Eduardo Frota é o sexto artista abordado pela coleção ARTE BRA, coordenada pela Automatica. A coleção recupera o conjunto dos trabalhos realizados por artistas contemporâneos atuantes, principalmente, a partir da década de 1980.
O texto crítico inédito foi elaborado por Marcelo Campos, que, ao longo de diversas conversas com Eduardo, traçou os caminhos percorridos pelo artista ao redor do país e as principais questões que sua obra suscita. Os textos reeditados foram escritos pelos críticos Moacir dos Anjos, Agnaldo Farias e Paulo Herkenhoff. O poeta e músico Ricardo Aleixo sintetiza o processo de criação de Eduardo, através dos carretéis, que dá título ao seu poema. No caderno do artista, são apresentados estudos para projetos ainda não realizados, com desenhos, avaliações técnicas e maquetes.
Na entrevista é possível ter um panorama mais geral sobre as principais proposições do artista ao longo do tempo, desde sua metodologia de trabalho e posicionamento no interior do campo artístico, como as experimentações formais e poéticas do artista. Por fim, a cronologia nos permite ter uma dimensão completa da trajetória de Eduardo Frota e nos ajuda a preencher as lacunas que ainda não haviam sido abordadas ao longo do livro.
Capa
Texto inédito
Cronologia
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EDUARDO FROTA nasceu em Fortaleza, em 1959, e iniciou sua produção artística no final da década de 1970 e início dos anos 1980. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1978, onde fez o curso Intensivo de Arte/Educação (CIAE) da Escolinha de Arte do Brasil (EAB), e cursou Licenciatura Plena em Educação Artística pelas Faculdades Integradas Bennett, além de frequentar cursos e oficinas no MAM/RJ. Viveu por muitos anos no Rio, regressando a Fortaleza em 1992, onde vive até hoje. Participou da 3ª Bienal do Mercosul (Porto Alegre, RS, 2001) e integrou a XXV Bienal de São Paulo (2002).
Sua obra incorpora as dimensões lógica e ética, condicionadas à sua poética. A ênfase no rigor técnico-formal empreendida por Frota – em que se mescla o exercício do artista com o do artesão, do arquiteto e do engenheiro – na construção de formas cilíndricas, orgânicas e, muitas vezes, monumentais, cria site specifics que incorporam a memória do lugar e de seu entorno. O sujeito é elemento central e preponderante em sua obra, e é convidado a experimentar, de forma ativa e consciente, um novo espaço, cuja geometria anterior é rompida, e uma nova sensorialidade se faz presente.
“Usar a madeira e seus avessos, a crueza do material em interferências sutis, mas contundentes. Estes são os fatos que poderiam nos colocar diante de heranças das quais o próprio artista se declara desviante. Escrever sobre o trabalho de Frota é traçar, antes de tudo, um plano de voo ou de navegação, pensar a decolagem, os altos níveis de leveza, até que a vista só enxergue presenças, sem identificações diretas. O destino nos apresentará surpresas, olhando a terra firme, as paisagens, os horizontes, o deserto, o sertão ou as densas matas e seus silêncios, os ventos, as marés.”
Marcelo Campos
Luiza Mello e Marisa S. Mello
Marcelo Campos
Moacir dos Anjos
EDUARDO FROTA PRODUTOR DE ESPAÇOS
Agnaldo Farias
Paulo Herkenhoff
Ricardo Aleixo
APRESENTAÇÃO
Luiza Mello e Marisa S. Mello
Eduardo Frota é o sexto artista abordado pela coleção ARTE BRA. Até então, foram publicados volumes sobre as obras de Raul Mourão, Marcos Chaves, Lucia Koch, Luiz Zerbini e Livia Flores, além de ARTE BRA Crítica Moacir dos Anjos, que intensificou a participação do campo da reflexão crítica no interior da coleção. A coleção recupera o conjunto dos trabalhos realizados por artistas contemporâneos atuantes, principalmente, a partir da década de 1980.
O texto crítico inédito foi elaborado por Marcelo Campos, que, ao longo de diversas conversas com Eduardo, traçou os caminhos percorridos pelo artista ao redor do país e as principais questões que sua obra suscita, formando um “plano de voo ou navegação”. Marcelo destaca a produção do artista desde os desenhos, em que corpo e paisagem se apresentam, até as esculturas em lâminados de Madeira Industrial reflorestada, em grandes dimensões, onde o material aparece não como forma, mas como uma maneira enviesada de olhar para o ecossistema e para as contradições da cultura brasileira. O artista gera embates entre natureza, cultura, cidade, corpo, erotismo, arquitetura, construção, em sua busca pela experiência e conhecimento do mundo. A obra de Eduardo Frota incorpora os extremos, em suas palavras, “do corte sexual no suporte da obra ao corte social na cultura”. “Meus trabalhos”, dirá Eduardo Frota, “não estão numa fronteira muito delimitada entre o trabalho e o mundo, porque estão o tempo todo se fazendo.” Conforme destaca Marcelo, o desafio do trabalho do artista é, então, o desafio do mundo, com os mesmos compromissos dos corpos – a gravitação, o equilíbrio, a relação entre os termos. Tudo em movimento. As atuações coletivas e compartilhadas, como o Alpendre e o próprio funcionamento do ateliê, também são características marcantes e funcionam como dispositivos para a criação do artista.
Moacir do Anjos escreveu sobre a participação de Eduardo Frota na XXV Bienal de São Paulo com a série intitulada Cones. Os cones, vazados e de grandes dimensões, segundo Moacir, não são mais objetos escultóricos autônomos, mas agenciadores de uma obra que a todo momento se move e muda, estendendo nosso campo de percepção para lhes dar sentido. “A despeito da solidez e da escala das peças que os integram, são trabalhos estranhamente intimistas e efêmeros, promovendo o desmanche de um campo construtivo fechado e ativando o trânsito contínuo entre a rarefação da matéria e o poder dos sentidos.”
O crítico e professor Agnaldo Farias produziu o texto aqui reeditado durante a exposição realizada por Eduardo Frota no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2003, na cidade de São Paulo. Agnaldo observa uma mudança fundamental no trabalho do artista, que tem início na escultura e amplia seus horizontes poéticos para o campo da arquitetura dos espaços para os quais é convidado a expor. Com isso, os objetos propostos pelo artista se fazem presentes e sentidos mais ao corpo que ao olhar do espectador.
O texto de Paulo Herkenhoff é focado na exposição realizada pelo artista no Museu Vale, em Vila Velha, no ano de 2005. Eduardo apresenta esculturas que se parecem com carretéis em desalinho, o que Herkenhoff define como “dispositivos para esgarçamento da percepção e do tempo”, provocado pelo “embate produtivo dos objetos escultóricos com o espaço arquitetônico”. Paulo traça uma genealogia das diversas intervenções extensivas propostas por Eduardo desde 2000, que explicitam os conflitos, as diferenças, ao relacionarem-se com os lugares e contextos locais onde são apresentadas e, ao mesmo tempo, com a história da arte. Nas palavras do curador, “esses objetos veiculam uma contradição, pois, como não-carretéis, não se esgotam nas referências de uso e sentido porque não se inserem na condição do útil e da designação verbal. Seu serviço à arte é a desestabilização dos espaços”.
O poeta e músico Ricardo Aleixo sintetiza o processo de criação de Eduardo, que “contraria a retiniana rotina do olhar”, através dos carretéis, que dá título ao seu poema.
No caderno do artista, são apresentados estudos para projetos ainda não realizados, com desenhos, avaliações técnicas e maquetes. O primeiro, intitulado Lâminas de espaços – Eduardo Frota 1980 a 2009, foi pensado para ocupar a Rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro; o segundo, composto por tubos de ensaio e elaborado em 2010, chama-se Pistas extraviadas de um sistema para uma autonomia moderna; o terceiro Intervenções Transpositivas I, de 2009, foi projetado para o Centro Cultural Belém, em Lisboa, Portugal; e por último, também de 2009, o projeto Vetores, sob curadoria de Nelson Brissac, para ser realizado na cidade de São Paulo.
A entrevista concedida por Eduardo Frota teve a colaboração da crítica e curadora Clarissa Diniz, do professor e curador Agnaldo Farias, do professor e psicanalista Eduardo Passos, do produtor cultural Luis Carlos Sabadia, do artista cearense Yuri Firmeza e da organizadora da coleção Luiza Mello. Nela, é possível ter um panorama mais geral sobre as principais proposições do artista ao longo do tempo, desde sua metodologia de trabalho e posicionamento no interior do campo artístico, como as experimentações formais e poéticas do artista.
Por fim, a cronologia nos permite ter uma dimensão completa da trajetória de Eduardo Frota e nos ajuda a preencher as lacunas que ainda não haviam sido abordadas ao longo do livro.
ARTE BRA Eduardo Frota é um convite para conhecer e experimentar a obra deste importante artista brasileiro. Esperamos que os leitores compartilhem a nossa experiência e que apreciem as histórias e imagens apresentadas a seguir.
PAISAGEM, CORPO, CONSTRUÇÃO
Marcelo Campos
“Gambiarra é o cacete!”, “inventar é subverter”, assim começa um dos imperativos para o entendimento da obra de Eduardo Frota. Pensar a ideia de precariedade seria um dos modos para tentar se aproximar de uma suposta visualidade produzida pelo artista. Mas esta é uma seara enganosa. Um vício da crítica de arte no Brasil. Uma expectativa para se estereotipar nossos traços identitários. Usar a madeira e seus avessos, a crueza do material em interferências sutis, mas contundentes. Estes são os fatos que poderiam nos colocar diante de heranças das quais o próprio artista se declara desviante. Escrever sobre o trabalho de Frota é traçar, antes de tudo, um plano de voo ou de navegação, pensar a decolagem, os altos níveis de leveza, até que a vista só enxergue presenças, sem identificações diretas. O destino nos apresentará surpresas, olhando a terra firme, as paisagens, os horizontes, o deserto, o sertão ou as densas matas e seus silêncios, os ventos, as marés.
Absorveremos a própria contradição da paisagem brasileira. Eduardo Frota observa os dados que compõem as relações extensivas da madeira, não como forma, enaltecimento de volumes, mas como condição enviesada da observação sobre a sobrevivência do ecossistema. Frota considera a potência de significados na topografia das encostas do Rio de Janeiro, na vegetação da caatinga, cujos elementos são erroneamente considerados mortos, e nas adaptações da Mata Atlântica, onde as espécies aceitam as mutações, adaptam-se, sobrevivem. Ao mesmo tempo, migrar e estender a atuação corporal, fenomênica, como um movimento entre natureza e cultura, de um artista que parte da planície do Ceará, atravessa os lajedos da Paraíba, alcança o contato com o barroco mineiro e as montanhas cariocas.
Perscrutar o tráfego evitará colisões, desviamos do minimalismo, eliminamos a citada precariedade, afastamo-nos das distâncias classicizantes impostas por pedestais ou pelos duplos da representação. E avistamos montes altos, terra chã, núcleos, dobras. E a poesia se faz vontade curvilínea, como serpenteada, ajuntada, arrodeando ambientes, tal qual a performance dos pássaros antes do acasalamento ou do matuto que tem assunto sério para tratar. Mas, como nos informa Schopenhauer, todo “ato verdadeiro” da vontade é “simultâneo e inevitavelmente também um movimento de seu corpo”.
E, assim, Eduardo Frota caminha com o corpo curioso pela cidade.
Comecemos a ver os desenhos do artista, quando passa a residir no Rio de Janeiro. Podemos pensar estes desenhos como a primeira produção de Eduardo nesta cidade. Uma produção que apresenta a vertente direta da corporeidade, rebatida nos trabalhos posteriores, que somente deste modo se mostra tão evidente. Frota produzira desenhos que se distanciavam dos objetivos da representação figurativa. “Pensar a produção fragmentada em partes e estas partes como autonomia do corpo”, “plástica”, “intuitivamente encaminhada para uma transmutação de potência escultórica, espacial”, dirá o artista. E, novamente, a “intuição do mundo” sobrevém, antes de tudo, como corpo, “objeto imediato”, “ponto de partida para o conhecimento”. Revelam-se corpos femininos, formas fálicas, montanhas, totens, seios, bundas, vulvas, pontos, setas, através de linhas que percorrem os trajetos repetidas vezes, como se em busca de alvos, penetrantes, eróticas, obviamente. “O sujeito que conhece é indivíduo exatamente em sua referência especial a um corpo [...].” E assim Frota se faz conhecer. O erotismo está em tudo, na curiosidade, nos gestos de riscar, preencher, anular, deslizar. Trabalhar na arte para justificar a “proibição que regula e limita a sexualidade”. Georges Bataille nos informa que o trabalho é uma das condutas que governam os impulsos da sexualidade para uma suposta justificativa de vida. Assim, observamos o “trabalho”, entre aspas, na arte que é, acima de tudo, um modo de declarar a busca pelo conhecimento do mundo. E este só pode ser empreendido como uma vontade de corpo.
Eduardo Frota nos explica que, nas suas investidas iniciais na arte, estava o próprio caminhar do corpo pela cidade, sensual – “cidade inaugural do Rio de Janeiro” –, sedutora, obstaculizante. E afirma que pensar a arte foi se deslocar num “contrafluxo” e aceitar a migração de Fortaleza para outros lugares. Frota considera uma relação potencializada, aquela que o coloca diante de paisagens vividas, entre a enseada do Mucuripe (Fortaleza) e o Morro Dois Irmãos (Rio). A relação sensorial, “o vento e a sibila, uma expansão imaginativa”, a luz do Ceará “como ofuscação, a não-imagem de um lugar”. Enquanto a paisagem carioca lhe apresentava “uma percepção experimentada de alteridade cavada na topologia do território. O vazado erótico de entra e sai dos túneis, as alterações do olhar em vários pontos e a construção de 360o do alto das montanhas do Rio”. “Os buracos/túneis/linhas furando a matéria bruta.” “O Dois Irmãos como experiência estética in natura.” Poder olhar a cidade ao redor, por sobre o morro. A topologia, “um empilhamento de subjetividade”, em contraposição ao vento sobre um Ceará planar, “onde nada fica no lugar, desliza, se esvai”, nas palavras do artista.
Aqui nos desviamos, revendo uma possível relação direta de formação e resultados. Não houve um projeto oficial de se tornar artista. Em contrapartida, dirá Frota, “o Rio de Janeiro nos habitava”, “as imagens de antes, das revistas”. Nas declarações sobre o Rio de Janeiro, Frota se pergunta: “como decodificar a cidade? A arte da cidade e na cidade se faz extensão, embaralhamento de uma coisa só”, um “percurso solitário nas estrias da cidade, o museu/cidade e a cidade como portadora destes bens, construções pictóricas da cultura e esculturais da natureza”, “o lugar de embate reflexivo do coletivo da arte na cidade e o sujeito desapropriado, em latência”. “Ver e fazer arte me habitava em estado de alumbramento, ao mesmo tempo que ampliava, em fosso, a solidão. Como capturar aquilo, de que maneira, com quais ferramentas? Minhas retinas virgens para tal percepção.” “Ver e fazer, fazer e ver, este foi o princípio da alteração.”
Com estas afirmações, torna-se mais evidente que o artista pensava em conviver com a cidade. Inicialmente, morando numa pensão no bairro do Flamengo, e usando o próprio quarto para seus exercícios de desenho, Frota é surpreendido pela dona do estabelecimento, que, ao avistar a bagunça do quarto, vocifera: “Não se pode fazer isso aqui!”, e o leva à Escolinha de Arte do Brasil. “Pensando na experiência da Escolinha”, diz o artista, “se dará ao mesmo tempo o processo da produção do artista com a do arte-educador, e a cidade como campo aberto lato sensu”.
Para Eduardo Frota, naquele momento, havia trabalhos que traduziram não só o espanto diante da arte, o deslumbre, como a sensação da presença da cidade na arte. Antes de tudo, o caminhar de Artur Barrio pela cidade. Aqui, Frota se refere a Quatro dias e quatro noites, obra em que Barrio cria uma série de ações, partindo do gesto de caminhar, criando elucubrações sobre este ato e ativando possibilidades de potencialização deste percurso, resultando em cadernos escritos, mas sem nenhuma identificação mais direta, nenhum registro. Outro artista citado é Luiz Alphonsus, que realiza uma série de trabalhos, cavando buracos na areia da praia, Negativo/positivo, em 1970, e acende uma fogueira que se torna evidente conforme o dia vai caindo. Também se faz referência aos parangolés subversivos de Hélio Oiticica, além das heranças das manifestações de “amplitudes territoriais e simbólicas no aterro do Flamengo”, numa citação direta aos Domingos da Criação nos jardins do Museu de Arte Moderna. “Desrecalcar ações coletivas através da experiência fazendo arte.” E assim Eduardo Frota vai criando, em seu percurso, faróis, sinalizadores, pontos de inflexão. Enquanto vamos percebendo os interesses do artista, abrindo-nos relações muito ampliadas, entendemos, por exemplo, o interesse pelo objeto, quando Frota cita as Urnas quentes de Antônio Manuel, caixas de madeira lacradas. Em outro sentido, o interesse pelo oco do material, quando ele cita os tubulares de Lygia Clark, “o furo, o erotismo, o atravessamento”. Sobre esta artista, a referência também recai no conceito de “linha orgânica”, quando Clark teoriza, em 1954, sobre o momento em que “duas superfícies planas e da mesma cor são justapostas”, ou seja, algo que se forma como corpo sem, necessariamente, ter presença física, apenas um toque, uma aproximação, um encontro, em princípio, secundário. Frota afirma: “Para mim, a ideia de linha orgânica é o pensamento mais sofisticado de um artista na arte brasileira.” E a cidade do Rio erotizada, em outra obra, pelos túneis no filme Night and Day, na imagem-cinema de Tunga. “O túnel como fluxo de ar, um vaso comunicante.” Além de tudo isso, a própria ocupação popular da cidade. “As favelas como ação de arquitetura anarquista, uma grande escultura social em mutação, uma estrutura viva desenhando toda uma produção urbana e cultural (através das suas grandes porções migratórias, desde o início do século XX. Esse, a meu ver, o grande fato escultórico social.”
O CORTE, O CHANFRO, O REVIRÃO
Secionar, sexualizar. “Esta quebra, este corte de sair de uma cidade, migrar, o que se pode trazer disso é um dado sensorial de um lugar que vai entrar em choque quando chego ao Rio de Janeiro.” Eduardo Frota observa a cidade, então, como um “campo de experiência”, além de “todo legado da paisagem do Rio”. Parte deste corte se dá, também, na visualidade das construções que o artista já apresentava nos desenhos e que se tornarão mais premente no trabalho de pequenos pedaços de madeira, recortados, chanfrados, pintados e ordenados com total liberdade, ora em sequências, ora em unidades repartidas, espalhados pelas paredes do ateliê.
Esta carga construtiva, arquitetônica até, também gera diferenciações ao que denominamos “herança construtiva”. Claro está que se torna inevitável pensarmos em Volpi, ou nos objetos ativos de Willys de Castro. “O Willys de Castro não cortava, nas últimas obras ele sobrepunha os tocos de madeira, uns sobre os outros, mas montava as madeiras. O corte, no Willys, não altera o plano, o volume”, diz Frota. Este artista cria uma maior complexidade para os experimentos de Frota. Mas esta vontade construtiva se torna ativa muito mais como “condição espacial” que se adéqua aos próprios interesses por outros assuntos. São citadas, então, como fontes de interesse, leituras sobre a Mata Atlântica, os estados da própria matéria tropical, o corpo, as vibrações, as temperaturas, as alterações topológicas, muito mais do que o sentido compositivo, formal. A incorporação dos extremos: “do corte sexual no suporte da obra ao corte social na cultura.”
A repetição, a exploração de intervalos, a possibilidade de fazer os filetes de madeira circularem pelo espaço, o que Frota denomina “vertical de torção”. O artista afirma que as investidas iniciais do desenho geraram diretamente as instalações. É curioso pensar na lacuna, nos intervalos, fomentados por essas experimentações, que não fazem de Frota um interessado pela compreensão da escultura autônoma. Ao contrário, o escultórico já nasce em consonância com o espacial, já se ampliando para arregimentações que compreendem limites e extensões, externos e internos, da casa, do ateliê, do cubo branco. Sabemos que a ampliação da escultura se apresentou, justamente, na expulsão “de qualquer possibilidade de significado”, como nos explica Krauss, para “o ato de dispor ou organizar as formas”. E, assim, as madeiras de Eduardo Frota arregimentam a repetição, “uma demonstração de tenacidade”, furtando-se a “estabelecer relações” compositivas ou a estereotipagem dos materiais.
Neste momento da produção de tiras de madeira, Eduardo Frota considera que o estatuto da arte começa a aparecer em seu trabalho. Quebram-se os elementos de figuração, a cor deixa de ser atributiva para se tornar arbitrária. A cor, para Frota, não é ilusionística, mas sim uma presença física, através do corte no suporte/matéria. O corte evidencia as mínimas aparições de cor, os atravessamentos do plano. Elaboram-se dissonâncias, desencontros, e os elementos continuam ativos, plenos, no espaço. “A ideia era pintar sobre os planos de corte e fazer um jogo que funcionasse como alteração do plano”, explica-nos Frota. A atenção, então, é testar os próprios limites do objeto, observando vivamente as frestas, a presença e o destaque empreendido pelas dobras, a cor alterando a percepção. As arestas, as quinas, a invasão de uma área na outra, os efeitos óticos, os exercícios de linhas. “Eu quero construir aí, neste espaço de interseção, o entre. E eu queria dar o mínimo de volume para sair algo dali que não fosse o vazio, algo que estufasse a linha orgânica, uma pequena compreensão perceptiva, como latência de fluxos, um desvio.”
A escala inicial, então, altera-se, expande-se, e a presença espacial dos exercícios iniciais força os trabalhos de Frota para a reflexão sobre posicionamentos espaciais: perpendiculares, diagonais. Exercer o corte, esta será a tarefa não somente conceitual, mas construtiva do artista. Este será o desafio na produção dos trabalhos. Cada elemento gerando “corte no plano”. “O plano da parede funcionava como o branco na poesia oriental”, diz o artista. Nas esculturas, vemos as sutis e contundentes alterações da geometria. A cor vai ser ativada como presença monocromática, são campos de força que a escultura vai elaborar. Frota pensa as tangentes, muitas tangentes. Onde a linha se encosta, seja no plano da parede, seja em outra metade do mesmo objeto, as alterações são executadas, os cortes, os chanfros. A alteração da cor, agora, é exercida pela visualidade, as sombras do próprio objeto, em três, quatro planos distintos. E o espaço com suas sensorialidades atravessa as esculturas, o ar, a luz, o aberto.
