que se ancoram vários outros trabalhos de Valeska Soares, alguns dos quais exploram – como Détour – o poder de sedução e estranhamento detido por super- fícies reflexivas: poder para promover o ajuste incômodo entre a ideia que se tem dos demais e de si mesmo e o que de perto se vê nelas refletido.

 

A ambiguidade desse processo de cognição é sugerida, de maneira abrangente, mas concisa, no trabalho Fainting couch (2002). Um austero divã feito de aço perfurado e polido atrai o olhar de quem dele se acerca, devolvendo-lhe o reflexo de um rosto em dúvida sobre a natureza ou função daquele objeto. Colocado sobre uma de suas extremidades, um travesseiro de tecido serve de apoio gentil à cabeça – lugar suposto como o da razão e do discernimento –, convidando o visitante ao recolhimento e ao aprendizado regulado da ciência. Da superfície perfurada do divã, exala, contudo, um delicado, mas insinuante, aroma de flores, depositadas supostamente no interior do móvel. Iniciador de um processo de associação mnemônica de sentidos e afetos, o perfume distrai e enturva, em graus variados, a inquisição racional simbolicamente sugerida pelo divã posto no meio da sala. Por ser feito de matéria fria e possuir desenho reto, o divã lembra também, entretanto, mesa de necropsia; o aroma agradável de flores, por sua vez, pode ser associado aos adornos postos junto aos mortos. Há, nessa aproximação simbólica possível, certa perversidade da artista (desde muito tempo presente em sua obra), sempre disposta a criar, com seus trabalhos, mais desconforto de ideias que aconchego para os corpos. Diante de estímulos tão díspares, mas igualmente fortes – próprios de um mundo onde hierarquias se reconstroem a toda hora –, o trabalho de Valeska Soares parece, portanto, confrontar a possibilidade de construção de um método unívoco de conhecimento: ao invés do exato, que se apreenda o impreciso que ronda cada passo dado; ao invés da busca do certo, que se assuma o risco de perder-se em rotas diferentes.

 

Essa indistinção de sentidos está ainda claramente presente nos trabalhos, produzidos há mais tempo, em que Valeska Soares instalou pequenos nichos feitos de cera de abelha em paredes de salas expositivas. Em uma ocasião, pôs um deles próximo a milhares de rosas vermelhas deitadas sobre o piso (Sem título (From fall), 1994), obrigando o visitante a pisar nas flores caso quIsesse aproximar-se da cavidade oca criada – outra perversidade inequívoca que fazia liberar a fragrância vibrante, mas gradual- mente nauseabunda, das rosas. Em outro momento, untou um conjunto disperso de nichos com óleos de perfumes diversos; em vez de imagens religiosas ou profanas, contudo, os nichos vazios não devolviam coisa alguma ao olhar interessado do visitante: o oferecimento era para o outro sentido, capturado sem aviso e envolvido em aromas tão agradáveis de pronto quanto excessivos com o passar do tempo.2 Retomando a forma do nicho após anos, a artista o faz dessa vez em aço inoxidável, abandonando a textura porosa e orgânica da cera pela assepsia própria de uma matéria lisa e dura (Sem título (da série Vanishing point), 2002). De novo, porém, nada o preenche; nenhum cheiro agora, ademais, dele se desprende. Mesmo a superfície reflexiva do nicho não devolve, a quem pousa nele o olhar, imagem que confirme o que usualmente se espera da experiência do espelhamento. Sua concavidade e colocação na sala distorcem as imagens nele refletidas, confundindo quem busca ali uma forma de (auto)conhecimento, mas enxerga apenas fragmentos de uma identidade que não encontra sequer abrigo.