Giorgio Agamben, retomando conceitos de Heidegger e Rilke, considera que o aberto é lugar impossibilitado aos homens, pois estamos sempre indo em direção a algo, vivendo em consonância a limites impostos. O aberto, então, só pode ser vivido sem consciência. Nas esculturas de Frota, o aberto, o buraco, o “ânus solar”, parafraseando Bataille, são desafiados a se apresentarem como ancoradouros, lugares, destinos, desejos. E, assim, enxergam-se ativações do espaço, ao mesmo tempo denominadas “corpo”, orifícios. “E quando exclamamos: SOU O SOL, disso resulta uma ereção integral porque o verbo ser é o veículo do frenesi amoroso.” São estas as fricções que o artista empreendera para exercitar a compreensão dos objetos/corpos espaciais.
A CÓPULA DOS TERMOS
A ideia de que tudo no mundo se movimenta e de que a relação entre os elementos é uma espécie de cópula foi trabalhada por Bataille em O ânus solar. O autor elabora uma bela imagem, quase uma dança, em que liga uma coisa à outra, acreditando que tudo conversa, como uma grande paródia. “O chumbo é a parodia do ouro”, dirá o autor. O “movimento rotativo” e o “movimento sexual” combinam como uma “locomotiva”.
A partir de um momento, os trabalhos de Eduardo Frota seguem em busca de movimentos e erupções. Não cabem nos espaços, negam o confinamento, soltam-se, desprendem-se, caem, balançando ao sabor das marés, “a imagem mais simples da vida orgânica unida à rotação”. “Mar e peito”, escreve Frota em um desenho de 1986.
Nestas erupções, vemos formas vulcânicas, rastejantes, todas tubulares, com os orifícios à mostra. Assim, inicia-se a árdua engenharia de amolecer as madeiras, agregando cortes repetitivos, numa espécie de sanfona, mas que, ao mesmo tempo, exige cálculos precisos, angulações individuais para que cada “módulo-aro” possa contribuir, em adensamento de repetição, para a curva desta “locomotiva” batailliana. “Torcer a dureza da madeira, ativar nela um amolecimento de vísceras, a partir de cortes seminais nos módulos de repetição”, dirá Frota. Aqui nos referimos aos trabalhos tubulares feitos a partir da operação de tangenciamento. Os tubos são como “pulmões”, Eduardo Frota refere-se a estes trabalhos, porosos, abertos, vísceras de respiração. Criavam-se cilindros de madeira que procuravam resolver os encaixes numa operação de macho e fêmea. O trabalho, então, ganha uma emenda de “extensividade da linha”. A partir de então, na borda dos encaixes macho-fêmea, com “cortes de apara”, revelou-se a autonomia de um módulo-aro. É esta apara que potencializa a operação de agregação dos aros para que a escultura possa se estender para o espaço. Também, neste momento, a nudez do material. A cor é retirada e percebemos todos os veios constituintes. A nudez que em outros sentidos representaria “a queda” ou a “perda das vestes”. Na escultura, será ressaltada a corporeidade, uma proximidade com a natureza e, segundo Agamben, com a “graça”. Fazer da madeira nua a escultura é torná-la graça, imantá-la, não de um pensamento divino, mas destiná-la a um lugar de consagração.
Diferente de uma escultura em pleno vulto, as obras de Eduardo Frota são como marchetarias, porém em tridimensionalidade, sem laminações, sem efeitos. Observa-se, ao contrário, a “miscigenação” dos refugos. Estes módulos partem de uma lâmina industrial, um compensado. “A lâmina é uma medida ideológica”, afirma o artista, “um padrão de consumo”. “Quando eu desmonto esta lâmina, estou desmontando um padrão, subverto um padrão do consumo capitalista. E revelam-se o interno, os dois lados aplainados, o dentro e o fora, as condições intestinas, aquilo que estaria no estado de mistura, condição secundária para as superfícies exteriores.” As tripas, as vísceras, podem se estender, se ampliar, se aplainar. “O meio é o refugo, o miscigenado de diferentes restos de madeiras, anula-se a parte que ficaria visível. Desta inversibilidade conceitual-técnica, subverte-se a norma de beleza do material industrial. O lado liso é anulado, colado em um módulo e outro, um a um, repetidamente. O que se constitui como corpo é o refugo, as falhas, os vários restos de madeira, através do trabalho operacional do corpo coletivo do ateliê. O que tem a função secundária e anônima de enchimento, entre as duas superfícies da lâmina industrial, é o que será subvertido para a condição de tato, de estria.” Pensa-se o corte, observam-se os encaixes, e o engenho derrama-se nas salas, escorre pelas escadas, cai nu, entrando em erupção. “O corte, para mim, é erotizar o mundo, buscar vida onde não se sabia que tinha”, afirmou Frota. “O globo terrestre”, dirá Bataille, “está coberto de vulcões que lhe servem de ânus [...] às vezes atira para fora de si o conteúdo de suas entranhas.” Estas esculturas de Eduardo Frota são entranhas sem liquefações. O gozo está no próprio lugar privilegiado do espectador em ver os ocos, os vazios, ressequidos, como se já arqueologizados. São anéis solares, galáxias.
“Os sistemas planetários que rodam no espaço como discos rápidos e com um centro que também se desloca [...] só se afastam para regressarem.” Nesta ideia de galáxia, as lascas de madeira das esculturas de Frota se afastam e regressam, como simulações do movimento, “sempre assim todos os dias: esse grande coito com a atmosfera celeste é regulado pela rotação terrestre à frente do Sol”.
“Meus trabalhos”, dirá Eduardo Frota, “não estão numa fronteira muito delimitada entre o trabalho e o mundo, porque estão o tempo todo se fazendo.” O desafio do trabalho do artista é, então, o desafio do mundo, com os mesmos compromissos dos corpos, a gravitação, o equilíbrio, a cópula entre os termos. Tudo em movimento. Num dos impressionantes exercícios da figura geométrica, Frota elabora uma espécie de encontro entre esquadros. Nesta série, vemos um risco, em madeira, funcionar com a ideia da gravidade, do movimento, mas rasgando o espaço. O núcleo ora se aproxima, como um nó, ora se desfaz. E a linha estende-se em pontas. Exercício que será retomado pelo artista numa posterior ocupação do Centro Cultural do Banco do Nordeste, em Fortaleza.
“Ser claro, como lâmina”, “Ultrapassadas as inquietudes existenciais e dúvidas dilaceradas, fermentadas em estado permanente de inconstância. Para se conduzir e ser conduzido à construção artística tem que ter objetivo de lâmina, e ser claro como corte”, assim o artista declara seus objetivos, qual o poema de João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”. Usa-se uma “topologia alterada”. E, Frota investe, inventa-se na realização dos trabalhos. Coloca-se em desafio: “A parte técnica, para mim, é invenção.” O artista observa máquinas de corte, pensa coletivamente, cerca-se de profissionais. Caímos, então, em outro caminho de interesse, o modo de prodigalizar e aprender com o outro, o que retoma o início das atividades do artista como aluno e professor da Escolinha de Arte do Brasil.
O INTERRUPTOR DA LUZ PARA ENXERGAR OS REFLEXOS
A atuação coletiva é outro modo de chegarmos aos intuitos de Eduardo Frota. A convite do idealizador do projeto, Alexandre Veras, Frota manteve ativa participação no Alpendre, um espaço de arte em Fortaleza, junto a um grupo de amigos, Andréa Bardawil, Carlos Augusto Lima, Manuel Ricardo de Lima, Beatriz Furtado, Sólon Ribeiro, Luis Carlos Sabadia e Alexandre Barbalho, grupo inaugural, que produzia e refletia sobre filosofia, artes visuais, dança, fotografia, cinema e vídeo. O Alpendre era um espaço aglutinador de coletividades, independente, que foi criado em 1999 e se tornou uma referência incisiva no circuito de arte contemporânea do país, a partir de Fortaleza. Frota foi o formulador do Núcleo de Artes Visuais e mantinha, semanalmente, um grupo de encontro aberto a jovens artistas, na sala da biblioteca. Frota pensa o Alpendre como um corpo mestiço, forjado com múltiplas singularidades culturais.
Esta experiência funciona para a obra do artista como o que se define, hoje, com o termo “dispositivo”. Partindo-se de conceitos de Michel Foucault, principalmente ligados às instituições totalizadoras, “governo dos homens”, como as prisões e os manicômios, a ideia de dispositivo passa a ser reelaborada para outros modos de agir. Agamben nos esclarece que os dispositivos são todas as coisas existentes entre os sujeitos e o mundo. E tratamos, então, de atribuir caráter sagrado ou profano, respeito, reverência ou repulsa e recusa a esses dados reguladores. As experiências de Frota junto ao Alpendre, ao seu ateliê e, remotamente, à Escolinha de Arte no Brasil o colocam diante desta sensação de rede, regras coletivizadas, formação e aprendizagem. Porém, nos disse o artista, o dispositivo é aquele que produz “o apagão”, e não o que se costuma denominar para justificativas tecnológicas, conceituais. Assim, Eduardo Frota se aproxima, então, do gesto físico, disjuntivo, subversivo, de lidar com a escuridão para poder agir. E, ainda assim, do nada, do que não teria conteúdo, da ignorância, do embate, pode-se gerar reflexões. O trabalho do Alpendre, dirá Frota, não é um dispositivo, é um disjuntor, “associações disjuntivas, é o disjuntor”, aquele que apaga a luz, ironiza, onde “você vai sentir o corpo”. Aqui, o artista tanto se aproxima da possibilidade de criar reflexos, como o Sol do Zaratustra, de Nietzsche, que só cria sentido ao iluminar a águia que carrega a serpente no bico, como tangencia a ideia do ignorante de Rancière.
Pensando na potência de um espaço de discussão, Eduardo Frota realizou um trabalho nos últimos momentos de funcionamento do Alpendre: descascou as paredes do espaço, referindo-se subversivamente ao cubo branco, à galeria de arte ideal, ensacou estes rebocos e os vendeu por quilo. Tal operação, denominada Associações disjuntivas, foi dividida em três núcleos conceituais: “a escultura no plano escavado/o lugar como subtração; o objeto escultura/o consumo da arte medida por quilo; o duplo assimétrico”. No primeiro, o artista pensou efetivamente a subtração, a retirada, a escavação do espaço. “Como não pensar que esse golpe atinge a tessitura nervosa desses planos que constituem o cubo branco em sua assepsia hospitalar ideologizada de pele branca, que disseca o corpo/objeto/arte nas suas enfermidades e doenças, e entulha, hierarquicamente, seus detritos?” Ali Eduardo se aproximou de outras ações históricas de intervenção no cubo branco, o Vazio, em que Yves Klein inaugura, em 1958, uma exposição sem nenhum objeto; o Cheio, de Arman, em 1960, em que a mesma galeria está impossibilitada por entulhos. Porém, na ação de Eduardo, a galeria torna-se conteúdo físico, efetivamente, descascado, destruído, presentificado, materializado. Na segunda operação, Frota pensa o objeto, a escultura que se torna peso efetivado pela ação, a materialidade ensacada, avaliada, vendida. O “detrito da representação que foi o cubo branco mediado pelo dado da cultura, ou seja, o entulho como resto de hierarquias dessa construção ideológica”, afirma o artista. Aqui, podemos nos remeter à ação do Grupo Rex que, nos idos de 1966, produziu uma exposição em São Paulo, onde os objetos podiam ser levados gratuitamente, bastava o espectador conseguir arrancá-los das correntes e cadeados que os prendiam à galeria. Sabemos que a ação durou, aproximadamente, oito minutos. Neste âmbito, vemos a fetichização do objeto pelo público. O fetiche, substituto da castração, aquele que se destinará a preencher um vazio ancestral, existencial. Na terceira compreensão do espaço, o “duplo assimétrico”, Frota nos explica que relaciona o valor do objeto e da arte confrontando-o com um duplo radicalmente distinto, o entulho, “anônimo e ordinário”. Assim, repensamos as ações de Piero Manzoni, ao vender merda de artista embalada, ou quando propõe bases para que qualquer coisa que seja colocada sobre as mesmas se tornem obras de arte. Ao mesmo tempo, a referência ao Duplo negativo, ação em que Michael Heizer escava um monte de terra e confere igual importância ao contingente retirado e ao vazio deixado. A partir desta terraplanagem, Rosalind Krauss afirma, a única maneira de experimentar o trabalho é “habitá-lo, à maneira como imaginamos habitar o espaço de nossos corpos”. Mas, na ação de Eduardo Frota, o espaço está vilipendiado, já fora habitado e se entrega, agora, às incertezas, a outros usos. Vendê-lo, pesá-lo, expô-lo ativa graus de ambivalência, fomentando-nos pensamentos sobre a arte como commodities, o surrealismo da precificação dos objetos, as veleidades do desejo. Sobretudo, estamos tratando a galeria como intervenção, nos termos de Brian O’Doherty, a destruição e o declínio, a impossibilidade de restituir os encontros, as discussões, a arte como coeficiente que jamais se deixa concretizar.
GOZO COLETIVO
Desafiar o engenheiro, desafiar o marceneiro e juntar ignorâncias à escuridão da ideia do artista. Um lapso no tempo. Cortar a matéria e mostrar “o dentro”. E, depois, seguir. Durante alguns anos, Eduardo Frota manteve, em Fortaleza, um ateliê, onde cada tarefa era discutida, e os assistentes tinham voz e observavam, em reuniões coletivas, as propriedades dos materiais e suas possíveis relações com a vida.
Neste âmbito, o sentido da obra de Eduardo Frota se expande. A ideia de conviver, trocar, partilhar. Uma cooperação que poderia definir-se “como um intercâmbio no qual os participantes obtinham benefícios do encontro”. Uma experiência que buscava um prazer mútuo, partindo, como nos termos do artista, de um “apagão”. Esta é a tarefa do educador, aquele que reúne pessoas com “interesses distintos, inclusive em conflito”, e congrega uma “disposição ética” a uma “atividade prática”. A grande convivência no altruísmo, dirá Richard Sennett, está destinada a um “eu na sombra”. Esta é a sensação que temos ao vermos os comentários de Frota sobre a relação com seus profissionais, aqueles destinados à resolução de problemas técnicos, mas não menos conceituais, artísticos.
Em 1992, depois de retornar a Fortaleza, Eduardo monta um ateliê em que a experiência coletiva se tornará central. Um ateliê como máquina, “oficina de sentidos corpóreos”. Ali, “um corpo coletivo habita o ateliê, maquina um dispositivo, interligando sistemas que dispara sem pontos fixos, desprende energias associativas em várias direções para situações diferentes, em cada microlugar do ateliê-lugar do ateliê-máquina. O seu todo se opera em voltagens, variadas de inteligências subjetivas. O afeto é o agente transgressor que lê as subjetividades, as sensorialidades, as proposições como diferenças operativas dos membros deste corpo coletivo”. Muitas vezes, Frota parava os trabalhos para que todos refletissem, e todos participavam. “Vamos pensar a linha!” “A linha está no corte, no processo, é um resto que cai.” E, neste momento, o ateliê parava de produzir. Criava-se a quebra na experiência de produtividade, para se ativar a reflexão ampliada, fato que poderia ser entendido como improdutivo. Aqui, vemos a troca, a partilha, a quebra da “pedagogia tradicional de transferência do saber”, termo de Rancière, para “ensinar o que ignoram”. Assim se dá a vontade de troca. Não aquela de aplicação do “Ensino Universal”, aquele que Rancière explica como possível método, mas que “não é um método de pobres”. Antes, ao observarmos Frota falando do ateliê, estamos em contato com a “renovação do embrutecimento”, concedendo o hábito de raciocínio por conta própria. O ateliê tinha uma biblioteca aberta com dois tipos de encontro. Eram feitos encontros dos visitantes convidados, gente como professores, permacultores, tratando de filosofia, história, e outros refletindo “a vida como ela é”, discutindo os assuntos sociais, violência, drogas, quebrando a hierarquia do saber. Observando competências próprias, como tocar bateria, jogar bola, respeitando-se um saber e uma diferença. E Eduardo Frota comove-nos lembrando de Vilmar, seu principal assistente, justamente um que possuía limitações auditivas. Assim, recordamos de um dos narradores de Walter Benjamin, o camponês, aquele que sabe tudo sobre sua terra. Um dos grandes narradores em contraposição ao marinheiro, o que sabia tudo da mobilidade, das terras de além-mar, talvez a outra face do próprio Eduardo Frota que acompanhara seu assistente até os últimos dias. Depois, levara seu corpo para enterrá-lo em seu local de nascimento, sob o céu amplo do sertão.
Desta convivência, deste lugar de decisões, Frota ativa o conceitualismo de seus trabalhos. Deixa-se pouco espaço para as margens de manobra, pois a linha, como matéria, por exemplo, já foi discutida, partilhada. E, ao mesmo tempo, radicaliza-se a possibilidade de execução, exaustivamente, estriando-se a madeira ao limite, em cortes mínimos. Este é o esforço sobre-humano, transfigurador da matéria aos recônditos do estatuto de arte.
E depois de cortar a madeira, eu pergunto, como sobreviver? O corte pode ser a morte, a destruição. Ao que Eduardo Frota me responde: “o corte, para mim, é você dar à vida, novamente”, como dádiva, como doação, como oferenda. Aqui, juntamos as tarefas do educador e do artista, tarefas que jamais se separaram na trajetória de Frota. “A forma mais comum de dom”, nos incita Sennett, “é aquela em que o doador recebe algo em troca, ainda que em formas mais elevadas que o estabelecimento de uma dívida comercial, como a experiência de bem-estar.” O bem-estar, um lugar que pode ser iluminado pela escuridão da ignorância.
Caminhar pela cidade, mote que iniciou este texto, é, então, a experiência de iluminação do imigrante, aquela que lhe possibilita a observação sem hierarquias. E, ainda mais, a seleção de uma visualidade amorosa.
Finalizando a conversa, Eduardo Frota me oferece digressões sobre esta mobilidade do imigrante em uma possível releitura de referências canônicas da arte brasileira. Tais informações aparecem, primeiramente, a partir dos concretistas e dos neoconcretistas em diante. “Isso é um fato, tanto para o bem, como para o mal. Viajei muito tarde para a Europa e os Estados Unidos, já tinha mais de 30 anos.” “Essa é a diferença do imigrante”, me disse Frota, “ver tudo.” “Aquele Guignard, da paisagem de Sabará”, o artista cita um exemplo, “a 3 mil metros do semiárido, no sertão do Ceará, você vê Guignard. E as placas amassadas de Weissman, aquilo é a zona da mata, o terreno cheio de valas.” “O ar de Guignard vai estar na poeira, na terra arenosa que não tem liga de barro, nem de umidade.” Frota, então, solicita uma convivência compartilhada, olha Weissman e Guignard com os olhos de quem fita o sertão. “E constrói nos limites de uma linha orgânica de latência e expansão.” Assim, ensaia-se uma escuta cuidadosa, desconfiada, entretecendo mais uma conversa, enquanto desligamos o gravador.
ENTRE A RAREFAÇÃO DA MATÉRIA
E O PODER DOS SENTIDOS
Moacir dos Anjos
Diante do trabalho que Eduardo Frota apresenta na XXV Bienal de São Paulo, o visitante descobre logo não ser possível apreendê-lo a partir de um lugar somente (próximo ou longe) ou em um só instante. Aparentando constituir-se de cones ocos de madeira distribuídos ao longo de uma área extensa, não se trata, fica também evidente, de um conjunto de peças semelhantes, múltiplos de uma operação construtiva única. Sua complexa disposição espacial sugere uma articulação de sentidos que a adição de iguais não pode exprimir. Considerar cada um dos cones como partes singulares de um trabalho abrangente é igualmente ainda pouco e impreciso para definir o lugar que essa escultura reclama ocupar no mundo. É só percorrendo-a inteira durante um tempo não específico que se percebe o significado inequívoco que embute: medindo a extensão simbólica e física do trabalho em função dos movimentos de seu próprio corpo entre os cones tombados no piso, o visitante incorpora, como partes do campo escultórico, não somente as peças solidamente construídas e ali assentadas, mas igualmente os espaços vazios entre os cones, a área que os acolhe e tudo o que, nesse percurso, afeta seus sentidos, seja o cheiro da madeira nova ou o eco criado pelos sons de fala emitidos nas proximidades das formas cônicas.
O fato de os cones terem seus vértices vazados – por onde sangra a luz difusa que os ilumina – os torna ainda mais integrados uns aos outros e ao espaço ativado por corpos que os queiram percorrer a cada instante. Dispostos no chão de modo irregular, eles são suficientemente grandes, ademais, para bloquear a formação empírica de um caminho apenas, fazendo o visitante perder vez ou outra o sentido de localização precisa e induzindo-o a negociar um trajeto próprio por entre as superfícies convexas e côncavas que dão forma a essas peças. Embora não haja um número preciso de cones que assegure a operação cognitiva que a escultura propõe, ele é grande o bastante para que o visitante não o possa dimensionar sem que primeiro potencialize o trabalho com o seu próprio movimento.
Resultado da junção paciente e precisa de arruelas de madeira de diferentes diâmetros, esses cones se aproximam, por semelhança de procedimento construtivo, às esculturas tubulares e curvas que o artista produziu nos anos que antecedem a sua realização; também estabelecem, contudo, na maneira precisa que ativam espaço e tempo, a diferença que os faz ser não mais objetos escultóricos autônomos, mas agenciadores de uma obra que a todo momento se move e muda. Como estratégia de afastamento da retidão construtiva que o processo de unir as arruelas embute, Eduardo Frota fazia variar, nesse conjunto anterior de esculturas, a espessura dos discos de madeira que utiliza. Por meio desse procedimento, pôde torcer o que era reto, contrair o que parecia extenso e fazer dobras no que se julgava rijo: criou estruturas acurvadas e modulares que recortavam, de modos diversos, os espaços onde o artista as punha. Nessas peças, como nos cones de agora, os círculos vazados que delimitam, por adição, a superfície dura das esculturas instauravam também um espaço vazio que corria seu avesso e lhes subtraía solidez, tornando-as quase cascas somente. Situados por vezes além do alcance da vista, eram esses volumes nulos e curvos, contudo, que atraíam primeiro o olho e ativavam o interesse sobre as superfícies que os definiam.
Embora existisse, já nessas esculturas, um avizinhamento entre a experienciação alongada da obra e sua própria definição como objeto construído, não havia ainda nelas inscrita a necessidade intrínseca de estender o campo de sua percepção para lhes dar sentido. É somente em trabalho posterior que Eduardo Frota quebra definitivamente o estatuto de objetos prontos detido por suas esculturas e as torna obra em construção permanente. Intervindo em toda a área de circulação humana do Torreão, em Porto Alegre (2000), fez com que as formas tubulares de suas esculturas aderissem, de modo preciso, ao caminho estreito que unia o exterior do prédio à sala de exposições três pisos acima; condicionou, desse modo, a existência do trabalho à exploração corporal de um espaço que ele mesmo demarcava e por um período tão variável quanto fosse o interesse que despertasse em cada visitante.
Inseridos em uma tradição processual de escultura, na qual os campos de espaço e de tempo que localizam objetos construídos são a todo tempo ampliados, refeitos ou redefinidos pelos corpos que os experienciam, os trabalhos maduros de Eduardo Frota ancoram sua existência na ocorrência passageira de situações específicas. A despeito da solidez e da escala das peças que os integram, são trabalhos estranhamente intimistas e efêmeros, promovendo o desmanche de um campo construtivo fechado e ativando o trânsito contínuo entre a rarefação da matéria e o poder dos sentidos.
EDUARDO FROTA
PRODUTOR DE ESPAÇOS
Agnaldo Farias
Logo após o oportuno convite para expor no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), resultado do justo reconhecimento que finalmente ele vem recebendo, Eduardo Frota, fiel ao seu lento e fatigante – dirão os outros – método de trabalho, começou com as viagens de Fortaleza, onde vive, para a sede paulista da instituição. Parte fixo – o galpão de trabalho situado em sua cidade –, parte móvel – o espaço para o qual ele desenvolverá sua obra –, nos últimos anos o ateliê de Eduardo Frota acontece parcialmente em espaços imprevistos e até mesmo durante as viagens até esses espaços. Assim, armado, como de hábito, de trena, máquina fotográfica e caderno para anotações, o artista deu início às visitas sistemáticas ao local reservado para a exposição, com a finalidade de perceber as idiossincrasias do belo exemplar art nouveau – ou eclético, como então se dizia –, de autoria do engenheiro arquiteto Hippolyto Gustavo Pujol, um dos poucos remanescentes da arquitetura que outrora ocupava o centro da capital paulistana, tomar suas medidas, estudar seus espaços intrincados, assim como compreender seus fluxos, as alterações provocadas pela iluminação natural e artificial; numa palavra, vivenciá-lo. Consciente de que a arquitetura ultrapassa sua representação, detalhe que com frequência inusual escapa mesmo aos arquitetos, que por falha de formação são no geral mais atentos ao projeto do objeto do que ao objeto mesmo, Frota inclui as viagens e as reiteradas visitas como parte decisiva do seu processo. Mas esse é um comentário lateral com a finalidade de ilustrar o quanto os arquitetos podiam aprender com os artistas. E está claro o despojamento esquemático em preto e branco das plantas do edifício: os pilares que interrompem a continuidade do espaço tão logo se ascende ao andar da sala reservada à exposição de suas obras; o estreito caminho de acesso que leva até ela, bordejando com seu guarda-corpo de flores forjadas em ferro, como a murada de um navio, o vazio circular que atravessa de cima abaixo o prédio até a cobertura do mosaico de vidro branco e amarelo, cuja delicada combinação entre a geometria e motivos orgânicos ilumina o ambiente durante o dia; e a sala expositiva propriamente dita, em forma de “v”, solução arquitetônica singular e imperativa, um desafio a ser vencido com paciência e precisão por quem quiser expor ali.
Se hoje a arquitetura é um aspecto determinante na poética de Eduardo Frota, nem sempre foi assim. Até alguns poucos anos atrás, numa carreira iniciada na década de 1980, suas peças se encaixavam dentro daquilo que classicamente entendemos como escultura: volumes como que fechados em seu próprio mundo, passíveis de serem transportados daqui para acolá, indiferentes ao local que os abrigaria. Claro está que, de um modo ou de outro, o espectador sempre se via solicitado pelos cilindros estreitos de madeira que se quebravam em ângulos agudos, mudanças abruptas de orientação que dotavam de alta velocidade o corpo segmentado da peça até o ponto em que as extremidades se encontravam, formando um nó composto de linhas duras. Nosso olhar percorre essas linhas vertiginosas, escapando pelos vértices de bordas elípticas e resvalando pelo núcleo em que as pontas finalmente se encontram. Há também as esculturas cujos corpos cilíndricos são realizados a partir de uma enorme sucessão de anéis e que, ao contrário das interrupções bruscas de direção, e tomando partido do módulo circular de que são feitos, enrodilham-se ou se desatam em expansões vagarosas, como o corpo de um inseto anelídeo progredindo pelo chão ou pelo tronco de uma árvore. Em ambos os casos, as esculturas de Eduardo Frota atuam como armadilhas astuciosas, ou bem relampejam ao olhar fazendo com que vibre, ou enredam-no em seu deslocamento calmo.
Coerente com esse resultado, o espaço do ateliê do artista encaixava-se igualmente na moldura clássica: um grande galpão equipado com uma marcenaria completa. Uma oficina confortável, autossuficiente, dotada de todos os requisitos para o fabrico das obras de madeira. Mas foi então que, como um desdobramento natural do processo de seu trabalho, já anunciado por suas obras, centradas na problematização do espaço, o artista deslocou parte do raciocínio que move sua prática, além de parte dessa prática mesmo, para fora do ateliê, em direção à arquitetura dos espaços para os quais era convidado a expor. Nesse sentido, seu trabalho trocou a orientação escultórica que, dotada de um caráter portátil, tornava-o apto a ocupar praticamente qualquer ambiente arquitetônico destinado a abrigá-lo, por uma orientação de natureza site-specific, isto é, trabalhos cuja solução formal se define a partir das especificidades dos espaços em que são instalados.
A incorporação da arquitetura coincidiu com a inflexão na ordem de objetos realizados por Eduardo Frota, a mudança de qualidade traduzida na mudança do eixo das especulações da ordem da escala dos objetos que, paulatinamente, ao se imporem à arquitetura dos espaços, foram se impondo mais ao corpo do que aos olhos dos espectadores. Para a obtenção desse efeito, e em coerência com sua poética, deve-se destacar tanto o material como o modo de empregá-lo.
Em relação ao primeiro, considere-se que, muito embora continuasse se valendo de madeira, Eduardo Frota trocou a madeira maciça, cujo tratamento apurado, as formas exatas e o polimento como que conservavam algo da dignidade da árvore de onde havia sido extraída, pelas chapas de compensado, material de segunda linha, composto de aparas e pó de madeira e cola, o estertor de uma matéria nobre. Com sua cor vermelha arroxeada, a chapa de compensado cumpre função essencial dentro do ciclo da construção arquitetônica, a começar pelos tapumes que vedam os canteiros de obras e, prosseguindo ainda dentro desse circuito, pelas formas que embalam os vergalhões de ferro e que posteriormente são preenchidas com concreto pastoso. Alguns arquitetos modernos, particularmente os ligados à Escola Paulista, gostam de manter cruas as empenas de concreto, deixando as marcas dessas formas, rastros do processo. Mas, além da finalidade de embalar formas e demarcar os canteiros, impedindo a entrada de estranhos, a chapa de compensado, pelo seu baixo custo, resistência e versatilidade, é que protagoniza a arquitetura informal das favelas, a responsável direta pelos barracos e tudo quanto é construção periclitante, tosca e frágil, que se acotovela nos interstícios deixados na cidade pela lógica especulativa de ocupação urbana. Ao sabor do sol e da chuva, aos poucos as placas vão perdendo o viço de sua cor vermelha para se desfazerem em versões esmaecidas cor-de-rosa. Optando pelas chapas de compensado, o artista, ao dialogar com a arquitetura, o fez pela via de um material integralmente relacionado com ela, uma opção da qual decorreu a sensível transformação de seu ateliê, que, de marcenaria sofisticada, passou a fazer uso de maquinário pesado.
Assim, embora as soluções geométricas – cilindros, cones, círculos, anéis –, mesmo que ativadas por princípios orgânicos, continuem a dar a tônica das soluções formais encontradas, elas possuem agora uma rudeza fundamental, como se a materialização da ideia envolvesse sua queda num mundo denso e áspero.
O uso de formas geométricas puras merece ainda um comentário complementar, referente, conforme já foi antecipado, à maneira como o artista processa o material com a finalidade de obter suas obras. As infindáveis coleções de anéis e de chapas de compensados, a opção por um raciocínio construtivo pautado na noção de série e de repetição, indubitavelmente mais afeito ao pensamento euclidiano, campo ao qual pertence a família de volumes com que o artista trabalha, levariam à conclusão imediata de que o artista faz uso de um processo mecânico, mais industrial e anônimo, um processo de linhagem minimalista, isto é, sem a presença de sua própria mão, sem vestígios de artesanalidade. A economia de meios, o que inclui a economia de gestos, afastaria de sua obra qualquer traço subjetivo, pré-requisito para que a sua poética se inscrevesse na contemporaneidade, em que não afeta nem pretende nenhuma eloquência. Mas, para Frota, as coisas não se dão completamente dessa maneira. Segundo sua poética, a repetição incessante, por guardar um vestígio ainda que sutil da mão que orienta o trabalho monótono e eficiente da máquina, é o motor do desmantelo, é a razão pela qual a geometria pode ser atacada e se desenvolver por vias imprevistas, tornar-se um corpo vivo e de comportamento misterioso.
Três foram as experiências que acusaram a mudança na trajetória do artista rumo ao âmbito dessas observações: a primeira delas realizada em 2000, no Torreão, instituição situada em Porto Alegre; as outras duas em 2002, na Bienal Internacional de São Paulo e na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife.
O prédio do Torreão, nome que por si só descreve seu parentesco arquitetônico, consiste num centro de exposições sem vínculos formais com empresa, pública ou privada, administrado pela iniciativa generosa de dois artistas, Elida Tessler e Jailton Moreira, há mais de dez anos operando na base de convites feitos a artistas de todo o Brasil e do exterior, e que foi o mote para uma intervenção de gênero site-specific, a primeira de Eduardo Frota. Passaram-se três anos desde o convite até a abertura da exposição. Dois e meio para que o artista obtivesse os meios de realização da obra, seis meses de trabalho árduo, finalizado na longa viagem das duas toneladas de material e nos 23 dias de montagem. Vamos ao trabalho: o conjunto formado pela porta de entrada do Torreão, prolongada pelos três lances e meio de uma escadaria estreita que leva ao último piso superior, foi inteligentemente compreendido pelo artista como algo único, uma sorte de corredor ascensional, composto por uma sequência de segmentos de orientação invertida; a bem dizer, quase que o espaço negativo, isto é, o oco, de uma de suas esculturas feitas de vértices cortantes. Quarenta e poucos metros de cilindro oco construído pela sucessão de anéis cortados de chapas de compensado. Tirando partido da porta de entrada, a obra, ou melhor, sua extremidade oca, sua boca, começava no seu limiar, oferecia-se de cara para os desavisados transeuntes que, aguçados pela curiosidade, aproximavam-se para espreitar o corpo cilíndrico, estriado, que sinuosamente ia se insinuando pela escada acima, passo a passo, degrau a degrau, tomando, intermitente, o espaço da passagem, até o ponto de obter a preponderância da largura cada vez mais constrita da escada, truncando o movimento do passante, obrigando seu corpo a progredir lateralmente, de frente para ele, acariciando-o com o olhar, até atingir o cimo, até desaguar-se no quadrilátero vago, o último andar, atravessá-lo diagonalmente para atingir a parede, subir por ela e terminar encaixando-se com precisão na abertura da janela. A boca aberta no rés do chão encerrava-se como boca aberta no alto do terceiro andar de um prédio, escancarada para a paisagem. O cilindro convertia-se em tubo, elemento de ligação, periscópio, passagem de ar, entre a terra e o céu.
A textura obtida pelos anéis de compensado crus, colados uns aos outros em linhas retas ou em volutas caprichosas, geradas pela associação de anéis de espessura variável, adquiria uma solução bem diferente no projeto apresentado na Bienal de São Paulo. Nesse caso em particular, a especificidade da exposição, sua grandiosidade aliada à grandiosidade do pavilhão projetado por Niemeyer – 5 metros de pé-direito –, foi o elemento ensejador de uma segunda obra site-specific ainda não no sentido mais puro do termo, isto é, passível de funcionar em outro espaço. (Hoje ela se encontra dividida entre o Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba, e a Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, onde, por coincidência, dois de seus irmãos estudaram.)
Ao longo de dez meses, o artista realizou um conjunto de dezesseis cones de dimensões monumentais (2,60 metros de diâmetro por 3 de profundidade) no terceiro piso do prédio e arranjou-os ao longo da larga passagem existente entre salas dos seus colegas brasileiros e o guarda-corpo de desenho ondulante projetado por Niemeyer. Os anéis concêntricos progrediam em vaivém, da boca enorme de cada cone até o pequeno vazio circular em que eles se findavam. Vistos de longe, os cones monumentais como que apequenavam o pé-direito de 5 metros do pavilhão, comportavam-se como peças de um jogo qualquer, esparramadas pelo espaço. Aproximando-se, penetrando no território que eles ocupavam, o visitante descrevia uma coreografia corporal: diante de cada um deles, sentia-se minúsculo, com a vista suspensa e o tronco vergado para trás; posteriormente, inclinava-se para dentro do cone, espreitando-o com vagar, avaliando a reverberação dos círculos concêntricos, eventualmente entrando nele e até experimentando o efeito amplificado de sua voz sussurrada e gritada. Por fora, contornando-o, seu olhar descia rápido, acompanhando o movimento brusco com que ele se arremetia do alto para baixo, enquanto sua mão refreava o impulso de empurrar a peça, fazendo-a rodar em torno de seu eixo.
As sobras das chapas de compensado utilizadas para a confecção dos cones da Bienal serviram ao artista como matéria-prima para sua extraordinária intervenção no espaço da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), nem tão pequeno assim, servindo também para sublinhar a quantidade de tempo, material e trabalho despendido naquele como em outros projetos. Ademais, essa intervenção evidencia a capacidade de improvisação do artista, sua habilidade em se valer dos recursos, por parcos que sejam, colocando-os a serviço de suas ideias. Realizada durante o período de seis meses a contar da abertura da Bienal de São Paulo, em março de 2002, a intervenção nas duas salas da Fundaj, separadas uma da outra por duas aberturas existentes nas extremidades da parede que as divide, demandou mais tempo ainda para as viagens de estudo do espaço do que havia exigido o espaço da Bienal. A solução incorreu novamente num cilindro oco de diâmetro bem maior que o do Torreão (90 centímetros), à maneira de uma linha cheia e enrodilhada como prestes a produzir um nó em si mesma, que invadia o segundo ambiente por uma das entradas para, uma vez lá dentro, descrever um círculo e voltar pela outra abertura. Sobrepondo-se, correndo por cima de si mesma, as dimensões da linha faziam-na quase bloquear as passagens, no limite de obstaculizar a arquitetura, negar sua funcionalidade. A vocação orgânica do trabalho, responsável por grande parte da estranheza que ele provoca no público, foi ampliada neste caso com criação de ranhuras por todo o corpo do cilindro. Assim, afora a textura produzida pelos anéis de chapa de compensado colados uns aos outros sem tratamento posterior, o artista adicionava um elemento ainda mais intrigante, um detalhe que estimulava o visitante a descer a pele do trabalho para espreitar seu interior.
A porosidade do espaço é um dos aspectos recorrentes na obra de Eduardo Frota. A interioridade de suas peças, seja ela linear, seja sob a forma da concavidade como a proposta pelo conjunto de cones, rompe com a dualidade esquemática a que reduzimos os corpos no ambiente, meros corpos opacos, densos, que interrompem a continuidade transparente do espaço ambiental, arquitetônico ou natural. Homologamente, destaca-se o modo como algumas de suas peças serpenteiam pelo espaço, escorrem através dele, rompem a placidez que inadvertidamente conferimos a essa dimensão. Do mesmo modo como a Física cuidou de desafiar o tempo, chamando nossa atenção para o fato de que a linearidade e o seu caráter abstrato correspondem apenas a uma noção dele, o espaço em Eduardo Frota vai além daquilo que é definido pelas paredes determinadas pela arquitetura. As peças de Frota destrambelham um espaço determinado, demonstram sua permeabilidade constitutiva, ensinam-nos que qualquer corpo instalado dentro dele, na medida em que também seja dotado de certa interioridade, age como um ralo capaz de agarrar nossa atenção e fazê-la escoar para dentro dele. Ensinam-nos mais ainda: que qualquer coisa pode alterar o lugar onde está, que, em última análise, todas as coisas são produtoras de espaço. Suspeito que foi movido por essa compreensão, levada adiante pela estratégia de fazer com que o objeto enfrente o objeto arquitetônico que lhe serve de envoltório, que o artista transferiu parte de seu ateliê para dentro dos espaços para os quais é convidado a expor.
Como já foi dito no início deste ensaio, a presente exposição nasceu de um acurado estudo das peculiaridades espaciais do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo. O resultado faz-se sentir logo na saída do elevador que serve ao andar da sala reservada à exposição. Já no pequeno saguão, o visitante é tomado de assalto pelo intrincado movimento de uma longa linha tubular de madeira de 35 centímetros de diâmetro, um corpo elástico integralmente perfurado que, tendo vazado pela parede à esquerda de quem entra, segue pelo chão. Ela passa por entre as colunas de seção quadrada, indecisa quanto à direção, respirando e ziguezagueando morosamente, como que indiferente ao trânsito das pessoas, até então facultado pelo servilismo da arquitetura, não se incomodando com o fato de nos obrigar a desvios, aos nossos cuidados com os tropeços, até que, sem que saiba por que, ela retorna ao ambiente de onde vazou para dele entrar e sair mais uma vez. A entrada na sala expositiva com o formato de um “v” aberto acontece pelo vértice. Olhando para a esquerda, teremos então acesso ao resto da obra que havíamos encontrado parcialmente do lado de fora. Ali o corpo se estira, se ondula, se enovela e se emaranha livremente. Saltamos por suas partes, avançamos ao interior da área que ele ocupa desigualmente para avaliar suas contorções, espreitar pelos seus furos, avaliando o efeito da luz sob seu interior.
Do lado da sala, passando pelo painel escuro que fica logo diante da porta, um painel de chapas quadradas de madeira, cada uma delas trazendo estampada a “imagem escultural” de um buraco circular, chega-se a um enorme cilindro que, semelhante a um brinco, atraca-se e pende preguiçosa e pesadamente de uma coluna de seção losangular. Em seguida, somos irresistivelmente atraídos pelo último trabalho, pelas bocas cônicas de um longo corpo também cilíndrico que se estende em contorções caprichosas. Realizado em madeira queimada, preta, o objeto parece sugar o espaço ambiental e o próprio espectador que espreita seu interior sombrio e misterioso. Graças às intervenções de Eduardo Frota, a claridade do ambiente vê-se abalada, o espaço produzido pela arquitetura, povoado por formas insólitas, intransparentes, que se coleiam a ela para lhe abrir poros e fraturas, indicando-nos que, apesar do nosso instinto em palmilhar um chão mais firme e nossa vontade de nos apoiar em paredes estáveis, o mistério persiste e as coisas se mantêm inescrutáveis.
INTERVENÇÕES EXTENSIVAS X
MVRD - VILA VELHA/ES
Paulo Herkenhoff
Um terremoto parece ter assolado a região de Vila Velha. O Museu Vale parece atingido por um desastre, evidenciado por carretéis em desalinho. Uma Intervenção extensiva de Eduardo Frota é a causa do fenômeno.
As Intervenções extensivas X MVRD Vila Velha Espírito Santo, de Eduardo Frota, nunca deixaram o âmbito da Grande Vitória. “Eu me alumbrei com os carretéis do porto de Vitória”, afirmou. Essa visão das bobinas no porto pode impactar o escultor. “Quando visitei o museu”, escreveu ainda, “vi aqueles enormes carretéis como objetos urbanos (e isso me interessa no Brasil hoje; apesar de sua deselegante pobreza, a malha urbana das cidades é algo que me dá muita curiosidade, em todas as regiões do Brasil, isso se aglomerando contra tudo e contra todos, em tempo acelerado contínuo). Achei também que o trabalho poderia se apropriar de um signo urbano na circunvizinhança do museu, sabendo da importância do porto para a cidade.” Por suas respostas à especificidade do lugar, esta Intervenção extensiva é um paradigma no contexto geral da produção de Eduardo Frota pela densidade de seus conceitos e significados.
“Parla!” Em êxtase diante da perfeição da forma criada, Michelangelo ordena que seu Moisés de mármore fale. Se falasse, a escultura indicaria a perfeição do artista na representação do humano. Diante do desenho de um cachimbo, Magritte, outro virtuoso da forma, contra-argumenta: “Isto não é um cachimbo” (“Ceci n’est pas une pipe”). Herdamos o contraditório. Postas as bobinas dentro da cidade de Vitória e vistas desde Vila Velha, a escala em relação às pedras atraiu a atenção de Eduardo Frota. No extremo da aparência objetual desses carretéis, Frota nada afirma ou nega, mas lhes confere o estatuto de corpo transparente: “Atuem!”
Os carretéis são mecanismos de acionamento e estão nesta proposta de Eduardo Frota para o trabalho de intervir. Ainda no exercício de transparência, o projeto do escultor pareceria reivindicar para eles o estatuto operativo de não-carretéis. Se fossem representação, seriam quase carretéis. Um objeto é seu corpo, suas circunstâncias, sua condição material, os significados nele projetados através de leituras e de sua inscrição social, sua funcionalidade produtiva ou sua perversão.
O DISPOSITIVO INTERVENÇÃO EXTENSIVA
Espalhados pelo chão, os não-carretéis atuam como dispositivos para esgarçamento da percepção e do tempo. Pode-se pensar que foram montados ao acaso a partir de um descarrilamento. A Intervenção extensiva X descaracteriza o conceito canônico de instalação que é submetida a problemas de repotencialização da experiência. Em Vila Velha, o pânico da ordem é o desalinho, mais que a desmedida ou o desbordamento quantitativo.
O uso do termo “não-carretel” para designar as esculturas de Eduardo Frota remete à “Teoria do não-objeto” de Ferreira Gullar. O não-objeto, escreve ele, “não é um antiobjeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rasto. Uma pura aparência”. Esta é a condição dos não-carretéis nestas Intervenções extensivas X MVRD Vila Velha Espírito Santo.
Com as Intervenções extensivas, Eduardo Frota infunde nos objetos um estatuto de provocador de crises. O escultor cria um padrão de poética e sistema do objeto próprio nas Intervenções extensivas. A fenomenologia do carretel implica compreender o espaço dentro do espaço. O carretel é um espaço grávido de outro espaço e tempo (a extensão da linha). Assim, o mecanismo carretel guarda uma dimensão espaço-temporal mais vasta que si mesmo.