 

É da conflituosa afirmação de identidades que trata também, embora em registro distinto – não mais o indivíduo, mas o coletivo –, o trabalho feito por Valeska Soares para o projeto InSite, realizado nas cidades fronteiriças de Tijuana (México) e San Diego (Estados Unidos) (Picturing paradise, 2000). Fronteiras são locais de espreita, de contato e de confronto com o outro; são espaços de formação de ideias de si e de demarcação de diferenças. São ainda, e potencialmente, locais de passagem e de incessante permuta de bens e desejos. Fronteiras, entretanto, são igualmente espaços de exclusão e de apartamento. A divisa entre Tijuana e San Diego condensa, de vários modos, a ambiguidade que permeia e preside a relação entre diferentes. Tão próximas uma da outra quanto distantes, essas cidades se unem, no campo simbólico e da geo- política, pelas mesmas razões que são fisicamente separadas de modo tão ostensivo (potenciais migrantes vindos de Tijuana são proibidos de ultrapassar a fronteira, sob o risco de serem detidos ou mesmo alvejados por guardas estadunidenses que a guardam da mácula de sua transposição não autorizada). Ao sobrepor, com placas de aço inoxidável polidas, uma porção da cerca de arame que obstrui as bordas entre as duas cidades, Valeska Soares faz com que a matéria reflexiva que usa mimetize o ambiente à sua volta, desmanchando virtualmente a cerca opressiva e criando, quando vista de certa distância, a impressão de que é possível cruzar o espaço que separa um e outro território através de área desimpedida. Ao invés, contudo, do que aconteceu a Alice em sonho, aos habitantes de Tijuana o espelho não se dissolve em brumas, e a ilusão de passagem é desfeita em pouco tempo. Mirando-se com atenção o trabalho da artista, percebe-se que há, impresso sobre as superfícies polidas, um outro texto de Italo Calvino; embora nele cidades sejam definidas como lugares de trocas (de mercadorias, palavras, vontades e memórias), a proximidade da fronteira nega a descrição poética, e o que se vê é apenas a imagem invertida do próprio isolamento: uma identidade feita por continuada sub- tração de confrontos com o que é novo e diverso. Trabalho cujos sentidos são criados somente no lugar onde é construído, esse acesso inventado sugere o desmanche de um espaço de interdição para reafirmar, em seguida, a solidez e a permanência de uma barreira entre povos vizinhos.

Ainda que isolado do contexto geopolítico que torna ambíguas as propriedades das matérias reflexivas, outro trabalho da artista também faz dessas superfícies um misto de passagem e de impedimento. Recobrindo uma parede inteira de uma sala com placas regulares de espelhos, Valeska Soares desdobra o espaço e amplia o mundo, fazendo caber nele igualmente o seu avesso (Bibliografia espelho, 2002). Ao aproximar-se desse lugar de ilusão e vertigem, percebe-se, todavia, que sobre cada uma dessas placas espelhadas também há algo escrito, o que retira da superfície do trabalho o senso de profundidade e faz o olho enxergar com clareza os limites de movimento do corpo. Cada fragmento impresso se resume a dados bibliográficos de livros que possuem, em seu título, a palavra “espelho”. A leitura dessa extensa e variada bibliografia assentada sobre a parede leva a uma confluência gradual entre a palavra ali posta e a coisa por ela descrita, construindo inebriante espiral cognitiva feita do pensado e do sentido. Permite ademais que, das tantas alusões à natureza ou à ficção contidas nos títulos daqueles livros, outras narrativas se criem, abrindo passagens simbólicas naquela parede dura e levando, quem queira, a inventar significados próprios para o que, ao mundo, oferece a artista.

1 Método de construção semelhante é utilizado no trabalho Tonight (2002). Ao invés de vozes que se misturam, contudo, são as imagens filmadas de várias pessoas, dançando sozinhas em um

mesmo local e ao som de uma mesma música, que são artificialmente sobrepostas, provocando encontros e afastamentos virtuais entre elas. Cabe a quem vê esses quase espectros imaginar narrativas que articulem (ou não) suas respostas corporais à música tocada.

 

2 A atração imediata e a repulsa gradual que o excesso de perfume provoca foi também explorada pela artista na instalação Vanishing point (1998), formada por quinze tanques de aço – dispostos em uma sala ampla de modo a simular a configuração de um jardim – preenchidos com uma mistura densa de óleo e perfume. Após breve permanência no ambiente, o que fora inicialmente percebido como aroma agradável se tornava, para o visitante, cheiro intoxicante.