Numa Intervenção extensiva, ocorre sempre o embate produtivo dos objetos escultóricos com o espaço arquitetônico. É neste embate que um carretel se converte em não-carretel ao engendrar uma experiência outra fundindo trânsito físico (passagem, limite ou barreira), percepção e trânsito de sentidos. A construção do objeto, os códigos da materialidade e as soluções materiais, a escala, a situação no espaço e o estatuto de dispositivo da percepção são instâncias de intervenção no confronto decisivo do espectador no interior da experiência proposta. Nada disso se desprende do espaço sociocultural.
As Intervenções extensivas foram iniciadas em 2000 no Torreão em Porto Alegre. Frota estabeleceu uma rede para certificar a expansão da base territorial do sistema de arte no Brasil, fora do antigo eixo Rio-São Paulo, hoje reduzido à hegemonia de São Paulo sobre o Brasil. Produziu Intervenções extensivas em Fortaleza (2001), na Bienal de São Paulo e no Recife (2002), em Brasília, no Rio de Janeiro e no CCBB de São Paulo (2003), e na Casa da Ribeira em Natal (2004). Na Intervenção extensiva da Bienal de São Paulo (2002), espalhou os grandes cones de uma ponta à outra de um corredor de passagem. Diz ele: “Ali existia um individualismo repetido, ao mesmo tempo um anonimato coletivo da experiência simultânea, e também se esquecia um pouquinho daquele emblema da arquitetura do Niemeyer.” Na escada do CCBB de São Paulo, a “linha” nega a tradição da horizontalidade. O trabalho vai se tangenciando com os problemas de arquitetura do prédio, onde se “encaixa” com a grade, agrega o artista. Na Bienal, as pessoas praticamente entravam nos cones, pareciam ser sorvidas por eles e, dentro, encontravam eco. A relação entre dentro e fora, côncavo e convexo, é uma casca. No processo da Bienal, a Intervenção extensiva de Eduardo Frota, o Hotel de Carmela Gross, ou a instalação A velocidade (1983) de Waltercio Caldas (sobre a velocidade do olhar na exposição) inscrevem-se na tradição da “crítica institucional” internacional dos espaços expositivos, que historicamente incluem de Bruce Nauman a Vito Acconci.
Para Frota, é necessário incluir e expor as diferenças, inclusive a sociocultural do ateliê. As Intervenções extensivas transportam-se e expandem-se geograficamente. Investigam espaços, instalam-se e fundem-se ao lugar aonde vão. O Museu Vale é um espaço expositivo cercado de carretéis por todos os lados. Há carretéis no porto de Vitória na outra margem do canal ou na entrada do museu, onde a Pirelli instalou outros carretéis industriais. São referentes em trânsito. A materialidade na obra de Frota converte-se em corpo investigativo para o alargamento e a porosidade do circuito de artes no Brasil. Neste sentido, estas Intervenções extensivas X MVRD Vila Velha Espírito Santo permitem compreender a complexidade que uma Intervenção extensiva de Eduardo Frota pode atingir na conceituação de relações específicas entre história da arte e contexto local, no caso de Vila Velha e a Grande Vitória. Esta Intervenção extensiva é uma história do lugar “museu” vinculado à economia da região e a seu tecido urbano.
CORPO DA LINHA E DO PLANO
Para produzir os não-carretéis, Eduardo Frota não faz desenho preparatório. Faz anotações. Coloca a folha de madeira sobre uma mesa e desenha os planos, anota e corta. Frota compacta em ações escultóricas a trajetória do ponto, linha e plano da aula de Kandinsky na Bauhaus. No projeto de Vila Velha, usou fotografias do espaço, sobre as quais situou os carretéis à caneta. Não gosta de papel como suporte. Prefere o plano duro que incorpora a escultura como seu alvo. O xilógrafo Oswald Goeldi prezava a matriz em madeira de topo para seu ataque expressionista à madeira. A sensibilidade de Frota para o material leva-o a perceber que a madeira se adensa no topo esgarçado. O que fica aparente é a cesura.
Eduardo Frota se observa em suas Intervenções. Sente “como se estivesse sempre estendendo a linha. Vou lá, corto. [...] quando penso no carretel, sempre penso como se estivesse puxando a linha”. Seus não-carretéis se desenrolam no campo semântico. Aparentam estarem vazios. Seu jogo se finca, de modo relacional, no significante “linha”. No plano concreto, os não-carretéis deslocaram o referente da caixa de aviamentos para o dos cabos óticos da indústria petrolífera (há quem ainda os pense a partir da indústria têxtil ou da telefonia tradicional do século XX). São carretéis de rebobinagem de cabos industriais “umbilicais” ligados à indústria do petróleo e fibra ótica. A segunda operação semântica de Frota é gráfico-semiológica. Uma bobina traz sempre a imagem inconsciente da linha enrolada. Paradoxalmente, mesmo sem linha/fio, esses carretéis, no entanto, estão cheios de linhas. São linhas de corte. É necessário entender que o corte não secciona o cilindro central dos carretéis.
O corte cria os planos-lâminas circulares que, acumulados, formam o cilindro central furado da bobina. “Todos os objetos serão perpassados por uma linha de construção invisível, desenhada com a máquina de corte repetidas vezes, retirando do plano da madeira industrial arruelas que serão justapostas uma a uma, construindo o corpo do carretel. A linha do carretel é o corte, que se estende numa borda limite ‘entre’ espaços, dos objetos e da arquitetura.” Essa linha-corte remete à produção de Lygia Clark, na qual os planos pictóricos possuem a espessura de um corpo. É por isso que a artista pode incorporar, sob o conceito de “linha orgânica”, a fresta entre dois planos de madeira (como na série de pinturas intituladas Superfície modulada e Planos em superfície modulada), que dinamiza a superfície da pintura, ou inscrever linhas sulcadas no suporte de madeira em (Unidade). Os Contrarrelevos (1959) de Clark são construídos pela sobreposição física de alguns planos pictóricos, porque são feitos em madeira. A partir da constatação empírica da existência da espessura do plano, admite-se que a linha seja aberta entre dois planos, neles sulcada, ou que sejam eles empilhados. Na década de 1960, o programa de Lygia Clark explicitava o papel dinâmico na relação artista com o Outro: “Somos os propositores: trazemos em nós um grande vazio. Propomos-lhe dar sentido a este vazio. [...] O plano largou a sua magia e dissolveu-se.” O que resta é a geometria simétrica da subjetivação, ação mútua entre os pares da arte.
Por vezes, o desenho de Morandi confere à linha a tarefa de assinalar o vazio entre os elementos da natureza-morta em vez de descrevê-los. Nas linhas orgânicas ou entre os planos de Frota e os objetos desenhados por Morandi, habita o vazio-linha. Nesta Intervenção de Eduardo Frota, o esforço da escultura está em definir vazios. Instalados no museu, cada objeto tem uma função adverbial de lugar vazio: o entre. “Assim, o corte é a linha que desenha, separa, acumula, estrutura e constrói os objetos em um outro espaço de existência”, diz o escultor. É o corpo da coisa mental.
VELOCIDADE (A CARTOGRAFIA DA INTERVENÇÃO EXTENSIVA DE VILA VELHA)
A instalação será interventiva no espaço arquitetônico do museu ao explorar sua divisão interna. O pânico dos objetos se debate entre a dimensão, a escala, a presença dos volumes e a relação humana. O espaço normativo será disfuncionalizado e, mesmo contemplativo, perde sua lógica. A regra será substituída por fluxos de sentidos experimentados. “Não será uma intervenção meramente retiniana, mas para ser vivenciada com o corpo através da passagem”, anteviu Eduardo Frota. O escultor cria as condições para o corpo vivido. Este é o sentido da experiência clássica da fenomenologia francesa, que movimentou os debates entre Sartre e Merleau-Ponty e teve seus reflexos no Rio de Janeiro.
As Intervenções extensivas X MVRD Vila Velha Espírito Santo criam nexos entre o espaço do Museu Vale com a história da arte, permitindo perceber relações da obra com a arte brasileira dos anos 1950 e 1960, com artistas como Lygia Clark, Iberê Camargo, Ione Saldanha e Cildo Meireles. As referências de Frota terminam, nesta proposta, por introduzir alguns problemas da própria disciplina da história da arte. Ao mesmo tempo, as Intervenções respondem às funções originais dos prédios do Museu Vale, seja na condição de espaço físico em sua implantação no porto, seja nas funções museológicas de museu ferroviário com um programa de arte contemporânea. O tecido urbano está amarrado não apenas pelo canal de navegação que separa o museu em Vila Velha do porto de Vitória, mas pela presença dos carretéis industriais nas duas margens do mesmo canal. Por fim, os carretéis têm, na Grande Vitória, uma leitura peculiar. Eles indicam o desenvolvimento econômico recente e novas atividades industriais implantadas no estado do Espírito Santo.
SALA 1
Em alusão ao porto como sua origem, o espaço das Intervenções extensivas X MVRD Vila Velha Espírito Santo está ancorado numa mesa inclinada. Esse desvio desestabiliza o plano horizontal, base da natureza-morta ou da paisagem. O gênero natureza-morta foi devastado pelos cinquenta não-carretéis pequenos espalhados pelo chão. Decifrar este caos é responder também o que esses carretéis nos interrogam sobre sua condição.
Frota refuta a mesa como horizonte regulador do olhar. Não admite a Regra de Ouro neste território, em que o olho parece existir em estado selvagem. A mesa ejeta ou rejeita, por via da gravidade, a condição de suporte para qualquer natureza-morta que ousasse se armar como carretel e não enfrentasse as condicionantes da física. Frota também recusa o significado moral do tempo metafísico de algumas naturezas-mortas clássicas da Europa ou mesmo brasileiras recentes. Assim, recusa a piedosa lição sobre a fugacidade da existência de uma Vanitas holandesa. Essa arte não amplia o campo da metafísica. A gravidade precipita o espaço euclidiano num processo entrópico. É a condição de sua lógica e da imanência de seu tempo.
SALAS 2 e 3
São grandes carretéis que devoram o espaço. Como máquinas desejantes, eles parecem se atrair e se agrupam. Como recalque e pulsão, o rolar do não-carretel fica entre a situação estática (isto é, lugar parado) e o movimento latente. Frota quer a tensão intrínseca trazida em si pelo objeto. Cada não-carretel mantém sua autonomia de máquina, mas seu conjunto não segue qualquer ordem para empilhamentos que se fundasse na racionalidade de um sistema de objetos. Jean Baudrillard enfatiza que a liberação das funções do objeto não é a liberação do objeto em si.16 Ao contrário, os não-carretéis instituem uma lógica de circulação do desejo. Ao se liberarem no sistema de objetos, pode se definir como signo. Ainda que alguns dos corpos-carretéis estejam dispostos em relações desejantes, ocorre uma presença relacional dos objetos-dispositivos no espaço da Intervenção extensiva. Coito, voracidade, indiferença – as máquinas ativam o espaço por onde circulam os passantes entre suas “dobras, seus furos, cheiros e ecos”.17 O artista busca uma produção de caos. Para Frota, em Vila Velha ocorre certo lance de dados, na tradição de Mallarmé, que não abolirá o acaso. O desalinho convive com uma dispersão inesperada e imperceptível. Juntando planos de madeira em compensado produzidos por fornecedores diversos, cada um desses carretéis laminados é vestígio de florestas. Estão amalgamados fragmentos de muitas árvores/indivíduos de espécies diferentes provenientes de matas distintas. Tem-se a alusão à paisagem imaginária, agora fragmentada, dispersada e embaralhada em sua origem. Eduardo Frota sabe que a desordem é a crise do sublime.
SALA DO MUSEU
Na Sala de Exposições Temporárias do Museu Vale, na antiga Estação Ferroviária Pedro Nolasco, são instaladas caixinhas de som que apresentam “esses resquícios do trabalho, baixinho, nada mais”, escreveu Eduardo Frota. Este espaço do Museu Vale, no complexo museológico, é dedicado às atividades da Vale do Rio Doce e às atividades da empresa, à tecnologia e ao trabalho. Contrastando com as aflições dos dois espaços do galpão, talvez a Sala, ocupada apenas pelo som, seja o ponto mais importante de emissão de sentido desta proposta de Vila Velha. Se o carretel agia como uma espécie de devorador de espaços, o som atua como uma ruminação política dos espaços.
O programa conceitual de algumas Intervenções extensivas de Eduardo Frota aproxima sua obra das ideias de Gullar na “Teoria do não-objeto”. Propicia a entrega do objeto à experiência fenomenológica dos sentidos, na esteira da filosofia de Maurice Merleau-Ponty e Susanne Langer, na esteira do neoconcretismo. Ainda na “Teoria do não-objeto”, proclama-se que “ninguém ignora que nenhuma experiência humana se limita a um dos cinco sentidos do homem, uma vez que o homem reage com uma totalidade e que, na ‘simbólica geral do corpo’ (Merleau-Ponty), os sentidos se decifram uns aos outros”. Em termos gerais de seu dissenso com o concretismo, o neoconcretismo escapou da “telecracia” da motorização que se preconizava a partir de Norbert Wiener. É nos vestígios e resquícios que Frota desloca o campo motriz para o sensorial, através da valorização do caráter háptico das rebarbas dos planos cortados, e do cheiro da madeira serrada ou do som da fabricação de seus não-carretéis.
A partir de sua matriz neoconcretista, uma Intervenção extensiva de Frota é operação ampla da sensorialidade, entre a experiência subjetiva e a vivência coletiva. Havendo apenas som na sala do Museu, o campo maior é o da arte e da música. A Intervenção extensiva define-se como campo plástico esculpido por sons da experiência. Neste momento, Eduardo Frota dialoga com certo Hélio Oiticica (“O que eu faço é música”), Cildo (a escultura sonora da espiral do espaço cósmico no disco Mebs/Caraxia e a plasticidade sonora da velocidade na instalação Eureka/Blindhotland) e contemporaneamente com as instalações sonoras de Paulo Vivacqua.
O marcado interesse de Eduardo Frota pela fabricação do objeto aponta para problemas da transparência nos processos sociais de construção da arte e constitutivos do valor de troca no capitalismo. Este é o momento da Intervenção extensiva de Vila Velha que imbrica trabalho e valor. “Devo aí abrir um parêntese de que não me interessa nenhuma intenção sociológica ou antropológica de autonomia científica”, adverte o artista, “procuro outra lógica, outros entendimentos através de uma ética da criação, através de um projeto artístico, do qual possa se expandir para o coletivo”. Portanto, não caberia reduzir esta Intervenção ao conceito de escultura social de Joseph Beuys, mas a processos estéticos brasileiros de resgate social.
O trabalho se constitui por uma necessidade, diz o artista; a artesania cria corpos pela repetição e obsessividade. Esse processo, para Frota, é aquilo que poderia se definir como “produção de produção”. Por isso, não bastam o ateliê e a fábrica, mas é necessário transpô-los para o próprio espaço expositivo, com máquinas, materiais e operários-assistentes. Por um mês, o artista hospedou-se e trabalhou no galpão do Museu Vale para concluir algumas etapas do trabalho não realizadas em Fortaleza.
A obra de Frota resiste contra a opacidade projetada pelo capitalismo sobre o valor do trabalho agregado. O artista recorre ao invisível e ao impalpável para dar a conhecer aquilo que é estrategicamente obliterado no processo de constituição do valor na arte com a incorporação do trabalho e dos sons do esforço produtivo, uma espécie de voz laboral.
A Intervenção extensiva de Vila Velha é uma operação no interior da teoria do valor. Sua obra deve ser situada numa linhagem de artistas como Antonio Dias, Barrio e Cildo Meireles, nos anos 1960 e 1970, que atuaram criticamente sobre as condições materiais da produção, por vezes vinculados a conceitos do materialismo histórico. Frota, como esses artistas, trabalha a própria condição social da produção de valor na obra de arte. Numa proposta de Cildo Meireles, a etiqueta da Árvore do dinheiro (1969) define que este objeto é formado por 100 notas de 1 cruzeiro e que seu valor é 2 mil cruzeiros. É a revelação crua do valor agregado pelo fator arte. Eduardo Frota desloca o foco para o fator trabalho. A etiqueta na obra de Meireles é uma operação política para expor o modo de operar a constituição do valor de troca no mercado de arte. O som na Intervenção de Frota presentifica o trabalho. Ao confrontar os conceitos da economia política de “valor de uso” e “valor de troca”, Cildo Meireles esclarece a operação de constituição imaginária do objeto de arte como um signo – valor de troca. Incide sobre as etapas de circulação e apropriação da obra de arte. Já Frota, ao trazer o som do homo faber, quebra a cadeia de silêncio, rompe o vácuo verbal sobre o valor do trabalho. Cildo Meireles e Eduardo Frota apontam para a “defasagem entre valor de troca e valor de uso, ou entre valor simbólico e valor real”.
Gravações de agrupamentos de toda sorte de sons das máquinas, equipamentos e ferramentas durante o processo no ateliê são expostas na Sala do Museu, onde já existe uma forte presença do trabalho. A faina se cola à obra de arte. Os sons instalados por Frota não ilustram nada (tal como uma tarefa) nem delineiam tempo cronológico algum (como uma jornada). Simplesmente, evidenciam o trabalho. Absorvem resquícios e rebarbas de cortes, batidas, serras, motores, falas, peças arrastadas, de sons arbitrários, “uma poeira musical” da faina produtiva, como observa o artista: “o avanço da construção, a experiência propositora nesses espaços é também uma investigação de território cultural e social.” O espaço expõe a espessura do fator trabalho na constituição da obra.
Eduardo Frota sabe que a obra deve resistir ao processo de fetichização das Intervenções extensivas como mercadoria. O sentido da obra de Cildo Meireles é operar com irracionalidades financeiras e expor contradições. Eduardo Frota trabalha com as questões de escritura/trabalho e sentido/valor com a etapa de produção, deslocando em seguida o foco do processo de produção para o da percepção. Ao tratarem do “valor de troca” do objeto artístico, deixam transparente a hipótese econômica perversa implicada na ação artística.
A pequena sala restaura através do som aquilo que é obliterado no campo social. À desaparição do menor traço do trabalho útil particular que dá origem à mercadoria (como discutido por Marx em O capital) e que se oculta e oblitera, Frota justapõe os resquícios dos pequenos gestos e fatos do infra mince de Marcel Duchamp. Portanto, mesmo nos sons menores há um rumor de Marx e Duchamp.
Em termos energéticos, poderíamos pensar o gozo (o que faria Freud com a pulsão de morte) em relação ao segundo princípio da termodinâmica, ou seja, Eduardo Frota considera aqui a transformação energética não reversível na feitura dos carretéis. Esta sala trataria, pois, dos limites e da passagem de uma energia considerada degradada (ex.: calor), de tal forma que o que é efetivamente gasto no gozo não possa ser recuperado e encontrado.
O OLHA EM PEDAÇOS
“Sempre acho que é possível fazer e fazer com boa atitude, achando um campo possível, construindo mesmo palmo a palmo”, diz Eduardo Frota. Seu modo de construir os não-carretéis pode ser alinhado com a investigação de Linda Nochlin sobre o fragmento como metáfora da modernidade. Nochlin conclui que, a partir do século 18, a modernidade estaria representada por Henry Füssli num desenho em que figura a vigília melancólica do artista diante de monumentais fragmentos escultóricos clássicos de um corpo (o artista massacrado pela grandeza das ruínas antigas, 1778-1779). Esta seria a inapelável perda da totalidade e a completude desaparecida.29 A escultura de Eduardo Frota trata da calculada fragmentação desses corpos, que antes haviam sido cones ou agora são “não-carretéis”.30 Um e outro são um corpo laminado.
Quando chegou ao Rio em 1978, Eduardo Frota viu um Objeto ativo de Willys de Castro no MAM na exposição O Projeto Construtivo Brasileiro na Arte. “Foi para mim uma experiência definitiva. Depois conheci a produção de Lygia Clark e Hélio Oiticica e fiquei muito tocado. Hoje, a artista que mais me interessa é a Lygia Clark”, relata Frota. No neoconcretismo, fincado na produção dos anos 1950, no Manifesto Neoconcreto e na “Teoria do não-objeto”, bem como em seus desdobramentos na década de 1960, desenvolveu-se um programa em que a obra se torna um dispositivo de articulação dos sentidos e, a partir daí, de projeção de significados.
A arquitetura de empilhamentos ocorre na produção de Eduardo Frota e remete aos Contrarrelevos (1959) de Clark, que se constituem pela sobreposição física de planos pictóricos. Empilhar os planos de madeira para produzir uma alternância entre encobrimento e revelação de si mesmos. Os planos possuem, pois, a espessura de um corpo. Vistos frontalmente, os Contrarrelevos parecem estar num só plano em relevo. Para Clark, o problema planar não se contém em suas limitações de superfície pictórica frontal. Feito em madeira, tal plano carrega um sintoma de volume. É necessário entender que, na empiria do neoconcretismo, essa corporeidade do plano pictórico decorre da espessura física do próprio suporte material. O serrar os planos para execução dos objetos de Frota também deve ser referido à primeira das duas ações (verbos) do programa de escultura de Amilcar de Castro: cortar (e depois dobrar para surgimento do espaço escultórico tridimensional). Os objetos de Frota também se situam no campo da arquitetura de empilhamentos. É necessário evocar Tatlin e Rodchenko, fundadores de uma arte em que o espaço representado se torna espaço real. Para materializar os signos de tempo e de espaço sob intervenção, a escultura de Eduardo Frota tem suas referências na obra de Richard Deacon, Anish Kapoor e Richard Long.
Numa Intervenção extensiva, cone ou carretel, o corpo, formado por planos-placas superpostos, não é um monólito. Desorientado, o espectador da Bienal de São Paulo se perdia na ambivalência do côncavo/convexo, sem encontrar ponto de definição diante da hipótese desestabilizadora da rolagem dos cones. Em geral, nas Intervenções extensivas, a presença dos objetos implica noções de fábrica, vazio e velocidade. Sempre ocorre uma implícita velocidade no funcionamento de uma bobina ou carretel, dependendo de uma série de fatores. No caso desta Intervenção em Vila Velha, há um projeto, por ora irrealizado, de trabalhar com carretéis num campo de graxa. Embora material diferente, a graxa, próxima da cera, remete à escultura de Degas, obra decisiva para definir a importância da gravidade para a escultura moderna. Seria uma experiência desacelerada, viscosa, movediça, atolada e de encharcamento dos objetos no espaço pastoso. O olho é o velocímetro, que recolhe, mede e confere velocidade. Na psicanálise freudiana, a viscosidade da libido (Klebrigkeit der Libido) é uma imagem da maior ou menor capacidade da libido para se fixar num objeto ou numa fase e a sua maior ou menor dificuldade em alterar os investimentos depois de obtidos. A viscosidade varia de acordo com o indivíduo, como variaria, numa Intervenção extensiva, de acordo com cada não-carretel. Já no campo da física, sabemos que na Lei do Trabalho das máquinas “roldanas”, se não há atrito, o trabalho da força aplicada à máquina é igual ao trabalho produzido pela máquina. O projeto com graxa sabe que, em síntese, o trabalho aplicado é igual ao trabalho produzido. Nesse projeto irrealizado, Frota opera circunstancialmente com o estado antimotriz dos não-carretéis.