UMA ÉTICA DA ILUSÃO

UMA ÉTICA DA ILUSÃO

Vik Muniz

Arte Bra Crítica Moacir dos Anjos

No livro Ficciones, Jorge Luis Borges narra os feitos literários de um certo Pierre Menard, escritor natural de Nîmes, cuja produção dataria do primeiro terço do século XX. Embora desprezado por  seus  contemporâneos,  o  autor  teria  realizado  obra  heróica e ímpar: escrever os capítulos nono e trigésimo oitavo – além de um fragmento do capítulo vinte e dois – da primeira parte de Dom Quixote, fazendo-os coincidir, “palavra por palavra e linha por linha”, com aqueles escritos por Miguel de Cervantes. Não haveria em tal façanha, contudo, charlatanismo ou loucura, mas a aplicação de método árduo para reconstruir, por deliberação própria, uma obra que havia sido feita, trezentos anos antes, de modo  espontâneo.  Somente  a  vida  breve  o  teria  impedido de levar a bom termo o seu ambicioso projeto de aproximar, a ponto de não se distinguir neles diferença alguma, original e reprodução.1 Esse conhecido conto de Jorge Luis Borges exprime, exemplarmente, o desejo que permeia  parte  relevante  da  própria obra do escritor argentino: percorrer e habitar, por seus escritos, a  distância  curta  que  aparta  verdade  e  ficção.  É  justo nesse espaço exíguo e denso que também se desenvolveu, ao longo de década e meia de atividade intensa, a obra visual de Vik Muniz. Apoiado desde cedo em ideias tecidas com argúcia e engenho, o artista criou, nesse período, conjunto singular de trabalhos que expressam rara coerência de intento. Pouco afeito aos limites convencionais que separam processos construtivos, articulou saberes e  meios  diversos  para  formular  uma  poética do olhar diante de coincidências e desacertos que encontra entre a realidade e sua representação.

 

Realizados quase no início da trajetória do artista, há dois trabalhos que, juntos, anunciam a questão central com que Vik Muniz iria se ocupar nos anos seguintes. Em um deles – Two nails (1987) –, um papel fotográfico é preso à parede por um prego que, para tanto, o fura; impressa nesse mesmo papel, a imagem de um outro prego – idêntico ao primeiro – também o trespassa, embora dessa vez virtualmente apenas. De construção simples, nesse trabalho o artista inquire, sem apresentar respostas prontas, o que faz uma imagem ser distinta daquilo que representa. Já no trabalho The best of life – feito entre 1988 e 1990 –, Vik Muniz reproduz, em desenhos feitos com carvão e valendo-se somente de sua memória ativa, fotografias de traumas e acertos humanos inúmeras vezes vistas em jornais, revistas e livros: a menina vietnamita com o corpo queimado pelo napalm americano, o astronauta pisando na lua ou o beijo em Times Square que celebra o fim de um conflito. Fotografa em seguida esses desenhos e promove o confronto entre o registro impresso de sua memória e as lembranças que o observador possui das imagens que serviram de modelo ao artista. Qualifica, assim, a ambiguidade da relação entre a fotografia e o seu referente em termos do desacordo entre imagens que constrói e fixa em papel fotográfico (seus trabalhos) e a memória coletiva sobre o que essas imagens evocam ou copiam.

 

São dois os procedimentos básicos que, a partir de então, orientam o ofício de Vik Muniz. Utilizando materiais efêmeros ou frágeis e valendo-se de destreza inequívoca na construção de objetos e no desenho, recria imagens extraídas de um repertório visual consagrado pela história da arte ou informado pelo cotidiano: com calda de chocolate, refaz uma reprodução de A última ceia, de Leonardo da Vinci; com poeira colhida em salas e galerias do Whitney Museum, replica, a partir do registro de exposição do acervo do museu, uma escultura criada por Donald Judd; e, com açúcar, copia imagens fotográficas (feitas pelo próprio artista) de crianças que vivem junto a plantações de onde se extrai a matéria-prima do adoçante. Fotografa depois essas reconstruções perecíveis e as descarta por inteiro em seguida, preservando apenas o seu registro. Tal método usado para refazer e fixar as imagens escolhidas promove a aproximação entre temporalidades e atributos distintos. Enquanto a recriação material dos modelos eleitos se faz de modo lento (ou quase, ao menos), mobiliza a perícia manual e atrai toda a atenção do olhar para a sua feitura, seu registro fotográfico é instantâneo, não implica destreza alguma e acontece no momento exato em que o obturador da câmara veda, ao artista, a visão da imagem por ele construída. Por meio dessa operação complexa e ao mesmo tempo cândida, Vik Muniz enfraquece a aderência forte que se esperaria existir entre as imagens fotografadas e aquelas que primeiro lhes serviram de matrizes, tornando o meio fotográfico mais opaco e forçando o alongamento do tempo necessário para que o observador defina o que está sendo, de fato, representado ali.

Após o reconhecimento vago, mas quase imediato de imagens já vistas em algum outro lugar – confirmando, portanto, a longevidade assegurada a elas na memória comunal –, a atenção de quem se defronta com os trabalhos do artista se volta ao desvelamento dos processos que emprega na sua recriação, provocando um envolvimento prolongado e próximo do observador com as fotografias que registram os resultados de tais construções. Ao deparar-se com a fotografia de uma pintura de Jean-Baptiste Corot refeita pelo delicado enovelamento de linhas de cerzir, o olhar não se reporta mais somente ao assunto nela descrito, mas, alternada e forçosamente, também ao meio inusitado pelo qual Vik Muniz a reapresenta. O próprio título do trabalho – 16.000 jardas (Le Songeur, a partir de Corot) – faz referência explícita à quantidade de linha usada nessa reconstrução cuidadosa de uma paisagem pintada um século e meio antes. Interesse similar é criado diante de fotografias de um monocromo de Yves Klein reconstruído pelo ajuntamento de papéis retirados de escalas pantone, de um prosaico balanço infantil reproduzido em arame ou de pinturas de Gustave Courbet refeitas com terra apenas.

 

Particularmente reveladoras do descolamento que o artista promove entre as imagens que cria e os seus referentes são, entre- tanto, suas fotografias de um trabalho de Andy Warhol refeito com pimenta-do-reino, curry, pimenta-malagueta e pimenta-de-caiena, o políptico chamado Liz. É certo que o processo serigráfico de reprodução fotomecânica – técnica preferencial do artista norte-americano – já implicava o esvaziamento da presença vívida das imagens humanas que  escolhia  como  modelos  (fotografias de celebridades como Marilyn Monroe, Jacqueline Kennedy ou, no trabalho destacado aqui, Elizabeth Taylor), diluindo-as no granulado próprio da técnica de impressão usada e cobrindo-as de cores tão variadas quanto fortuitas. O material utilizado por Vik Muniz nas duplicações que faz desse trabalho – em que os grãos das pimentas mimetizam os pontos originalmente impressos, suas diversas cores evocam os tons que entintavam papéis e telas de Andy Warhol e são muitas as associações simbólicas que despertam – enfraquece ainda mais, contudo, a soldagem suposta entre a memória de uma imagem conhecida (o rosto da estrela de cinema) e a sua reprodução fotográfica, inserindo, entre elas, camada espessa de sentidos. Ademais, a imagem lembrada do trabalho de Andy Warhol (cores, texturas, tamanho) é aqui também posta em confronto com os registros de sua recriação executada com o emprego de especiarias, fazendo com que, além de Elizabeth Taylor, essa conhecida reprodução serigráfica seja referente das fotografias de Vik Muniz.

 

De modo similar, reconstruir, em perfeitas maquetes, traba- lhos de land art feitos quase três décadas antes por Robert Smithson (Spiral Jetty) ou Walter de Maria (Lighting field) somente para fotografá-las – criando imagens muito semelhantes às fotografias em que esses célebres trabalhos hoje existem como objetos de arte – transforma o que originalmente eram registros de intervenções feitas no espaço aberto em referentes para as fotografias da série apropriadamente intitulada Earthworks no Brooklyn, em uma alusão ao local onde o artista trabalha. Por meio dessa alteração sutil de sentidos, Vik Muniz dilata a distância perceptiva entre as imagens daquelas intervenções ambientais e a sua existência física nos lugares onde foram realizadas.