Nas Intervenções, o objeto é um corpo coeso; no entanto, sua laminação é de forte impacto visual, pois ataca as noções clássicas de volume e massa. Ele deixa visíveis suas operações materiais, atuando com um antissimulacro do corpo escultórico monolítico. Nesse sentido, a obra de Eduardo Frota escancara a verdade material, uma atitude ética, que no Brasil se simboliza no aço na obra de Amilcar de Castro, ou na madeira no osso em certo momento da produção de Antonio Gomide, Tenreiro, Krajcberg, Palatnik, Farnese, Ascânio MMM, José Bento ou do próprio Amilcar, entre outros. Esta posição é contraposta à negação do material, como ocorreu na escultura parisiense dos latino-americanos Soto e Tomasello ou de Uecker do grupo Zero, dos quais derivam os relevos de Sérgio Camargo. Com as rebarbas e o som, Frota deixa visível o trabalho como valor agregado. É a madeira no osso que confere aos objetos de Frota o caráter orgânico de ossatura exposta, mais que estrutura visível. “São pele e carne expostas”, diz o artista. A rebarba é cicatriz. Talvez também restaurasse a aura da obra de arte. No entanto, só pode ser agora aura perversa: demarcação, pelo objeto com suas fraturas, do lugar instável.
A escultura contemporânea dissolveu o monólito. A partir da compreensão precisa da história moderna do objeto, os artistas neoconcretistas (Franz Weismann, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Amilcar de Castro) operaram uma contribuição internacional singular. Por caminhos diversos, a arte contemporânea brasileira desenvolveu aguçado entendimento da condição material do objeto, da natureza dos símbolos e dos signos, da inscrição social da arte e da fenomenologia da percepção. Eduardo Frota provém desta tradição. Críticos e historiadores de Ferreira Gullar a Rosalind Krauss observam que o próprio processo moderno deixa de ser a operação de procedimentos de formalização do volume e exploração da plasticidade da massa. Na introdução a seu livro Passages in modern sculpture, Krauss afirma que a escultura moderna é incompleta sem a discussão das consequências temporais do objeto, algo que no Brasil se discutiu claramente desde a década de 1950 com imanência do tempo da experiência escultórica. Essa teórica observa que a história da escultura moderna coincidiu com o desenvolvimento de dois corpos de pensamento, a fenomenologia e a linguística estrutural, fenômenos aos quais também a arte e a crítica no Brasil foram sensíveis.
“Gosto de João Cabral quando fala das tripas. Ao mesmo tempo, o trabalho tem essa exterioridade para o mundo, também tem uma interioridade própria do processo do trabalho. Há os números para cortes e medidas, mas também deixo esse espaço para ir sendo construído.” Corpo sem órgão, não tem a forma de órgãos humanos nem apresenta vestígios de ação corporal, mesmo se indicadas, mas opera a partir da lógica de funcionamento do capital.
Exposta, a laminação nas Intervenções extensivas fabrica a fragmentação. Esculpir, para Eduardo Frota, é laminar o olhar. É serrar planos e justapô-los compactados para se cerrarem como objetos. Abertos, furados, laminados, esses corpos resistem ao estatuto de monólito. Frota distancia-se de certa tendência “Serra/macho” da escultura brasileira. Isto é, Frota difere desta escultura difundida que se legitima em arroubos adolescentes dos excessos, tributários de Richard Serra (no campo das dimensões, peso ou quantidade de materiais, consumo de energia humana, aplicação de maquinaria complexa – a escultura passa a ser uma espécie acrítica de investimento do capital, maquinaria, matéria-prima e trabalho), sendo frequentemente autoritária ou fálica, implicando a imposição arbitrária, sobre o público, da ordem do pai.
“Percebi que o corte sempre foi um tipo de pensamento. A audácia do corte desmonta e monta a forma/objeto.” Um carretel é sempre uma presença latente da linha. A linha pode indicar uma falta. A partir deste ponto melancólico, é pelo estranhamento dos objetos, reconhecidos como não-carretéis, que eles são ressignificados pelo campo da experiência.
QUASE CARRETÉIS
Porque era inevitável, como se verá, as primeiras ideias de Frota tiveram de enfrentar o condicionamento do meio pela iconografia da pintura de Iberê Camargo, com seus carretéis da infância armados como naturezas-mortas. Em sua partida, os carretéis poderiam ser naturezas-mortas; a mesa, horizonte. Se fossem, já enfrentariam seu embate, remetidos à condição de quase objetos, no confronto entre a representação e a “presentação”. Deveria ser tarefa da crítica retirar da frente da concretude da obra de Frota os carretéis do pintor, dado que são objetos fictícios. Os não-carretéis não são uma representação, mas uma “presentação”. Se o carretel está num extremo da experiência, o não-carretel está no outro, e o carretel representado está entre os dois, a meio caminho.
Iberê Camargo não aprendeu pintura ao contemplar uma obra de Morandi. Quando conheceu a obra de Morandi, ainda era um pintor à deriva e assim continuou por um bom tempo. Aprendeu sobre a ressignificação do gênero da natureza-morta, substituindo latas e vasos por carretéis. Iberê Camargo é um dos raros artistas que parece ter aprendido pintura com o próprio material, a tinta. De modo preciso, Iberê deslocou o silêncio estável do mundo pela ansiosa arquitetura precária dos carretéis. Iberê era seu próprio carretel. Seus mestres podem ter sido os não-arquitetos da arquitetura sem arquitetos das favelas cariocas. Sua natureza-morta seria, como ele próprio, uma iminente convulsão, mas a pintura-imagem, como a fotografia, congela a cena. Desmonta o iminente desabamento. Quem aprendeu sobre pintura com Morandi foi Milton Dacosta.
Para Eduardo Frota, esta Intervenção extensiva não é “releitura decodificada de Iberê Camargo, mas será um adensamento de possibilidades através desse emblema conceitualmente considerado na sua pintura e na arte moderna brasileira (os carretéis da década de 1950 e 1960)”. A partir disso, o resto é iconologia. Ao escultor interessaria essa tirada de lugar – o objeto é deslocado dessa cosmologia moderna do plano de representação da tela. O escultor se propõe a “jogá-lo, desarrumá-lo no chão, com toda força de resistência da obra ao mundo sedutor e descartável da contemporaneidade, que resiste afirmando uma diferença, e o que tudo isso implica: gesto, materialidade, construção de tempo, adensamento de experiência coletiva, fluxos de tempos/espaços/sentidos (ampliados, contidos, expandidos, deslocados)”.
A Intervenção extensiva de Vila Velha propõe questões historiográficas. Claramente, ela não trata nem de uma apropriação da obra do pintor pelo escultor nem de um embate entre ambos. Eduardo Frota se relaciona com a história da arte como história de questões plásticas, conceituais e políticas. Para ele, a história da arte não é a história da forma, como pensariam os historiadores que, por falta de repertório, operassem sua prática acadêmica a partir de fórmulas: “carretel/Iberê” ou “bandeirinha/Volpi”. Nesta facilidade, o artista seria proprietário intelectual de uma forma, e a história da arte seria um sistema de objetos que dispensaria Baudrillard. Bastaria a listagem das Páginas Amarelas. Seria então uma historiografia como a escrita referenciada aos clichês imediatos.
Os carretéis de Eduardo Frota não são provenientes da fonte canônica da arte brasileira determinada pelas naturezas-mortas de Iberê Camargo, que resultam do empilhamento dos carretéis estruturado como um castelo de cartas. Seus carretéis evocavam os jogos da infância, mas se disciplinavam, mesmo se em equilíbrio precário, para a formação do objeto da representação de sua pintura figurativa. Na primeira etapa de sua obra pictórica em torno do tema centrado no objeto,
o carretel já prenuncia o que no futuro se configuraria como uma espécie de “pintura semiológica”. Distante da economia formal e do viés arquitetural do neoconcretismo de Lygia Clark, aquele objeto na pintura de Camargo é peça de “construtor”, mas congelada. Essa rotação da perspectiva histórica, diz Frota, lhe “interessa demais”.
Seria um reducionismo superficial diagnosticar que a pintura de Iberê Camargo das décadas de 1950/1960 tivesse sido determinante para esta instalação de Eduardo Frota em 2005. É uma referência. Os carretéis de Iberê não são máquinas, mas monólitos empilhados conforme a ordem lógica de uma malha imaginária e ordenadora da imagem. O interesse de Frota, sobretudo através da fenomenologia do carretel, é com a plasticidade concreta do objeto, não com sua imagem. A relação dos artistas com a história da arte não é linear, nem segue a cronologia do historiador, mas se move por transversalidade, em zigue-zague ou de forma rizomática. “Esse trabalho foi tomando outro rumo, despregando-se do Iberê, pensando na Ione e também ganhando a sua autonomia ao mesmo tempo em que ia sendo construído no ateliê.” Reais e no chão, os carretéis de Ione não prometiam apenas rolar. Efetivamente, podiam girar em seu eixo e, em seu giro, exporiam sua questão cromática latente: a de serem um disco de Newton e, por isso, um monocromo potencial. Ione Saldanha não “inventou a roda” com o carretel. Inventou uma questão pictórica, um campo de pintura, uma máquina de ver.
ESPELHO
Se, para Giulio Carlo Argan, a obra de arte é um significante à espera de um significado que é projetado pelo Outro, essa espera na proposição das Intervenções extensivas de Eduardo Frota não é apenas mecânica. A espera produz uma densidade que é absolutamente dependente do público. Em cada espaço expositivo, elas podem tomar várias configurações diferentes, devido às inúmeras possibilidades de agrupamentos e posicionamentos favorecidas pelo trabalho. Propiciam uma experiência processual no campo da percepção relacional dos não-carretéis e constituem uma topologia simbólica do espaço expositivo. Esses objetos veiculam uma contradição, pois, como não-carretéis, não se esgotam nas referências de uso e sentido porque não se inserem na condição do útil e da designação verbal. Seu serviço à arte é a desestabilização dos espaços.
Uma Intervenção extensiva implanta um processo de articulação espacial, mas não pela mera disposição dos corpos no espaço. Usa qualidades espaciais desagregadoras: brechas, atravancamento, amontoado, distanciamentos, vazios, viscosidade, o escorregadio ou inclinação. Obra e sujeito se fundem numa espécie de experiência epistemológica de uma condição espacial singular. Operados esses espaços, eles promovem a reversão de sua função desagregadora. Se pode ser simultaneamente desestabilizadora e agregadora, uma Intervenção extensiva configura-se como relações antitéticas. Pode ser, então, uma experiência do paradoxo.
No estúdio, a enorme faina dos catorze operários tinha o objetivo de montar estruturas para dar corpo ao vazio. Por conta do som, o olhar abriga o investimento do trabalho. O olho, adequadamente postado, atravessa o objeto-dispositivo como uma luneta – pode haver ainda quem insista em chamá-los de carretéis – para ver através de seu furo, e desde o velho armazém da Estação Pedro Nolasco em Vila Velha, os monumentais carretéis para cabos industriais empilhados no porto de Vitória do outro lado. Nesta Intervenção extensiva no Museu Vale, o olho, à procura de seu alvo, atravessa o canal do continente à ilha. E, ao se fixar naqueles carretéis industriais, encontra seu espelho. E, no espelho, o que existe é o vazio.
CARRETÉIS
Ricardo Aleixo
há os que dão
a entender
que entendem
a pequenez
das coisas pequenas
mas só o que fazem
é engrandecê-las
turvá-las de grandeza
até perdê-las
eduardo frota
ao contrário
contraria a retiniana
rotina
do olhar
e se atém
à pequenez
que sustenta
as coisas grandes:
desinfla-as des
equilibra-as redes
enha o som de fala
perdida que
revém e vai por
dentro delas
e este é
seu modo
de sabê-las
CADERNO DO ARTISTA
ENTREVISTA
Rio de Janeiro, 1 de dezembro de 2013.
Participantes: Luiza Mello, Agnaldo Farias, Clarissa Diniz,
Eduardo Passos, Luis Carlos Sabadia e Yuri Firmeza.
Agnaldo Farias
Você veio morar no Rio de Janeiro quando? E por quê?
Eduardo Frota
Cheguei ao Rio em junho de 1978, aos 19 anos. Na minha família, já existiam duas rotas migratórias feitas por avós maternos, tios, irmãos e primos. Uma para São Paulo e outra para o Rio de Janeiro via Minas Gerais. Naquela época, achava que a cidade de São Paulo era mais ligada à produção fotográfica, aos estudos de engenharia e coisas afins, por conta de tios, irmãos e primos que foram para lá com esse objetivo. Acionei a segunda via, sem muito critério de avaliação profissional, simplesmente por um dado de memória afetiva com a cidade do Rio de Janeiro, onde tinha estado pela primeira vez aos 7 anos de idade, ocasião em que conheci o meu avô materno que lá morava, que era cinegrafista, fotógrafo e pintor, e eu ainda não conhecia pessoalmente.
Agnaldo Farias
Vindo direto de Fortaleza?
Eduardo Frota
Não, vindo de Minas, onde morei um ano e meio, entre Belo Horizonte e Ouro Preto. Eu vinha meio caindo de cima para baixo, tragado pela força de gravidade do mapa brasileiro, como diz Belchior. Adoro essa imagem como emblema, porque articula dados da geografia, da física e da cultura social do Brasil, com seus paradoxos de modernismos sem modernidade ampla, armando ainda um grande problema para o pensamento da produção contemporânea e da arte em particular, cheio de esgarçamentos, brechas e elos perdidos.
Luiza Mello
Então tinha menos de 20 anos?
Eduardo Frota
Na verdade, saí de casa aos 15 anos, e por dois anos morei na Paraíba. Depois, via Minas, cheguei ao Rio.
Eduardo Passos
Mas não deu para ficar em Fortaleza. Você saiu para a Paraíba, Belo Horizonte...
Eduardo Frota
Entre a Paraíba e Minas, voltei a Fortaleza e passei um ano. Já tinha começado a fazer os primeiros trabalhos sistematicamente, na mesma época em que abandonei a escola convencional. Fui a Canoa Quebrada passar quatro dias e passei quarenta. Voltei de jangada, uma grande aventura. Já estava ensaiando qualquer deslocamento que me abrisse outro rumo existencial. Foi nesse momento que um tio que morava em Minas e era fotógrafo me chamou para ser seu ajudante em Belo Horizonte. Ele fotografava as cidades históricas de Minas, e de imediato achei que aquele convite poderia ser interessante. Por nítida influência do meu avô, um dos pioneiros na fotografia e no cinema no Ceará, todos os meus tios maternos, sem exceção, dedicaram-se profissionalmente à fotografia e ao cinema Brasil afora, em Fortaleza, São Paulo, Minas, Rio e Brasília. Como estava à deriva, fui, porque queria mesmo era viajar. Além de conhecer as cidades barrocas mineiras, ainda ganhava um dinheiro como assistente.
Luiza Mello
Mas em Fortaleza você já fazia alguns trabalhos? Como foi antes?
Eduardo Frota
Sim. Em Fortaleza, desde muito cedo, aos 8, 10 anos, já desenhava muito, pintava a guache, trabalhava com muitos papéis diferentes, papelões, madeiras, arames, tudo por influência de minha mãe, que manipulava muito bem vários materiais, fazia decorações para bailes de carnaval e réveillon em clubes da cidade e tinha extraordinária capacidade de produção e senso estético. Cresci vendo-a trabalhar com vários materiais, e muitas vezes fui seu ajudante. Mas meu conhecimento teórico em arte era nenhum. Só comecei a acessar alguma informação através da coleção “Gênios da pintura”, da Editora Abril, que chegava em pouquíssimas bancas de jornal da cidade. Isso era tudo, mesmo porque não existia escola, nem professor, nada. Até que um fato importante aconteceu por volta dos meus 13, 14 anos. Meu avô materno, que morava no Rio, voltou a viver em Fortaleza. Como disse antes, era pessoa interessantíssima. Logo que voltou, foi morar na minha casa, e minha mãe construiu um pequeno ateliê para ele, que já tendo sido fotógrafo, cinegrafista e tantas outras coisas, começou a pintar depois dos 60 anos. Imediatamente fui cooptado para ajudá-lo no ateliê, esticando suas telas, misturando tintas, fazendo compras de materiais no centro da cidade e executando tarefas de pintura que ele me delegava.
Luiza Mello
Acho importante você citar aquelas histórias que você conta do seu avô.
Eduardo Frota
Meu avô foi idealizador das primeiras imagens sobre Lampião e o cangaço brasileiro, nos anos 1930, feitas pelo mascate libanês Benjamin Abraão, cuja empreitada pelo sertão ele financiou, dando as máquinas e ensinando-o a fotografar e filmar. Benjamin, que tinha contato com os cangaceiros, era o único credenciado a documentar aquela epopeia. O meu avô entendeu de imediato a importância social e histórica disso e o convocou para fazer aquelas célebres imagens. Se abrirmos o site da cinemateca brasileira, meu avô Ademar Albuquerque é citado como realizador de 34 filmes sobre diversos assuntos, como: açudagem, as primeiras imagens sobre o Padre Cícero e os romeiros em Juazeiro do Norte, outro sobre o aviador português Gago Coutinho, quando atravessa o Atlântico e aterrissa na Barra do Ceará. Teve contato com Orson Welles quando este filmou no Ceará e até emprestou máquinas a ele. Enfim, vários assuntos lhe interessavam. Para Sganzerla, aquelas imagens de Lampião, do seu bando e do cangaço são a matriz do verdadeiro cinema brasileiro, e como todos nós sabemos vai influenciar diretamente o cinema de Glauber Rocha e, de certa maneira, todo o Cinema Novo. Essas imagens em pedaços estão espalhadas, porque na época o DIP (Departamento de Imagem e Propaganda) de Getúlio Vargas censurou com veemência sua publicação, e o meu avô, por receio de ser perseguido, foi colocando em mãos de terceiros. Então, trechos curtos dessas imagens estão em vários acervos particulares. Isso tudo é uma longa e interessantíssima história.
Agnaldo Farias
E os seus primeiros trabalhos no ateliê dele eram sobre o quê?
Eduardo Frota
Primeiro, ele me deu umas três telas muito grandes e comecei a pintar umas paisagens que nunca secavam, porque eu sobrepunha muitas camadas de tinta. Nunca tinha pintado a óleo, não sabia como era, e ele também não entendia nada de técnica, a questão não passava por aí. Para ele, as memórias de infância é que se tornavam imagens pictóricas, principalmente girassóis, pássaros, paisagens inventadas do interior do Ceará. Depois, comecei a pintar grandes painéis sobre Eucatex, que eu sobrepunha à medida das portas. Penso que, já naquela época, intuía que fazia coisas para a escala humana sem ter qualquer conhecimento sobre o assunto.
Luiza Mello
Você tinha que idade?
Eduardo Frota
Entre 13 e 15 anos. Mas outro fato importante foi decisivo para a minha saída: meu tio fotógrafo Chico Albuquerque, que quando rapaz fez o still do filme de Orson Welles sobre os jangadeiros cearenses e logo depois imigrou para São Paulo, morando por lá mais de trinta anos, onde foi um nome emblemático da moderna fotografia brasileira. Também através do seu famoso estúdio da Avenida Rebouças, colaborou decisivamente na formação de novas gerações de fotógrafos paulistanos. Depois de sofrer um enfarte, e com medo de morrer, abandonou tudo em São Paulo e voltou a morar em Fortaleza. Depois que viu meus primeiros trabalhos, me aconselhou a ir de imediato para São Paulo estudar. Foi a primeira conversa crítica que tive sobre algo que estava fazendo. Além de excelente fotógrafo, entendia e gostava de arte, e também era colecionador; trouxe para a cidade os primeiros Wesley Duke Lee, Aguilar, um Nelson Leirner, outros modernos como Bonadei, Mário Cravo, Aldemir Martins, Antônio Bandeira e Carmélio Cruz, mas na maioria artista ligados de uma certa maneira à produção paulistana. Então, essas primeiras conversas com ele ainda em Forta-leza foram pontuais para aumentar o desejo de partir, e ele foi muito enfático, porque dizia que eu tinha que fazer isso de imediato. Só o lugar que foi diferente do que tínhamos pensado: em vez de São Paulo, fui para o Rio de Janeiro.
Eduardo Passos
E você chegou ao Rio e foi morar onde?
Eduardo Frota
Logo que cheguei de Minas fui morar em uma pensão na praça São Salvador. Lá dividia um quarto com três pessoas. Depois de uns dez dias morando lá, a Dona da pensão entrou no quarto e o chão estava impregnado de giz Crayon, restos de desenhos que caíam no chão. Ela me deu um grande esporro e me proibiu de desenhar lá. Era uma paraibana semianalfabeta, mas uma mulher inteligentíssima e generosa, que tinha sido cozinheira da Escolinha de Arte do Brasil, para onde me levou no outro dia, me prometendo que ali eu poderia fazer aquelas “doidices” sem sujar o quarto nem incomodar os outros hóspedes. Chegando lá, ela me apresentou diretamente à diretora da escola, a professora e arte-educadora Noêmia Varela, que após ter feito três entrevistas comigo, em situações diferentes, me deu uma bolsa de estudo para que eu fizesse o Curso Intensivo de Arte na Educação (CIAE). Foi através do duplo gesto generoso dessas duas mulheres, uma ex-cozinheira semianalfabeta e uma educadora e intelectual, que me foi dada uma oportunidade seminal, o amálgama existencial que eu precisava naquele momento. Com aquele gesto e naquele lugar, iniciava-se o começo da minha formação como artista e arte-educador, indissociável uma da outra, e a partir dessa nova situação pude fincar meus interesses e aprendizados no Rio de Janeiro. Até hoje, acredito que arte e educação podem ser campos de interesses adensadamente mútuos, mesmo entendendo criticamente que esse dado de humanismo tenha entrado em vertiginosa crise nos tempos atuais.