 

O desconforto e o fascínio em relação aos problemas conceituais que esse tipo de fixação de imagem envolve – em que a representação de um trabalho efêmero ou de difícil acesso toma o seu lugar como artefato de arte – levou o artista a não se deter apenas em fotografar miniaturizações de trabalhos já conhecidos de land art. Passou a fazer maquetes de trabalhos supostamente construídos ao ar livre e também supostamente fotografados de cima ou de longe, mas que, ao contrário daqueles que havia previamente copiado, nunca haviam existido de fato, sendo em vez disso inventados. Ademais, no lugar das imagens sem referentes na vida comum – próprias da tradição de land art –, esses trabalhos reproduziam somente signos reconhecíveis de coisas

 

banais, tais como um par de meias, uma colher ou um par de óculos pousado sobre uma superfície indistinta. Em paralelo a tais construções miniaturizadas, Vik Muniz deu ainda início, entretanto, a representações feitas em escala semelhante à dos trabalhos que lhe haviam servido antes de modelo, replicando, ele próprio, os procedimentos operosos empregados na sua construção. Usando os espaços amplos e os equipamentos de uma área de extração de minério, desenhou, no solo arenoso, gigantescas imagens icônicas de objetos comuns e de tamanho original modesto, tais como um envelope, uma chave ou uma tesoura. Feitas a partir de um helicóptero – pois é do alto que tais trabalhos se tornam legíveis como imagens –, suas fotografias registram os desenhos simples cavados intencionalmente na terra e também sua inserção nas paisagens formadas, com o passar dos anos, pela própria atividade extrativa.

 

Nesses dois conjuntos de trabalhos – sejam os registros de maquetes que inventa, sejam as fotografias de imagens cavadas no solo –, Vik Muniz não faz referência apenas aos experimentos contemporâneos de land art, mas igualmente às práticas antigas de desenhar na terra, como os desenhos Nazca no Peru ou os Celtas na Inglaterra. Em razão disso, o espaço simbólico que o artista instaura entre as imagens dos objetos banais que toma como modelos e o olhar interessado de quem vê as fotografias que cria é atravessado pelos significados daqueles experimentos artísticos feitos décadas antes e, simultaneamente, de práticas antigas cuja classificação é ainda incerta. O lugar que foi já reservado ao transcendente ou ao sagrado é, contudo, ocupado nesses trabalhos – pertencentes à série Pictures of earthworks – por aquilo que lembra uso cotidiano ou ordinário. É relevante notar também que, ao olhar ligeiro e leigo, não há quase distinção processual possível entre uma fotografia que registra um desenho feito com areia sobre uma mesa (por exemplo, de uma colher) e uma outra que registra um gigantesco desenho feito diretamente no solo (por exemplo, de uma chave). Aproximados por sua ilusória semelhança construtiva e pelo tamanho similar da impressão de seus registros fotográficos, esses trabalhos, exibidos lado a lado, confundem o olhar e põem em perspectiva a própria escala do observador diante das coisas que o cercam. Fazendo confusão deliberada entre os tamanhos das imagens que decide replicar, os processos usados para reconstruí-las e os registros fotográficos que desses processos resultam, Vik Muniz promove a ruptura da equivalência escalar do mundo e faz, desse expediente, parte importante da ilusão que se propõe a criar.

Apesar da atração que essas operações construtivas ou o emprego de materiais estranhos à arte despertam, não há, nesses procedimentos de representação, empenho do artista para atenuar o interesse sobre os temas contidos em cada uma das imagens apropriadas. Modificando o que usualmente se espera do meio fotográfico – visto, pelo senso comum, como denotativo somente

–, Vik Muniz, em verdade, apenas induz o olhar a afastar-se, por um lapso de tempo, dos referentes que esse meio descreve, sugerindo, nas imagens refeitas, sentidos novos e uma retórica distinta. Ao associar o conteúdo das imagens que escolhe às propriedades formais e simbólicas dos processos e materiais com os quais as reproduz – efetuando o registro  fotográfico  dessa  tensa  junção em seguida –, o que o artista faz é criar significações até então não existentes. Em vez de dissolver a importância do assunto, a investigação cuidadosa das imagens reconstruídas  –  estimulada pelo encanto ou estranheza acrescidos a elas por seu modo novo de apresentação – permite enxergar outra vez, ainda que de maneira diversa de como eram conhecidas antes, cenas, figuras ou  coisas  tornadas  invisíveis  por  sua  excessiva  familiaridade. A despeito, portanto, das alterações ou adições de sentidos que os mecanismos utilizados para reproduzir uma imagem  provocam, o seu caráter icônico é preservado nas fotografias de Vik Muniz.2 O que pode haver de enigmático no sorriso da Monalisa ou de banal em um binóculo é mantido na reconstrução dessas imagens com pasta de amendoim e geleia, em um caso, e com terra, gravetos e folhas, no outro. E mesmo que a natureza dos materiais com que recria imagens as torne por vezes cômicas ou as “desclassifique”, o caráter com frequência transiente dessas substâncias termina por afirmar, por oposição, a integridade dos referentes usados pelo artista.

 

É preciso bem qualificar, assim, que tipo de ilusionista é Vik Muniz. Se não escamoteia do observador os métodos de construção que usa – todos passíveis de serem mentalmente reconstituídos por quem vê com atenção suas fotografias –, tampouco sonega ou disfarça a origem das imagens que reproduz. O olhar atento identifica as substâncias empregadas (seja ketchup, espaguete ou cinzas) e, em graus variados – a depender da cultura visual do observador –, também as imagens matrizes. Sem propor hierarquias novas, o artista apenas confunde os sentidos antigos das coisas com outros novos e busca exprimir, visualmente, a “pior ilusão possível”, aquela que, apesar de efetiva, situa-se no limite de seu desmanche.3 Promove, contra todas as expectativas que o significado do termo autoriza, uma ética da ilusão, na qual o que se esconde em um instante se mostra evidente em seguida.

 

Os efeitos concorrentes de desconforto e identificação percebidos, a um só tempo, diante das fotografias de Vik Muniz – testemunhos da ambiguidade com que reapresenta, para todos, o repertório visual do mundo – dependem muito da articulação certeira entre os ícones de que se apropria e os meios usados para reproduzi-los. Não há regras fixas, contudo, para promover esse encontro sinérgico entre mensagem e meio. Por vezes, são imagens com que o artista convive por razões diversas que indicam os materiais mais adequados à sua representação, como é o caso da série Crianças de açúcar, em que a substância usada informa algo que não estava explícito nas fotografias singelas que lhe serviram de modelo. Em outras ocasiões, são características intrínsecas a materiais do cotidiano que os fazem aptos a representar imagens caras a Vik Muniz e que são, por isso, escolhidos em meio a outros tantos:4 como o algodão se presta a imitar nuvens, é usado para criar imagens “equivalentes” às conhecidas fotografias feitas por Alfred Stieglitz; como a linha é flexível e delgada o bastante para reproduzir intrincadas paisagens, é ela a matéria usada para refazer vistas pintadas por Claude Lorrain ou por Gerhard Richter; e como o arame serve bem para repetir, em três dimensões, imagens simples antes traçadas sobre uma superfície plana, é ele que torna possível a mudança de presença física de objetos tão diferentes como uma lâmpada, um cinzeiro ou uma gaiola.