Luiza Mello
Então a Escolinha de Arte do Brasil foi realmente importante?
Eduardo Frota
Importantíssima, em todos os aspectos, principalmente do ponto de vista da formação humanista. Entre os professores visitantes com quem tive contato, estavam, entre outros, Nise da Silveira, Augusto Rodrigues, Ferreira Gullar, Noêmia Varela, Ana Mae Barbosa, Lúcia Alencastro, Cecília Conde, Nilton Cavalcante, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e tantos outros intelectuais e artistas, que por lá passaram. Foi através da Escolinha que tive contato com o Museu de Imagens do Inconsciente e o trabalho da Casa das Palmeiras, ideias revolucionárias da psiquiatria junto à vanguarda da arte brasileira. Todos sabem da aproximação de artistas e intelectuais com a produção dos internos do hospital do Engenho de Dentro, e o quanto isso influenciou no alargamento das vanguardas brasileiras a partir do neoconcretismo. Essas questões ainda reverberavam muito na época em que lá cheguei, e penso que influenciam e atravessam a larga espessura da produção contemporânea brasileira; mesmo que de modo submerso, estão lá, na parte mais funda do inconsciente. Noêmia Varela, como diretora daquela instituição, foi uma das intelectuais mais generosas com quem convivi. Como grande educadora que era, sabiamente me convenceu que eu tinha que voltar a estudar e concluir minha formação acadêmica. Foi então que eu fui fazer dois anos de supletivo, retomar os estudos de 1° e 2° graus que tinha abandonado ainda em Fortaleza. Terminada essa formação básica, prestei vestibular para a Escola de Belas Artes, onde fui admitido, mas só fiquei dois meses e nunca mais voltei. Depois, prestei vestibular para cursar licenciatura plena em educação artística, ao mesmo tempo em que já trabalhava como professor de artes para o 1º e 2º graus em algumas escolas do Rio de Janeiro. Mas tudo começou naquela Escolinha, onde fui estudante, monitor e depois contratado para ser professor pela primeira vez. Foi uma experiência de formação humanista, em que convergiram para o mesmo campo de interesses a arte, a educação, as ciências humanas e suas inflexões sociais e políticas.
Luiza Mello
No Rio, você dava aula e, em paralelo, tinha uma produção?
Eduardo Frota
Exatamente. Teve uma época em que eu dava muita aula, tanto na Escolinha de Arte do Brasil, como no Colégio Senador Correia, no Colégio Cruzeiro, na Fundação Humberto Pelegrino e eventualmente em outras escolas e ateliês de artistas, como o ateliê da Barra. Foi um tempo de experiência muito adensado, tanto na minha formação intelectual, como na compreensão produtiva da arte dentro de um sistema específico de conhecimento.
Agnaldo Farias
E depois você trabalhou no Parque Lage?
Eduardo Frota
Não propriamente na administração da escola. Cheguei ao Parque Lage quando Gerchman tinha acabado de sair, vivia-se uma ressaca por conta disso. Só fui ter contato com ele posteriormente no MAM do Rio. Mas lá no Parque Lage frequentava muito a biblioteca, e por causa disso a bibliotecária Isabel Cabral me convidou para fazer um bico muito interessante. Fiquei responsável por abrir e fechar aquela biblioteca das 18h às 22h, três vezes por semana. Foi ali que diminuiu minha defasagem, através dos livros e das publicações que lá chegavam, mesmo com muito atraso. Lembro-me que ali tomei conhecimento, por meio de livros e revistas, da produção dos pintores americanos do expressionismo abstrato, da pop art, pouca coisa sobre os artistas minimalistas e também alguma produção de artistas europeus, como a arte povera e o novo realismo francês. Também tinham uns livros maravilhosos sobre litografias; um era clássico, todos os alunos da oficina de lito consultavam: The Tamarind Book of Lithography: Art & Techniques. Foi lá que peguei os primeiros livros emprestados, e de três não me esqueço jamais: A necessidade da arte, de Ernst Fischer; Arte e alienação, de Herbert Read; e Marcel Duchamp ou o Castelo da pureza, de Octavio Paz. Quando lembro disso, vejo o quanto tudo era muito pouco e precário, mas estava chegando e tateando esse mundo que se apresentava. Às vezes, não entrava ninguém na biblioteca, e eu adorava, porque ficava com tempo livre para fuçar tudo. Foi muito bacana. Depois de oito meses, resolveram fechar a biblioteca na parte da noite, porque achavam perigoso, e de fato começaram a aparecer casos de violência no Parque. Quando fechou, fui procurar outras bibliotecas, principalmente a da Rio Arte, na rua Rumânia, bem menor, mas muito interessante, porque era mais atualizada com a produção da arte brasileira recente, mesmo que com poucos catálogos e textos, desde os movimentos concreto e neoconcreto, pouca coisa da produção de 1960 e 1970, e alguma coisa sobre música, o cinema novo e experimental e a poesia marginal da década anterior. Foi lá que peguei para ler os primeiros textos de Mário Pedrosa e Ferreira Gullar. Tudo muito escasso, mas, naquele momento, de uma importância fundamental para mim.
Agnaldo Farias
Quem eram as referências nessa época? Ficava nítido, ou nem tanto, que, já nos anos 1990, antes mesmo, no final dos anos 1980, o padrão do Parque Lage era muito variado. Mas isso não se via, não é?
Eduardo Frota
Bom, o que tenho a dizer é que ali, logo no início dos anos 1980, me retirei do Parque Lage, como uma forte opção intuitiva do que eu não queria, e também porque não era muito afeito àquelas badalações, e não entendia que para fazer arte você teria que estar em permanente estado de alegria. Para mim, não, minha história era outra, deixei uma cidade, cortei laços afetivos, tudo foi muito conflitado para começar a me dedicar ao que pretendia e sobreviver no Rio de Janeiro. Naquele momento, acho que o mais importante foi vagar só pelos museus e as poucas galerias de arte da cidade do Rio; isso foi bem mais enriquecedor como força desejante em direção a um encontro demasiadamente existencial, em que a arte fazia parte, é claro, mas ainda permeada de grande silêncio introspectivo. Então aquele barulho estridente, estéreo e domesticado, em que tudo era pseudoprazer e se sublimava a existência paradoxal e conflituosa inerente do fazer artístico, para mim soava como algo frágil e superficial. Até hoje penso que, para produzir arte, há que se ter um deslocamento íntimo e existencial para que tudo isso se processe a partir do lugar mais escuro, mais turvado de inconstância pessoal, para que ganhe força esse desejo orgânico e fermente essa ideia como uma necessidade inadiável. É nessa instabilidade sobre fina espessura assertiva que talvez se processe uma linguagem, uma saída, se é que há alguma, como uma invenção constante da vida. Uma escavação sem fim. Então me afastei decisivamente do Parque Lage, e passei dois anos desenhando muito e pintando as primeiras ripinhas em casa solitariamente, primeiro em papelão, depois em madeira, onde, através dos cortes de torções no suporte físico da obra, dá-se a matriz da minha pesquisa e experiência com a linguagem plástica, e é a partir dali que me invento de fato como artista. Foram essas experiências solitárias que antecederam as verticais que você conheceu na exposição em São Paulo. Hoje, refletindo sobre essa frágil linha da minha formação no Rio, destacaria três pontos: a Escolinha de Arte do Brasil, os dois anos de fecunda solidão produzindo em casa e, depois, a monitoria no departamento de cursos no MAM do Rio de Janeiro, onde fiz vários cursos, mas destaco os que fiz com Gastão Manoel Henrique e Aluísio Carvão, além de umas três aulas com Raimundo Colares, que logo adoeceu e voltou para Minas. O primeiro, um grande desenhista e pensador de volume e espaço; o segundo, um pintor extraordinário, um artista com alma de poeta; e Colares, para mim, um dos maiores artistas do Brasil. Não menos importante foi o meu primeiro curso de filosofia, ministrado pelo prof. Ronaldo Brito, sobre o texto O olho e o espírito, de Merleau-Ponty. Devo salientar que também mantive contato com outros importantes artistas e professores, como Gianguido Bonfanti, Rubens Gerchman, José Maria Dias da Cruz e Eduardo Sued. Também frequentei as bem equipadas oficinas de gravura daquele museu. Na verdade, considero minha formação muito mal arquitetada, e junte-se a isso que só tardiamente, aos 36 anos, viajei para fora do país. Talvez o que considero mais importante foi ter persistido em me inventar através de uma experiência física e material, em uma imersão quase compulsiva.
Agnaldo Farias
(Sobre o MAM RJ) Isso em qual ano?
Eduardo Frota
Por volta de 1984 e 1985.
Agnaldo Farias
Quando você faz aquelas ripas, durante os anos 1980, que você mais tarde expôs naquela programação do Centro Cultural São Paulo, em 1991, aquele trabalho aparentemente estava referenciado por Willys de Castro, não?
Eduardo Frota
Na verdade, essa pesquisa começou por volta de 1983-84, muito embora só realizadas como linguagem plena em 1988-89, e antes de serem expostas no Centro Cultural São Paulo elas passaram pelo programa Macunaíma (da Funarte), Rio Hoje (no MAM RJ) e pelo Centro Empresarial Botafogo, também no Rio. A sua observação é perfeita, mas posso misturar um pouquinho mais e traçar uma espécie de genealogia artística de “primeiro momento” assim: “Objeto Ativo”, de Willys de Castro; “Linha Orgânica”, de Lygia Clark; a “Cor”, em Hélio Oiticica; e o “Corte”, de Amilcar de Castro, não necessariamente nessa ordem, mas todas essas questões juntas e embaralhadas ao mesmo tempo. Essas foram as fontes básicas que arquitetaram minha primeira plataforma de pesquisa. Foi a partir do entendimento dessas produções que compreendi o grau de sofisticação dessas ideias e conceitos. Devo dizer que minha produção foi essencialmente influenciada pela arte brasileira, principalmente do final dos anos 1950 e as de 1960 e 1970. Foi em contato com a experiência física e conceitual dessas produções que me inventei artista, nesse terreno movediço da arte brasileira, com seus graves problemas formais e suas grandes virtudes experimentais. Sou fruto direto dessa experiência paradoxal, escassa e rica ao mesmo tempo.
Agnaldo Farias
De quem você está falando da geração dos anos 1970?
Eduardo Frota
Cildo Meireles, Antônio Manuel, Barrio, Raimundo Colares e Luiz Alphonsus, principalmente esses. Com a volta da pintura no início dos anos 1980, acho que esses artistas ficaram um pouco à margem, e, com exceção dos cadernos de arte brasileira da Funarte, dos quais saíram cinco ou seis edições, se não me engano o último número dedicado ao trabalho de Antônio Manuel, a produção editorial sobre a obra desses artistas era muito escassa, mesmo eles já tendo importância fundamental no circuito Rio-São Paulo, e alguns até fora do país. Tudo era muito precário para a formação sistemática do artista. Hoje mudou radicalmente. Pelo trabalho do Zé Resende, vim me interessar um pouco depois, principalmente naquele momento que ele expõe no Ciclo de Escultura: Perspectivas Recentes da Escultura Contemporânea Brasileira, da Funarte, em 1987/88. Mas devo dizer que, dos noves artistas que participaram desse programa, duas exposições me marcaram mais: a do artista de Campinas, Marco do Vale, que retomava algumas questões do “Objeto Ativo” de Willys de Castro para expansão daquele objeto num campo ampliado da escultura para a instalação; e a de Ivens Machado, não menos importante, que trazia o erotismo como potência escultórica. A minha primeira exposição profissional se deu dentro do projeto Macunaíma da Funarte, e aconteceu em paralelo à exposição de Frida Baranek, dentro daquele Ciclo de Esculturas.
Agnaldo Farias
E Sergio Camargo não entra aí? Aquela coisa de pegar o cilindro, soltar no chão, de reorganizar?
Eduardo Frota
Essa pergunta é ótima para esclarecer aquela série de trabalhos que chamei de Nós. Sinceramente, não tenho como parâmetro o trabalho de Sergio Camargo como acionador daquela produção, porque entendo que os trabalhos de Camargo se dão por um acúmulo da matéria escultórica, que, mesmo desbastada, está em força de ajuntamento para um ganho volumétrico; e ainda quando há o corte na matéria, não vejo ruptura, e sim um adensamento em sentido gravitacional. E, sobre os toquinhos de madeira, estão arranjados como variações compositivas em relação a um suporte preestabelecido.
Na série que fiz, o volume cilíndrico de madeira apresenta-se muito mais como uma extensão da linha sobre o plano da parede, sem suporte virtual, e, mesmo quando as linhas se tangenciam, desarmam um diagrama de desenho idealizado, porque, como o princípio motivador nasce de um corte aleatório e do “tangenciamento” dos cilindros, esses é que desconstroem com suas linhas de madeira a estrutura idealizada da forma, abrindo inesperados clarões de espaços no plano da parede. Em resumo, são esgarçamentos de espaços desenhados através das linhas de madeira crua, e não uma acumulação da matéria/volume escultórico, como, por exemplo, o mármore que esse artista usou tanto, ou a cor branca aplicada sobre os cilindros de madeira que revela uma procura de tradição da luz sobre o fato escultórico, ou mesmo os cilindros em pedra preta que não deixam de ser monólitos.
É claro que, quando comecei aquela série, já tinha conhecimento satisfatório da produção de Sergio Camargo, e por isso não me inibi em levar esse projeto adiante, porque essa linha a que me refiro ganha autonomia como estrutura através da experiência material percebida dentro do próprio processo de meus trabalhos anteriores. Essa linha já estava em latência perceptiva, como que caindo, já deslocada entre a borda do plano monocromático e o espaço do mundo. É daí que abandono a cor, e essa linha ganha autonomia de estrutura escultural para investigar o espaço físico. Em resumo, minha matéria conceitual, que podemos pensar perpassando toda a minha produção, não está subordinada às questões modernas da aula de Kandinsky: plano, ponto e linha, como uma composição virtual. Radicalmente, é a linha a construção física que se apresenta para além da forma, a investigar e arquitetar novos espaços. Uma invenção de uma arquitetura não normativa para investigar o espaço de uma arquitetura funcional. A linha como uma construção de passagem num lugar de passagem.
É através do gesto com a máquina na mão que corto essas chapas anônimas dos planos industriais dos compensados de madeira, que puxo e desenrolo com vigor essa linha adormecida na matéria. É desse paradoxo, a linha de corte da máquina exercendo o desmonte da matéria do plano, a construir a linha física que invadirá os espaços arquitetônicos para uma nova percepção simbólica do lugar, “para além da forma monolítica”.
Eduardo Passos
Gostaria que você falasse sobre o seu trabalho não conhecido, sobre o seu processo. Pensar essa relação entre a obra como um produto e o processo de produção, ao qual você dá tanta importância. Talvez, já para antecipar o que poderia ser o final da conversa, a sua obra vá nessa direção, de insistir em um processo de produção que pensa no coletivo. Fale um pouco da importância do processo de fazer a obra, que talvez seja tão importante, ou mais, do que a obra como produto.
Eduardo Frota
A produção material da minha pesquisa artística se deu basicamente entre duas cidades, Rio de Janeiro e Fortaleza, em momentos distintos. Quando fiz a opção de voltar para Fortaleza, já estava participando de boas exposições, tanto no Rio, quanto em São Paulo. Foi naquela época que comecei a expor mais sistematicamente no circuito institucional, através do VI e X Salão Carioca de Arte, depois no Projeto Macunaíma da Funarte, XI Salão Nacional, também da Funarte, no MAM RJ com a coletiva Rio Hoje, Salão dos Novos no Centro Empresarial Rio, e em São Paulo no Salão Paulista e, logo depois, no Centro Cultural São Paulo. Foi toda uma geração que começou no início dos anos 1980 e que até hoje está aí: artistas do Rio, de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, principalmente dessas cidades, passaram por esses programas expositivos, e eu fazia parte da turma do Rio, porque morava lá. Foi no meio dessa conjuntura de inclusão no circuito que resolvi dar um corte radical retornando para Fortaleza, principalmente porque o meu trabalho estava pedindo maior escala e no Rio não tinha espaço físico para desenvolver a pesquisa e produzir em maiores dimensões. Algumas das últimas produções que fiz no Rio, no final dos anos 1980 e início dos 1990, perdi em galpões de transportadoras, garagens de amigos ou de conhecidos de amigos, porque não tinha onde guardá-las, nem dinheiro para pagar aluguel de espaços condizentes com a mudança de escala que se estava processando. Então voltei para Fortaleza como quem aposta muito mais no processo inventivo do que na política das artes, já que em Fortaleza o circuito na época era muito precário, e ter voltado não foi nada fácil nem animador no início. Então, faço uma distinção bem demarcada na trajetória da minha produção: de 1978 a 1992, no Rio de Janeiro, considero que foi “a formação do sujeito artista”; e de 1992 a 2010, em Fortaleza, chamo o ateliê de “corpo coletivo”, essa parte que se refere mais diretamente à sua pergunta. Em Fortaleza, pude pôr em prática largamente a ideia que me foi sempre importante, a de exercer todos os dados processuais da experiência no fazer artístico, não separando o intelectual do operativo, o conceito da prática e, mais que isso, incorporando a esse processo uma equipe de auxiliares, que, expandindo esse fazer para além das especificidades técnicas, agregavam outros conhecimentos àquela prática processual. Ampliado humanamente todo o processo coletivo, a construção do objeto de arte como finalidade única perde interesse absoluto; ao mesmo tempo que relativiza esse fazer, opera outros códigos de interesses, produzindo mais interseções no espaço social da cultura, onde todos participavam ativamente.
Agnaldo Farias
Então, só para eu entender: você montou o seu ateliê numa região bem desfavorecida da cidade e incorporou a própria garotada no processo de trabalho. Você oferecia o que para eles, além da própria proficiência no campo da marcenaria?
Eduardo Frota
Montei meu ateliê num bairro periférico chamado Montese, e os auxiliares em sua grande maioria eram moradores de lá, ou de bairros vizinhos. A primeira ideia era dar vinte empregos, nem sempre conseguidos, mas no geral variava de oito a doze, às vezes quatorze. Somente durante os processos desenvolvidos para as intervenções da XXV Bienal de São Paulo, como para o Museu Vale, em Vila Velha, atingi o número de vinte auxiliares. A questão era montar uma equação muito simples: primeiro, dar emprego e pagar bem; depois, desalienar o tempo dispensado ao trabalho através de um processo coletivo que descobrisse interesses individuais de cada um. Constantemente, criávamos tempo/espaço para reflexão e discussão do que se fazia, ou do que se propagava desse fazer para o mundo e vice-versa. Em algumas situações, parávamos a produção para refletir sobre uma questão que fosse abordada como interesse coletivo, e mesmo partindo de uma curiosidade pessoal ou particular de alguém. Com as máquinas produzindo silêncios, conversávamos quarenta minutos, uma hora, sobre o assunto apontado. Também havia os encontros semanais com convidados de outras áreas de conhecimento, como, por exemplo, filosofia, história, permacultura, arquitetura, literatura, poesia, antropologia urbana, violência, religião, política, sexualidade etc. Não era uma escola no sentido clássico, longe disso, mas uma experiência coletiva partilhada e ampliada através de um processo que se abria para vários saberes. Também eram considerados os interesses, saberes e práticas de cada um fora do ateliê. Então o ateliê não era só local de encontro para executar tarefas, mas um espaço em permanente construção para trocas simbólicas diversas, alterando consideravelmente a leitura que fazíamos da vida e do mundo.
Luiza Mello
Foi logo que você voltou do Rio para lá?
Eduardo Frota
Logo que voltei para Fortaleza, comecei a dar aula de desenho e pintura, e acompanhar projetos de jovens artistas, mas ainda não era o projeto do ateliê em alta voltagem de funcionamento, isso começou a se dar à medida que foi sendo montado e ampliado para esse objetivo. Os que já estavam indicavam os novos e assim, como uma cadeia de interesses, formamos uma excelente equipe. Vários amigos dos amigos queriam uma oportunidade para fazer parte daquela experiência, porque quase todos propagavam no bairro.
Agnaldo Farias
O seu projeto foi a própria situação, o contexto, a vontade de engajar essas pessoas, que o levou a buscar, a produzir, ou fazer com que a sua poética se encaminhasse numa ênfase no aspecto processual do engajamento do trabalho colaborativo? Ou o trabalho já era isso e precisava de pessoas para fazer?
Eduardo Frota
Quando voltei e resolvi produzir em Fortaleza, acho que a minha formação como arte-educador veio à tona como uma grande força utópica, objetivada para uma experiência de trabalho mais abrangente, compreendida largamente como um dado formativo, humanamente falando. Mas quero deixar claro algo de profunda importância: toda essa experiência estava longe de ensinar somente a instrução funcional, ou mesmo formar profissionais, isso é muito pouco e sinceramente não me diz quase nada. O que quis propor fundamentalmente foi uma formação educativa para desenvolvimento das “faculdades humanas”, que despertasse interesses para além de um saber meramente instrumental. Claro que isso é um dado importante no processo, mas não é tudo e não se pode resumir em uma formação que se diga humana, um simples saber instrumental ou somente operacional do processo. Como diria Mário Schenberg, “nunca devemos confundir educação com instrução”, e como percebo nitidamente que o Brasil não atingiu sequer um grau médio de instrução, e continua imensamente subinstruído, assim como ele, Mário, devemos pensar que o desafio maior é “a educação como elaboração das faculdades mentais e humanas”. Radicalmente, é nisso que acredito. Nunca me importei em ser professor para ensinar isso ou aquilo, porque quem educa de fato é o próprio processo sendo pensado e elaborado coletivamente. Ele se faz propositor, e as pessoas é que devem descobrir suas ferramentas mentais para existir, construir-se para a vida e para o mundo, seja para o que for, inventar seus métodos e transgredi-los depois de atendidas as necessidades primeiras, mudar de rumo quando outras vocações lhe apareçam e sejam tão necessárias para alimentar a sua condição humana. Mas devo dizer que o tempo foi a grande dimensão inventiva desse processo como “matéria-prima” constitutiva da linguagem, porque, através de sua extensividade para o fazer laboral, operava um estado permanente de latência para a troca de saberes humanizáveis e humanizados, desconstruindo muitas vezes o simples mecanismo cronológico da composição material. Essa porção de subjetividades individuais e coletivas se potencializava como um “oposto de assimetria complementar” no corpo físico da obra, desierarquizando o “peso” como valor acumulativo da experiência artística.
Luiza Mello
Isso foi mais ou menos em que ano?
Eduardo Frota
De 1992 a 2008.
Luiza Mello
O ateliê com todos os funcionários, com esse sistema de aulas, funcionou durante quantos anos?
Eduardo Frota
Dos dezesseis anos que passei naquele lugar, acho que foram catorze anos com o ateliê funcionando nesses moldes, entre altos e baixos. Devo dizer que enviei projetos paralelos de formação para algumas instituições, buscando esse apoio de formação e educação, mas a contrapartida era lastimável, porque sempre solicitavam “eventos” mais quantitativos para as pessoas do bairro, querendo fazer do ateliê um centro cultural de varejo, sem avaliar a qualidade profissional e humana do que eu estava propondo, uma formação com verticalidade que reverberasse para além daquele espaço/ateliê. Queria sistematizar com mais recursos e fôlego aquela experiência. O nosso projeto era trabalhar até as três da tarde, e de três às cinco se dedicar aos estudos, como filosofia, história da cultura do Brasil (os grandes intérpretes), história da arte, língua portuguesa, inglês e computação, incluindo aí boa alimentação, café da manhã, almoço e lanche da tarde, pagando bem bolsistas, professores e convidados palestrantes. Por sua vez, esses bolsistas aos sábados dariam oficinas abertas de arte à comunidade. A meta de cada turma era passar dois anos no ateliê, para que depois do tempo previsto desse chance a outro grupo e assim por diante. Quando eu apresentava esse projeto, geralmente os apoiadores achavam muito elitista, porque só contemplava de 20 a 25 pessoas a cada dois anos, não valendo o dinheiro empregado para esse objetivo, uma vez que desejavam financiar mais atividades voltadas para a recreação e a música. A conclusão a que chego é que, no Brasil, quando se pensa em formação sociocultural, lato sensu, para a população pobre, quase sempre se resume em tocar tambor. Filosofia, história, artes, fazer do Brasil um lugar melhor e mais possível para ser vivido e pensado a partir da sua condição política, social e cultural, nem pensar. Então, como não queria abrir mão do meu projeto original, nunca o esfacelei para ter verba fácil e fazer o que eu não queria como algumas vezes era sugerido. Tenho todo esse projeto anotado detalhadamente, bem articulado e pensado com clareza. É lindo, e, se não o fiz idealmente 100%, fui fazendo do jeito que pude com ajuda dos amigos que por lá passaram e deram sua contribuição, e também da contribuição não menos importante dos assistentes assalariados. Todos que por lá passaram contribuíram para o projeto, sempre a partir de uma proposição artística. Sem essa prerrogativa, não teria aventura possível, porque, quando se arma tudo isso em torno de uma produção artística, os paradoxos começam a aparecer de imediato. Pra quê? Com que finalidade? Pra quem? Qual o porquê de tudo isso? A arte tem função social? Há individualidades no processo coletivo? É um mundo de problemas que aparece e que, na grande maioria das vezes, não tem resposta objetiva possível. É por isso que acredito mais no processo como interrogação e expansão da consciência do que no objeto específico de uma dada produção. A questão é sempre ter a pertinência para recolocar a pergunta em pé: pra que e por que estamos fazendo isso? Esse é o bom atrito que se ergue através das mentalidades envolvidas.
Luiza Mello
E que parte desse posicionamento tem a ver com uma negociação institucional? Como você mantinha esse ateliê?
Eduardo Frota
Em primeiro lugar, sempre preferi expor em instituições públicas, entendendo por público o que seja para o usufruto de todos. Em princípio, penso que os espaços expositivos em instituições públicas democratizam mais a inserção do objeto artístico, transmutando-o em bem cultural, com um número maior de público participante. Acho isso da maior importância. As negociações eram na maioria das vezes através de convites, em que a verba destinada para a produção entrava no ateliê “conceitualizada” por mim como o “desvio do capital”, para engendrar toda aquela concepção de trabalho. Esse ateliê se mantinha aos trancos e barrancos, algumas vezes fechando no vermelho, acho que como a grande maioria.
Luiza Mello
O funcionamento do ateliê fazia parte do trabalho.
Eduardo Frota
Tudo fazia parte do trabalho, desde a primeira ideia, a pesquisa conceitual, escolha de materiais, adequação das máquinas, quais ferramentas, a formação de equipes, pensar sobre a alimentação, transporte, quais os professores convidados etc. e tal. De tudo eu me inteirava para que aquele organismo todo trabalhasse com qualidade. Todos os dados, humanos ou técnicos, eram constituintes para a imersão naquele processo que, diferentemente do anterior, se iniciava. Tudo tinha que estar no nível de qualidade de atenção para se começar uma nova aventura.
Agnaldo Farias
É, mas, mal comparando, você era a quintessência da empresa familiar numa época em que mais e mais se tem diretorias executivas. Então, era preciso nesse momento, talvez, repensar e delegar, embora sem perder o controle. Como você poderia fazer essa ordenação, dirigir esse projeto que, em última análise, é estético e político simultaneamente?
Eduardo Frota
Mas, com tudo isso, deleguei muitos poderes, dividi muitas decisões, aprendi com muitas delas e incorporei algumas outras, mas isso não me aliviava de uma responsabilidade relacional com tudo e por todos. Às vezes, acordava de madrugada e descia do mezanino para o galpão onde estavam sendo produzidos aqueles trabalhos. Ali, sozinho, com uma lanterna, para não acordar minha companheira na época, ficava pensando e anotando soluções para o devir do dia seguinte, porque diariamente a equipe chegava às sete e eu tinha que abrir o portão do galpão, pois quando começava o dia já tinha que ter pensado algumas soluções para problemas evocados no dia anterior.
Luiza Mello
Acho que isso é um ponto muito óbvio na sua obra, uma coisa que admiro muito. Mas fico pensando como produtora, por exemplo, que faço projetos do início ao fim. Se você vier me procurar para fazer um projeto, nós vamos pensar juntos em um orçamento, vamos negociar com uma instituição ou com o patrocinador. Acredito que isso seja uma parte do trabalho também. Porque como você vai viabilizar um ateliê que tem vinte pessoas trabalhando? Como é que é?
Eduardo Frota
Parto de uma proposta artística para que seja materializada. É claro que, para isso, tem que ter orçamento, e incluir nesse orçamento todo custo da equipe do início ao fim, inclusive sem abrir mão de que parte dessa equipe viaje para montar o trabalho, faço questão disso. Nessas conversas para decidir orçamento, sempre fui muito franco sobre os objetivos materiais que estava negociando, nunca os princípios que orientavam minha produção. Mas não posso deixar de admitir que, do ponto de vista de quem manipula o capital financeiro, esse dinheiro é empreendido em um processo de oito a doze meses de trabalho, para que na maioria das vezes essa proposição artística depois do tempo de exposição seja cortada, desmanchada. Compreendo que, para muitos financiadores, essa produção artística não agrega valor especulativo, e então a coisa complica muito. Em resumo, poderia dizer que essas intervenções não transmutavam o objeto de arte em “commodities”. É uma produção que se faz a contrafluxo da especulação do capital financeiro, e por isso eu a chamo de “desvio do capital”, porque descontextualiza o valor do dinheiro destinado simplesmente para aquelas operações que têm como objetivo único a produção do objeto de arte. O processo de construção material que engendrava toda aquela experiência não poderia se fazer sem aquele “desvio do capital” destinado à formação sociocultural. Por isso, eu convidava os palestrantes, os professores visitantes, organizava conversas sobre o saber de cada um, o orçamento para alimentação, o apoio para a biblioteca aberta o tempo todo, a inclusão dos membros nas viagens para montar a obra em outras cidades, as horas de folga para visitar museus e outros interesses culturais, pensar aqueles lugares como outra matriz cultural etc.
Eduardo Passos
Mas a própria obra comia esse dinheiro, mais do que você?
Eduardo Frota
Sim. Eu também sobrevivia porque vendia trabalhos na maioria das vezes direto ao comprador, sem intermediários. Se eu contar nos dedos esses anos todos, não vendi mais de cinco trabalhos via intermediação de galerias. Quero acrescentar também que paguei muito bem as pessoas que comigo trabalharam durante essa experiência de vinte anos. Não tive um problema com a justiça trabalhista, porque não era uma relação de terceirização ou anonimato, mas sempre uma relação dialogal.
Luiza Mello
E funcionou sempre assim?
Eduardo Frota
É, entre altos e baixos. Sei que fui esticando demais a corda, os projetos foram se tornando mais sofisticados, tanto conceitual como materialmente, empregando mais gente no ateliê, e os custos para elaborar os projetos se tornaram maiores, as soluções de invenção material mais complexas. Mas, apesar disso tudo, não parei de pensar novos e arrojados projetos e grandes desafios, mesmo que não tenha conseguido realizar boa parte. Antes de estourar aquela crise de 2008 na economia americana e europeia, e que também reverberou por aqui, principalmente no circuito cultural, estava com três grandes projetos, um para o CCBB do Rio, outro para o Centro Cultural Belém, em Lisboa, e outro, menos certo, para o Santander em Porto Alegre. Os dois primeiros estavam bem encaminhados. Na quarta reunião do projeto de Lisboa, comigo presente, foi batido o martelo de aprovação da quantia necessária, mas logo após um mês eles anunciaram o corte da verba destinada para o projeto. Gastei bastante nos pré-projetos com calculistas, equipe trabalhando integralmente no ateliê para experimentarmos soluções novas, cinco viagens para estudar o lugar e tirar suas medidas, gastos com materiais diversos para experimento, enfim, tudo o que engendra uma pré-produção de grande porte. Esses projetos como ideias já bem definidas e documentadas estavam acordados, mas não saíram e não tive como segurar o tranco: desmoronei junto com dificuldades financeiras e outras pessoais que envolveram muitas perdas de pessoas próximas, inclusive meu auxiliar mais antigo, um senhor chamado Vilmar, com quem aprendi muito, e até hoje uma das pessoas que mais admirei. Ele era surdo, mudo e analfabeto, mas de uma inteligência prodigiosa, exímio marceneiro e também conhecedor de tudo sobre natureza, animais, plantas e clima. Ele trazia para dentro do ateliê uma espécie de convergência e síntese de um Brasil profundo, injusto, desigual, desassistido socialmente, alguém que sobreviveu graças a sua inteligência individual, uma riqueza bruta e sofisticada ao mesmo tempo, mas admirada por todos nós. A sua deficiência física e excelência técnica nos educavam dia a dia, e criticamente nos faziam compreender o que não poderia ser mais admissível para um país que se construía cotidianamente ali naquela pequena porção de um bairro periférico de Fortaleza. Queríamos aquela inteligência que tanto admirávamos alfabetizada e transformadora para as novas gerações. Isso é que o ateliê nos ensinava; era com isso que um doutor universitário se deparava e tinha que pensar; eram as trocas assimétricas e complementares, que formavam um amálgama de matéria rara de existência e beleza.
Agnaldo Farias
Quando você fala que tensionou e quebrou, acho que é uma passagem. Agora está saindo este livro. O mercado, eu acho, está tendo um crescimento avassalador e ao mesmo tempo bastante especulado. Agora a tendência é isso se acomodar e as pessoas ilustrarem, entenderem. E com isso vão chegar aos trabalhos de qualidade. Do mesmo modo como agora estão muito afeiçoados. Há muitos trabalhos que não têm nenhuma qualidade, mas estão caindo no bolso do mercado, mas um mercado mais raso. Sinto que o seu trabalho se impõe, porque tem uma força. E é singular sobre vários aspectos, é extraordinário. Chega um momento e ele vai entrar por outra porta. Eventualmente, você até vai reconstruir se tiver paciência como agora. E também não é mais a mesma pessoa. Então, talvez você não vá mais para a máquina e fique mesmo na parte da supervisão, da coordenação.
Eduardo Frota
Tomara que sua fala seja intuitiva e visionária. E que apareçam condições favoráveis para que eu volte a produzir como gostaria. Você tem toda razão quando diz que a experiência agora poderia se dar de outro modo, e acho que se dará, porque refleti muito nesses últimos cinco anos e agora tenho alguns entendimentos mais claros. Eu também gostaria imensamente de começar tudo em outra cidade, outra geografia humana e social. Seria outro desafio, digamos, a terceira etapa depois de Rio e Fortaleza.
Eduardo Passos
Financie então um processo de produção assim. Talvez se pensar em uma obra, toda ela, dedicada ao seu próprio processo.
Eduardo Frota
O ideal era que fosse sempre assim, e acho que até aqui a grande porção do que foi feito se deu dessa maneira, e foi importantíssimo não só para mim, mas para várias pessoas. E o legal disso tudo é ir compreendendo o desenho que o processo vai desbordando, estendendo a linha imaginária cheia de utopias, mas com um propósito firme de se fazer construir com seus antagonismos e paradoxos, e que projete para frente a linha da vida.
Luiza Mello
É uma posição política quase radical a sua, o seu trabalho.
Agnaldo Farias
O preço disso é uma questão de rever estratégia, se é que é o caso. Rigorosamente, você está com o ateliê fechado. Então é preciso tentar entender quais são os limites desse voluntarismo e dessa coisa que se faz, que durante um momento foi preconizador de certo movimento, de certa dinâmica a serviço de uma determinada poética, que está casada com isso que é ético e político, mas chegou o momento em que não foi mais possível continuar. Porque é de uma radicalidade grande, e é preciso entender o porquê. Por quê? Porque você foi somando papéis. O Luís ajudava o cara a montar o orçamento, mas a situação ficou muito sofisticada. Porque temos um mercado que está crescendo, também instituições que estão crescendo, e elas estão querendo contrapartidas. A galeria também quer contrapartidas, todo mundo está querendo contrapartida. Você mensurou o trabalho e foi de um jeito muito à base do “vamo que vamo”, se impondo. Mas chega uma hora em que a coisa começa e você tem que rever.
Eduardo Frota
Você mostrou um discernimento preciso, e expôs muito bem a engrenagem atual da questão. Mesmo assim, acho que não é simples. Também tenho cuidado de não me fazer entender que era alienado de toda essa complexidade, claro que não era. E, se não tinha um entendimento mais abrangente dessas estruturas de poder, de qualquer maneira fui me deparando com os problemas que de fato não pude resolver. Ainda não fui capaz de minimizar essas forças de outros interesses que atuam, às vezes perversamente, na borda do processo criativo contaminando por vezes o gesto mais importante a “ética da invenção”. De fato, foi muito complicado para mim, principalmente no que diz respeito às galerias, porque minha produção nunca se valeu desse imediatismo do consumo de mercado. E reconheço que não fui tão bom negociador para viabilizar mais e mais projetos. Mas, por outro lado, acho mesmo que não cabia essa equalização dentro daquela filosofia de trabalho, mesmo que intuísse que a corda estava esticando muito, e uma hora iria arrebentar. Não pude parar antes que ela arrebentasse, simplesmente porque estava no meio daquele processo, e o meu tempo maior era para inventar novos desafios, novas proposições, era isso que me dava a liga. Sempre acreditei que um bom projeto de arte, meu ou de outros colegas, um dia encontraria sua possibilidade de realização, por conta da sua qualidade intrínseca, mas hoje sei que não é bem assim. Quando colocamos toda minha produção em campo de jogo, para saber de qual lado ela vestiu a camisa, entre instituições públicas e espaços privados, a primeira opção ganha de goleada. Esse foi o time que montei. No mínimo, vinte instituições para duas galerias, a primeira no início dos anos 1990 e a segunda em 2008, e esta sendo uma grande intervenção. Então, olhando em retrospecto, acho que essa produção, para entrar em campo, foi treinando e se consolidando muito à margem do mercado de arte, e quanto a isso não posso julgar se foi melhor ou pior, se poderia ter feito mais ou menos, e “se fosse de outro jeito” etc. e tal. Não tem importância nenhuma mensurar o valor, apenas se deu desse modo, é um fato. Daqui para frente, se eu conseguir recodificar isso de novo, outros fatores deverão ser avaliados, mas deixando claro que de alguns critérios não abro mão.
Eduardo Passos
Como psicanalista, eu poderia levantar uma hipótese de que sua obra exigiu uma experiência de sacrifício. E poderia explicar como sendo alguma coisa da sua subjetividade, da personalidade, que acho que seria uma explicação mesmo interessante, buscando um sentido ético, estético e político para isso. Nessa experiência oficial, a gente chega nesse significante muito forte que é o quebrar. Acho que vai demorar um pouco porque você não sabe se pode ficar solto, porque ele vai ser discutido. E a ideia é que seja estético, seja a manutenção do processo criativo. Acho que a gente poderia falar um pouco da exposição do Alpendre, que indica de que maneira a obra pode ser mais forte do que um sentido pessoal e íntimo dessa experiência.
Clarissa Diniz
Ao mesmo tempo, percebi certo aspecto sexual. Todo o trabalho cria um modo de ampliar sua própria dimensão de continuidade. Tem uma tentativa de adiar esse momento de prazer, de adiar ao máximo o momento do fim, do gozo. Vejo isso. E, quando acontece o fim, perde um pouco o sentido da troca dos corpos. E é antieconômico, excessivo, esbanjamento.
Eduardo Frota
Vou tentar responder as duas perguntas ao mesmo tempo porque, a meu ver, ambas estão intrinsecamente relacionadas e são importantíssimas. Mas, para dar logo uma liga para as duas questões, digo que nunca fiz nada sem transbordamento, sem envolvimento visceral, mas também, na mesma medida, não posso deixar de dizer que repousa em mim uma enorme porção de não querer fazer nada, porque tenho dificuldades em cumprir tarefas evasivas do cotidiano, sou muito displicente quanto a isso. Na maioria das vezes, desempenhar tarefas normativas para funcionamento prático no mundo é muito mais desgastante do que me empenhar em grandes desafios com “uma boa dose de uma utopia para o possível”. Em resumo, detesto a burocratização dos afazeres de algumas coisas, que toma um tempo enorme e não acrescenta nada à experiência humana. Acho mesmo que, como pessoa e como artista, sofro de uma disfunção produtiva para a sociedade, e isso me enche de fragilidade. Então, paradoxalmente, me vejo movido por duas energias muito opostas e contraditórias. Não acho que elas sejam associativas, são mesmo disjuntivas e dá um trabalho enorme essa transmutação dos campos de força. Como falei, trata-se, a meu ver, de um paradoxo existencial com alta dose de voltagem, tanto para um lado como para o outro. Ao mesmo tempo em que sou paralisado por uma preguiça monumental para desempenhar tarefas, alienadas e alienantes, que na maioria das vezes me sinto completamente incapaz de desempenhar, em outro extremo tenho uma capacidade imaginativa/operacional enorme para me jogar nessas experiências de “utopias possíveis” e arrebatadoras, e corro urgentemente para realizá-las.
Apesar de ler algumas coisas sobre psicanálise, e gostar quando esses campos de hipóteses são atravessados, não tenho conhecimento qualitativo sobre arte e psicanálise que possa se erguer como um fundamento, mas, intuitivamente e no meio desse furacão, percebo que é um jogo dual de “vida e morte”. Fazer para escapar, e escapar para fazer novamente. Na maioria das vezes, quando me antecedia uma grande produção, geralmente começava com um sentimento profundo de perda de sentido, um estado de afundamento, a priori sem explicação. Daquele fundo de poço, daquela matéria movediça e informe, alguma energia vital me levava com intensidade a percorrer o caminho para alcançar a borda. E, nesse processo de grande duração, aos pouquinhos, ia emergindo e trançando tessituras vitais entre aquele desejo que nascia obscuro e impreciso, e um movimento da razão para organizar os meios de produção material com extrema objetividade, forjando outro tempo a partir dessa mistura, uma nova fisicalidade. É um jogo árduo, mas de grande beleza. Desde o início do meu trabalho, ainda no Rio de Janeiro, é muito claro que as primeiras ações, quando corto o suporte da madeira para alterar e contorcer a materialidade do plano, são a busca de outra qualidade física que se processa com aquelas operações. Intuitivamente, percebi que aquele corte na madeira era um explícito ato sexual. É daquela força erótica, através da transformação da matéria, que nasce o sujeito artista, que socialmente vai participar politicamente do mundo através de sua produção simbólica. Com isso, quero dizer que compreendo que não existe produção artística ou cultural, lato sensu, sem “erotismo”. Cortar, desbastar, furar, lixar, torcer, colar, juntar, serrar, afastar, seccionar, esgarçar, adensar, fazer entre, fazer sobre, fazer com, medir, proporcionar, desmanchar e desbordar são ações pulsionais que operam para além de uma ordem estritamente racional. É na imersão processual que o corpo reverbera toda uma epifania.
Eduardo Passos
Como exemplo, podemos pensar essa última intervenção que você fez no Alpendre. Estive lá e fizemos uma conversa que foi gravada pelo Alexandre Veras dentro da obra.
Eduardo Frota
Essa intervenção de 2009 no Alpendre foi a última que fiz, um ano depois de ter desativado o ateliê. Devo esclarecer que também já tinha me desligado do Alpendre quando fui chamado por Alexandre Veras, acho que foi a última intervenção antes do seu fechamento. Como artista, poderia experimentar agora, através de uma proposição, aquilo que idealizei para o Núcleo de Artes Visuais do Alpendre; um lugar voltado radicalmente para produções experimentais. Durante os mais ou menos seis anos de que participei do Alpendre, meu interesse foi sempre muito claro: mediar experiências relevantes na produção contemporânea em artes visuais, visando radicalmente a formação crítica de novos artistas e do público em geral, através de encontros com o artista convidado e propositor, e conversas em grupo que fazíamos quase que semanalmente na Biblioteca para elaborar questões sobre processo criativo, produção, formação e circuito. A partir desses encontros, escolhíamos um jovem artista daquele grupo para intervir no espaço de passagem que antecedia a sala da biblioteca. Foi a partir desse histórico de realizações do Alpendre que propus algo também radical: usei o cubo branco da galeria principal como objeto a ser desmantelado, e tudo que ele carrega na sua ideologia de suporte ideal e que domestica a organicidade viva da experiência na arte. Acrescento que a maioria das minhas intervenções eram realizadas em locais de passagem. Adoro esses lugares de assimetria. Mas, no caso do Alpendre, a matéria/objeto a ser atacada na sua nervura primeira de fisicalidade era o cubo branco. Com golpes de marretas, foram quebrados todos os rebocos das paredes e o piso de cimento do chão, e desmontei o forro do teto. Foi essa primeira operação que nominei A escultura no plano escavado/o lugar como subtração, e dei a ver através daqueles golpes no reboco liso de superfície idealizada o seu tempo físico e histórico de paredes construídas em diferentes épocas (durante noventa anos) na sua topologia alterada de argamassa e tijolo. Conceitualmente, devo dizer que essa atitude de atacar o plano da parede com marreta não é muito diferente do desmonte que fazia através do corte para tirar aqueles módulos circulares do plano de compensado industrial idealizado para o consumo do belo. No segundo momento, adotei uma atitude política com aquele entulho residual, a operação de número dois, O objeto da escultura/o consumo da arte medida por quilo, em que desloco duplamente o que foi desbastado (que, na tradição histórica da escultura, é matéria excluída e amorfa).