Não é somente na preservação das imagens usadas ou na adequação entre os fatos nelas descritos e os aspectos formais das substâncias com que são refeitas que se funda, entretanto, o interesse dos trabalhos do artista. São, sobretudo, os ruídos simbólicos gerados pelo avizinhamento entre os referentes dos trabalhos (imediatos e distantes) e os meios empregados para a sua reconstrução – aliados à inesperada relação escalar com que são, com frequência, postos juntos e ampliados em papel fotográfico – que fazem, das fotografias de Vik Muniz, plataforma privilegiada para a emergência daquilo que imagens e materiais, apartados, não podem enunciar. Entre os vários trabalhos em que essa tensão emerge, alguns se destacam por sua eloquência, como é o caso da série O depois, na qual fotografias prosaicas de meninos e meninas de rua reproduzidas com a sujeira que sobra do carnaval põem em atrito fatos próximos, mas tratados pela sociedade que os gera como se fossem distantes. A desproporção de tamanho entre o lixo e as imagens das crianças na impressão fotográfica reforça ainda, fazendo uso de original sintaxe, os sentidos ambíguos que o trabalho possui. Refazer uma fotografia de Sigmund Freud com calda de chocolate estimula, por sua vez quase como paródia ou cartum –, associações complexas entre desejo e comida fundadas na psicanálise e que são hoje objeto de consumo pretensamente culto. Da mesma forma, a reprodução, com massa de modelar, de imagens pornográficas colhidas na Internet – trabalhos que compõem a série Erotica – aproxima o lúdico do sensual, confunde as marcas dos dedos impressas na massa com as curvas dos corpos desnudos que reproduzem, e faz das cores vivas da matéria sintética um substituto para os tons variados de peles anônimas que se roçam. É evidente, aqui também, a discrepância entre o tamanho supostamente reduzido das reconstruções das imagens feitas com massa de modelar e as suas impressões fotográficas, muitas vezes maior. O que foi toque sutil de mãos se torna, nas ampliações feitas, representação tosca, mas crível, de largas pinceladas, tornando esses trabalhos elo que ata, no campo ótico, fotografia e imagem pintada. Afastando, de suas fotografias, o sentido “óbvio” das imagens de que se apropria sentido que alcança, de modo desimpedido e claro, mesmo o observador desatento –, o artista cria passagens de entendimento para a emergência do sentido “obtuso” que elas embutem – sentido estranho a qualquer instância realista de representação e em estado de reformulação constante.5

 

É, portanto, por ser campo de significados latentes que se alternam e se expandem que a obra de Vik Muniz – embora represente pessoas e coisas do mundo – recusa adesão a dois dos principais regimes de representação visual que, desde o Renascimento, informam a arte do Ocidente: o perspectivismo idealista cartesiano, cujo primeiro intérprete teórico foi Batista Alberti, e a tradição holandesa de pintura descritiva e empírica, que tem em Jan Vermeer talvez o seu maior expoente.6 Mesmo quando se apropria de imagens fundadas na idealização geométrica do espaço (trabalhos feitos, por exemplo, por Giovanni Piranesi ou Albrecht Dürer), a natureza mundana dos materiais com que as reproduz se contrapõe à ilusão ótica que os originais proporcionavam a quem os via. Refeitas com linha ou com centenas de alfinetes de costura, as duplicações fotografadas de Vik Muniz desorientam o olhar e confundem a separação virtual entre a superfície e o fundo das cenas ali contidas. Subvertida pelo ato de prestidigitação do artista, a narrativa monocular e estática que as imagens originais traziam cede, simbolicamente, à maleabilidade própria dos materiais com que são reproduzidas, abrindo-se a embates diversos com os sentidos.

De maneira análoga, também o regime visual inaugurado pela pintura holandesa do século XVII é incapaz de servir de modelo para as representações fotográficas criadas por Vik Muniz. Ainda que algumas características do meio de fixação de imagens que usa (a fotografia) tenham sido antecipadas por essa tradição de pintura – tais como a ênfase em superfícies fragmentadas e os enquadramentos arbitrários de um mundo a ser primaria- mente apenas descrito –,7 a crença desses pintores (Jan Vermeer, Rembrandt, Jan Steen) na perfeita legibilidade das coisas repre- sentadas é incompatível com a ambiguidade cognitiva que os trabalhos de Vik Muniz estabelecem como típica da visualidade do mundo que habita. Observadas de longe, as fotografias afirmam o desenho nítido de pessoas e objetos; vistas de perto, “quando o olho é tato”,8 reduzem o que está em suas superfícies descrito a somente comida, poeira ou outra substância qualquer, em uma aproximação corporal dos trabalhos.

 

Mais de acordo com essa natureza ambígua da obra do artista está, talvez, o regime visual barroco, oposto aos outros dois por assumir a opacidade da realidade que representa e a impossibilidade, portanto, de retratá-la de modo preciso. Tomando a ambivalência como valor do mundo, Vik Muniz não busca reduzir a experiência visual a uma dimensão apenas, tampouco agrupar a diversidade de leituras que uma imagem suporta – a apreensão de seu referente, da matéria em que este se apresenta, e de seus vários significados – em uma impossível síntese. Fascinado pelas dobras, fissuras e frestas que maculam e informam a faculdade do olhar, o artista debruça-se sobre a desorientação da visão diante do que não pode apreender de pronto e sobre o caráter quase extático do reconhecimento dessa insuficiência. Aposta, por isso, no engajamento demorado do observador diante de seus trabalhos e na carnalidade da experiência visual contemporânea.

 

 

1  BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote. In: _. Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores, 1969.

 

2 COCCHIARALE, Fernando. Sobre a poética de Vik Muniz: matéria, imagem e memória. In: Vik Muniz. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2001. [Catálogo].

 

3 MUNIZ, Vik; ASHLEY, Charles. Vik Muniz and Charles Stainback: a dialogue. In: Vik Muniz. Seeing is believing. Santa Fé: Arena Editions, 1998.

 

4 MUNIZ, Vik; ASHLEY, Charles. Vik Muniz and Charles Stainback: a dialogue. In: Vik Muniz. Seeing is believing. Santa Fé: Arena Editions, 1998.

 

5 BARTHES, Roland. O terceiro sentido. In _. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

 

6 JAY, Martin. Scopic regimes of modernity. In: FOSTER, H. (Ed.). Vision and visuality. Dia Art Foundation. Discussions in contemporary culture. Number 2. Seattle: Bay Press, 1988.

 

7 JAY, Martin. Scopic regimes of modernity. In: FOSTER, H. (Ed.). Vision and visuality. Dia Art Foundation. Discussions in contemporary culture. Number 2. Seattle: Bay Press, 1988.

 

8 MELO NETO, João Cabral de. Escritos com o corpo. In: ______. Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961.

BIBLIOGRAFIA

BIBLIOGRAFIA

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Inventário de gestos. In: Mauro Piva. São Paulo: Galeria Fortes Vilaça, 2005.

 

Adoração. In: Adoração. Nelson Leirner. Recife: Prefeitura do Recife, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), 2003.

 

O atelier como arquivo. In: Catálogo da 26ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2004.

 

 

Olhar a poeira, por exemplo. In: Rivane Neuenschwander. Recife: Prefeitura do Recife, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), 2003.


Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda. In: Rosângela Rennó. Recife: Prefeitura do Recife, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), 2006.

Invenção, memória, sonho. In: Valeska Soares. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.

Uma ética da ilusão. In: Vik Muniz: obra incompleta. Rio de Janeiro: Editora Biblioteca Nacional, 2004.

CRÉDITOS

CRÉDITOS

TÍTULO DO PROJETO

ARTE BRA CRÍTICA Moacir dos Anjos

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Luiza Mello

Marisa S. Mello

DESIGN

Tecnopop - Alexsandro Souza

PROJETO E PRODUÇÃO

Automatica Edições

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO

Luisa Hardman

Carolina Moreira

REVISÃO

Duda Costa

FOTOGRAFIA

Brígida Baltar

Eduardo Ortega

Flavio Lamenha

Francisco Baccaro

Gabriele Basilico

Helder Ferrer

Holger Niehaus

José Maria Palmiere

Léo Caldas

Michael Strasser

Nicolas Flussler

Pat Kilgore

Paulinho Muniz

Robson Lemos

Rômulo Fialdin

Vik Muniz

FOTOCOLABORAÇÃO

Fábio Del Re

Juliana Rocha

GESTÃO

Marisa S. Mello

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