Com uma balança de precisão pendurada no teto a alguns centímetros sobre esse ajuntamento de resíduo é que vou pesar, mensurar valor e vender esse objeto da escultura por quilo, a preço popular de dez reais, podendo o comprador escolher ele mesmo essas porções. Esse quilo ou mais, depois de pesado, era posto dentro de um saco plástico com a marca Alpendre em baixo relevo, depois fechado, lacrado e assinado por mim, em tiragem de duzentos exemplares.
Já a operação de número três, O duplo assimétrico, está relacionada à questão da volumetria dentro do saco, ou se poderia ter uma pedra de um quilo, ou cinco pedras para um quilo, ou somente pó para um quilo, em que a matéria ocupada dentro do saco era desigual em sua volumetria mediante o preço do quilo estipulado por mim a 10 reais. Essas operações eram compositivas para armar o todo maior que engendrava a proposição Associações Disjuntivas (Experiência Alpendre), Fortaleza 2009, que tem muito do que penso sobre uma experiência artística. Ou seja, ela está muito mais perto de um apagão, como um princípio de não se saber a priori do que se trata, do que de um dispositivo de iluminação, em que, na maioria das vezes, o excesso de clareza aborta a experiência da arte, como propulsora de outros dados de conhecimentos. Então, aquela experiência no Alpendre dialogava com minhas “construções desconstrutivas” no ateliê, visceralmente sensoriais, em que existia o convite permanente de tocar o corpo da obra com a mão, com o corpo, sentir suas estrias, roçar na viscosidade material, gritar por dentro. Agora eram as paredes, o chão, o teto, que, depois de quebrados a golpes de marretas, eram devolvidos em matéria bruta, não alisadas, que pedia a experiência do tato, seduzida à primeira vista pela visualidade múltipla de materiais terrosos. Quando tive essa ideia e comecei a intervenção com a ajuda de operários, estava banhado da mais profunda tristeza; arrisco até a dizer que foi o momento existencial mais difícil de toda a minha vida. Mesmo assim, acho que articulei operações de extrema lucidez com essa proposição, e que me permitiram colocar novamente as mesmas perguntas de pé, agora com mais radicalidade: por que, como, para que e para quem se faz arte? Qual o sentido maior ou menor de se fazer isso? Paradoxalmente, à medida que ia golpeando aqueles planos de paredes, teto e chão, o pensamento crítico ia ganhando força sobre uma ideia de produção, desde as operações de quebra, sua transmutação de resíduo banal a objeto de arte, e deste já dessacralizado para objeto de consumo, a preço popular, carregando toda essa contradição em mensurar o seu valor simbólico ou mesmo material. O resultado disso foram discussões importantíssimas com grupos de estudantes e outros interessados sobre os paradoxos inescapáveis que a arte nos impõe para pensar, que no meu caso sempre se deu através de um enfrentamento físico com a matéria aquecida, pela radicalidade do gesto em subvertê-la de uma dormência já posta. Para mim, de um modo muito simples ”Pensar arte é fazer arte”, Porque quando estou no meio desse processo minha percepção da vida e do mundo é aguçada e muito atenta. Digo isso porque não sou um teórico, nem puramente um intelectual, pois é a experiência física encravada no processo material que me motiva a desalinhar de forma antagônica algumas teorias, e não o contrário.
Yuri Firmeza
Eu também queria que você falasse um pouco dessa questão do Alpendre, não só dele, mas também de quando você influenciou no Dragão do Mar, na formação do conselho, que culminou na ida do Ricardo Rezende. O que isso mudou, de alguma forma? Isso já vinha do Alpendre? Tem pessoas que vieram de lá? Você acha que foi o ápice da questão dessa sua atuação mais política?
Eduardo Frota
O Alpendre não era um grupo fechado de artistas plásticos, muito pelo contrário, de artista plástico só tinha eu. Os outros sete membros do grupo fundador do Alpendre eram artistas, poetas, pesquisadores da dança, da literatura, da filosofia, do vídeo, da fotografia, que juntos, a partir dessas multiplicidades, potencializavam outros interesses, inclusive para os projetos sociais e de formação. Juntei-me a esse grupo naturalmente por afinidades com suas ideias iniciando novas amizades, e só depois é que nos reunimos para inventar o processo Alpendre. Minhas primeiras interlocuções com esse grupo se deu com os poetas Manuel Ricardo de Lima, Carlos Augusto Lima e Alexandre Barbalho, que já apontavam uma produção de qualidade na poesia contemporânea brasileira. Logo depois, conheci Alexandre Veras (cinema e vídeo), esse o grande agregador de todos nós e idealizador do Alpendre, Andréa Bardawil (dança), Solon Ribeiro (fotografia), Luís Carlos Sabadia (produtor) e Beatriz Furtado (cinema). Era perceptível a todos que a força conjunta de nossas ações era de origem transformadora e convergira adensadamente para alterar o campo da arte e da cultura na cidade, então era natural o tangenciamento, muitas vezes conflituoso, com as políticas públicas para a cultura de um modo geral.
Eduardo Passos
Essa ideia de conflito vai ser muito importante nesse seu percurso?
Eduardo Frota
Não é que vá ser importante, sempre foi assim, desde que saí de Fortaleza para o Rio. Acho mesmo que é um permanente desalinho com o establishment da normalidade. É como nadar às avessas à procura de um respiro. Sempre me ponho a pensar sobre isso, tenho a sensação de uma grande escavação sem achado geológico, e sempre me pergunto, de fato, onde está a verdadeira criação, se isso é mesmo possível, em qual tempo/espaço se adensa e altera tudo. Também fico me perguntando como inventar uma “manobra” em margem tão intangível, ou a mais longa curva em espaço tão reduzido. Penso que o ato de criação não tem materialidade possível para se agarrar, no fundo nunca sabemos do que se trata.
Eduardo Passos
Falando sobre o Torreão, nele também não tem um conflito? Quando você expõe na Bienal, também tem certo interesse estético pela resistência, pela desestabilização, na colocação de um obstáculo. Queria saber se esse conflito também marca muito sua relação com o mercado de arte.
Eduardo Frota
Olha, sinceramente, não sou a pessoa mais indicada para falar sobre mercado de arte, porque minha experiência dentro desse modelo binário de produção e venda mediado por galerias é uma experiência escassa de dados para que eu possa me aprofundar sobre o assunto. Minha produção quase não foi absorvida por essa via de negociação. É mesmo paradoxal, porque fiz um caminho através de instituições públicas no Brasil, em sua grande maioria. Penso que o obstáculo a que você se refere talvez seja uma negação de minha parte em transmutar, para um campo restrito, uma experiência física extensiva para além da forma, confiná-la a um simples objeto diminuto, descarnado da organicidade coletiva para a qual convergiam tantos conhecimentos no corpo físico da experiência da obra. Aqui me refiro diretamente à série das Intervenções extensivas. Reduzir a potência daquele desejo para objeto de arte com finalidade de consumo via mercado de artes era desarticular todo envolvimento ético e de filosofia de trabalho que fui tecendo durante anos. Quero deixar claro que não sou contra outras maneiras de pensar isso. Cada artista é livre para traçar suas estratégias de inserção, e também não acho que uma é melhor do que outra moralmente falando. Mesmo porque não me interessa julgar procedimentos. De fato, só posso me manifestar sobre esse assunto através da parte que conheço, da minha experiência, e sei que ela não é exemplo para pensar amplamente essa complexidade. Ela se deu à margem desse encadeamento de produção para o mercado. Ela se realizou a contrapelo desse tempo de resultados imediatos, em oposição a uma fugacidade em que tudo vira “commodities”. E foi nessa latência em processo que me joguei até o fim. Na verdade, nunca visei esse sentido quantitativo de produção. E gosto mesmo é de desenvolver um projeto por ano, no máximo dois. Os pequenos estudos que me serviam para pensar tecnicamente as soluções que pediam maior escala eram simplesmente estudos, e não visavam uma proliferação de coisinhas iguais para consumo de mercado. Sempre me neguei a isso, apesar de muita cooptação sugerida, por uma razão muito simples: não ia me afastar dos interesses da pesquisa a que estava organicamente ligado, e me afastar de tudo para fabricar incessantemente coisinhas menores que atendessem a outros interesses, evasivos à principal questão que me movia. Era no mínimo deselegante comigo mesmo e com os que compartilhavam aquelas ideias de produção. Então, a questão que se apresentava era de outra matriz: como desdobrar para outras invenções o que já se tinha inventado? Era possível? Essa era a filosofia daquele processo, e sua natureza não fazia concessão que pudesse trincar a radicalidade totalizadora daquele procedimento.
Agnaldo Farias
Um trabalho que me chamou muita atenção foi o Torreão. Porque acho que todos os outros trabalhos anteriores se resolviam por si só e eram eventualmente transportados para outras situações, mas era o diálogo com a parede e com o chão que estavam nesse jogo. Agora, o Torreão é projetado especificamente para aquele espaço. E aí também tem um dado que é agarrar o sujeito que está passando na rua para que fique intrigado com aquilo. Então, eventualmente, até uma pessoa que não era um público de arte se via fisgada. E é de fato. Você acha que estou certo nisso? Tem trabalhos anteriores? Mas é um nível de precisão o projeto que você faz para o CCBB e o projeto que você faz para o Museu Vale. O Torreão foi importante? Teve alguma coisa antes?
Eduardo Frota
Você tem toda razão. A proposição no Torreão foi um fato artístico importantíssimo no que se refere à tomada do espaço arquitetônico como um diálogo fundamental para expansão física da obra. Entre as séries dos “nós”, que eram os cilindros de madeiras em esquadros “assimétricos” e os primeiros trabalhos tubulares, que se davam por adensamentos de módulos circulares, esses últimos pediam não só maior escala formal, mas, principalmente, espaço físico para se expandir e se perder para além de uma visada única e total da obra. Devo dizer que, entre um sistema operacional e outro, passei um ano em que só fiz quatro pequenos trabalhos à procura de uma experiência que me desse um elo de possibilidade para poder criar um sistema que fosse como uma linha maleável, orgânica, que se fizesse “respirar entre espaços", ao mesmo tempo em que a materialidade empregada fosse um deslocamento operacional de desconstrução da forma monolítica e o processo agregasse outros procedimentos para além da forma objetual. Chego nessa invenção porque trabalhava naquelas séries dos Nós com encaixes de macho e fêmea e um dia secionei a borda do cilindro vazado, ou seja, a parte fêmea, e entendi que a acumulação desenfreada daquele módulo poderia me proporcionar uma maleabilidade que a série de Nós não posuía, e, mais ainda, ganhar o espaço arquitetônico desenfreadamente. Essa linha agora construída a partir de justaposições de módulos circulares vazados ao meio, ela mesma se constituiria como uma invenção arquitetônica a dialogar com outros espaços arquitetônicos. Então se dava uma relação de invenções arquitetônicas diferentes, uma a receber, outra a invadir. E as duas em processo de desmanche de espaços sacralizados para seus devidos fins, a obra de arte e a arquitetura. O convite do Torreão que me foi feito por Elida Tessler e Jailton Moreira foi a oportunidade crucial para que essa experiência se radicalizasse ao extremo. Então, sugeri a eles que, em vez de ocupar a salinha do quarto andar, gostaria de intervir nos quatro lances de escada do prédio, e eles toparam a parada. É aquela história: tem que ter o louco que faz e os doidos que compram a ideia. E eles compraram a ideia com muita generosidade, numa cumplicidade que se deu entre artistas, e com certeza a realização dessa proposição só foi possível em um espaço independente sem a mediação burocrática que inibisse aquela experiência, e que provavelmente uma instituição do circuito oficial das artes não aceitaria amplamente. Então, credito também a eles o sucesso daquela investida pela confiança com que apostaram na ideia que lhes apresentei. Foi a partir da oportunidade de realizar aquela intervenção que se deu o desdobramento do processo físico da obra, possibilitando dialogar explicitamente com o espaço arquitetônico. Na intervenção do Torreão, houve algumas particularidades de que gosto muito: primeiro, ele ter sido construído sobre uma topologia acidentada, as escadas internas do prédio, deslocando com ênfase o eixo de convergência da escultura tradicional que se constrói na vertical a partir do plano horizontal de repouso; segundo, o dado de extrema sensualidade que o tubo/linha tangencia na arquitetura interior do prédio, como um corpo a roçar o outro, com fluidez e leveza alterando a percepção de peso da matéria adensada. Acho que devo acrescentar que fui muito mais tomado por um desejo intuitivo do que por um procedimento técnico, pois não os tinha ainda desenvolvido plenamente. Foi uma experiência artística que transbordou profundamente para o existencial, beirando o limite do possível. Com esse projeto realizado no Torreão, inauguro uma série de intervenções em instituições públicas e espaços independentes pelo Brasil, que denominarei Intervenções extensivas + nome do lugar + ano. Foi também a partir dessa experiência que convergiram encontros de outras produções no campo da cultura e da arte, aproximando eletivamente duas cidades tão distantes: Porto Alegre (Torreão) e Fortaleza (Alpendre). Essa aproximação abriu campos de interdisciplinaridade e trabalhos conjuntos entre as artes visuais, a literatura, a dança, o vídeo, a filosofia e a psicologia. Fez-se de fato um circuito transversal ao eixo hegemônico São Paulo-Rio de Janeiro; mesmo com os seus 5 mil quilômetros de distância, essas cidades dialogaram por um bom tempo através de algumas produções muito singulares.
Sobre o projeto do CCBB São Paulo, foi o terceiro da série Intervenção extensiva que fiz, usando aquelas linhas tubulares. Antes dele, fiz uma intervenção também muito grande no Recife, na sala Vicente do Rego Monteiro da Fundação Joaquim Nabuco, e que foi uma loucura porque tive que fazer uma linha tubular de 90 cm de diâmetro, que era a medida da passagem entre o espaço de uma galeria à outra.
Mas nessa que fiz para o CCBB de São Paulo entendi de imediato o vazio arquitetônico central do prédio e, diferente do que já tinha visto muitas vezes, decisivamente, não quis pendurar nenhuma peça que interferisse de modo muito exibicionista e ignorasse o dado da primazia arquitetônica daquele prédio. Foi aí que optei assertivamente, penso eu, em intervir com essas linhas tubulares invadindo os espaços constritos das salas do segundo andar, e furando paredes para que essas linhas transbordassem para os lugares de passagem e até mesmo se enroscando nas grades de proteção. Também foi a primeira vez que fiz uns furos em sentido perpendicular ao vazio original constitutivo daquela linha para dar outra visada ao espaço interior daquele tubo extensivo e maleável, ativando a sua totalidade com esses poros respiradores.
Sobre o projeto da Bienal e do Museu Vale, os dois também foram pensados como intervenção para o lugar, a partir dos dados daquele lugar. Mesmo que os procedimentos operacionais de construção alcancem a escala de objetos monumentais autônomos, o da Bienal foi pensado para aquele vão de passagem do terceiro andar, e a quantidade dos catorze cones obedeceu a um estudo e observações que fiz da espacialidade do lugar com relação ao público circulante que iria experimentar aqueles objetos sensoriais naquele vão de passagem. Lembro muito que as pessoas gritavam para que desse eco, entravam nos cones, sentavam, deitavam-se etc. Teve uma visitação de uma escola de cegos que me deixou comovido: eles perceberam que suas vozes na boca do cone davam eco, e riam muito e gritavam, entravam nos cones e passavam muito a mão para saber da sua constituição física, sua aspereza pelo tato.
Luiza Mello
Você montou o ateliê para produzir o trabalho do Torreão? Ou o ateliê é anterior?
Eduardo Frota
O anterior em oito anos. A experiência do Torreão foi em 2000, e esse modus operandi já estava bem inserido como filosofia naquele contexto de trabalho.
Agnaldo Farias
Para finalizar, você podia falar da sua relação com a arquitetura.
Eduardo Frota
Não sei explicar muito sobre o meu interesse por arquitetura, mas posso dar algumas pistas. Minha mãe gostava muito de arquitetura, desenhava plantas e construiu algumas casas. Tinha uma noção espacial incrível. Meu tio Chico Albuquerque também foi um arquiteto autodidata em São Paulo. E uma curiosidade sobre isso é que ele começou a construir suas casas a partir do momento que começou a fotografar casas modernistas para a Editora Abril Cultural, inclusive aquela emblemática foto da casa de vidro de Lina Bo Bardi. Suas casas também apareciam em revistas mensais sobre casa e arquitetura, e eu achava aquilo o máximo, adorava aquelas revistas. Lá pelos 8 ou 10 anos, fazia desenhos em cartolinas grandes, e na grande maioria eram fachadas de casas modernistas em Fortaleza nos anos 1960, onde meu interesse maior eram por aqueles materiais industriais que compunham desenhos geométricos em primeiro plano nas fachadas ou as divisórias perpassadas por luz com aqueles materiais de certa sofisticação da indústria, como, por exemplo, tijolos refratários, cobogós, mosaicos etc. Materiais esses que eram fabricados para suprir uma segunda ou terceira etapa do modernismo na arquitetura brasileira, e que eram de excelente qualidade, tanto no desenho como na materialidade das cores. Essas casas não existem mais em quase sua totalidade.
Acho também que há o dado da cidade naquele lugar, que, com sua vasta planaridade, sob a luz intensa daquele sol, alongava o tempo dos espaços como se deslocasse um dos outros. Era como se a cidade fosse uma experiência espacial sob um plano de luz. Tenho essa memória muito forte do lugar. Em experiência oposta a isso, quando aos 7 anos visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez, tive um impacto visual deslumbrante com a topologia da cidade e os seus túneis atravessando aqueles imensos monólitos de pedras. Antes de chegar ao Rio na minha curta temporada em Belo Horizonte, tive contato com o Conjunto Arquitetônico da Pampulha e achei aquilo muito diferente, mas sem muita consciência da importância histórica. Somente quando chego ao Rio para morar é que defronto com mais veemência e me abre de vez a curiosidade maior sobre o movimento modernista na arquitetura brasileira a partir do Palácio Capanema, o Parque Guinle de Lúcio Costa, o MAM do Rio e o Conjunto Habitacional Pedregulho, ambos do arquiteto Affonso Eduardo Reidy, e depois Brasília, principalmente o Palácio da Alvorada, o Palácio do Itamaraty e a Catedral. Em São Paulo, vim conhecer os projetos de Artigas e Mendes da Rocha depois. Também sempre me interessei pelos pioneiros da arquitetura moderna, como Frank Lloyd Wright, Mies van der Rohe, Le Corbusier e Alvar Aalto, e só depois de alguns anos é que pude visitar alguns desses projetos, principalmente em Chicago.
Em algum momento, pensei em cursar arquitetura, mas equivocadamente achava que, para ser arquiteto, também teria que ser um grande matemático. Também no Rio convivi com amigos e amigas que cursavam arquitetura na Santa Úrsula, no Bennett e na UFRJ. Todos reclamavam muito da dificuldade de exercer a arquitetura como invenção, e achei que a arte era mais arbitrária no que se referia à decisão de criar algo, pois dependo mais diretamente de mim como pensador e produtor. Mas nunca perdi o interesse na arquitetura como uma invenção de espaço para o homem, e quando viajo meu interesse para conhecer novos projetos é sempre presente. Logo no início das minhas pesquisas, duas vertentes de interesses se fizeram notar. Certa vocação para a cor e a outra para a forma no espaço. Essas duas possibilidades estão muito claras naquelas verticais de quase 3 metros que, depois de pintadas, distribuíam num campo dado, ativando através dessas linhas verticais, tanto na parede como no chão, um espaço de alteração sensorial, que vinha tanto da cor, como do corte, do suporte da madeira, propiciando pequenas inclinações.
Abandonei a primeira opção pela cor no final dos anos 1980, e a segunda foi se constituindo processo da minha pesquisa através da transmutação da matéria, agora sem a subjetividade da cor. Então, quando surgiu a possibilidade de o trabalho assumir uma fisicalidade que invadia ou dialogava com os espaços da arquitetura, penso que minha pesquisa se desdobrou de maneira radical. Tudo muda a partir daí, como já falei antes, a equação para iniciar cada processo é um engendramento conceitual, técnico, junto às especificidades de cada lugar. Hoje, quando adentro muitos espaços públicos, automaticamente me surgem logo ideias com imagens de ocupações que poderia fazer. Uso isso como um exercício comum de ativar minha sensibilidade no fluxo cotidiano.
O que mais gosto dos espaços arquitetônicos é que, para cada lugar, as soluções visuais e técnicas são diferenciadas, e as alterações para cada lugar que eu venha a fazer através de uma proposição artística poderão ser um diálogo ou uma obstrução, e em ambas o público circundante é que ativa as novas rotas de percepção. Sempre estou ligado em arquitetura e, por coincidência, os livros de que mais gostei ultimamente foram A cidade no Brasil, de Antonio Risério, e O homem e o espaço, de Otto Friedrich Bollnow, os dois excelentes. E dos grandes da arquitetura internacional gosto muito de Álvaro Siza, Jean Nouvel, Santiago Calatrava e Kengo Kuma.
Luiza Mello
Então, de certa forma, o trabalho responde a uma questão do espaço e da arquitetura? Você pensa um trabalho para um determinado lugar e depois o seu deslocamento?
Eduardo Frota
O que se dá na maioria das vezes é o contrário disso. Geralmente, penso a intervenção para aquele lugar específico, onde quase sempre a fisicalidade da obra se constrói a partir de alguns acontecimentos arquitetônicos do lugar, deixando essa correspondência como um dado da construção da obra, impedindo a sua existência em outro lugar que não aquele. Mas ao mesmo tempo adoro pensar a autonomia da operação escultórica como objetos em grupos, desalinhados, meio que jogados a esmo, com grande alteração de escala. Ou seja, esses objetos construídos como que em latência arquitetônica, mas sem nenhuma funcionalidade.
CRONOLOGIA
Organizada por Eduardo Frota
1959
Nasce em Fortaleza, Ceará.
1974/75
Começa a desenvolver os primeiros trabalhos, desenhos e pinturas, no ateliê do avô materno Ademar Albuquerque, cinegrafista, fotógrafo e pintor, quando este volta a residir em Fortaleza, depois de dez anos no Rio de Janeiro.
1975
A partir do contato com o fotógrafo Chico Albuquerque, ainda em Fortaleza, faz as primeiras avaliações críticas sobre seus trabalhos em pintura. Chico o estimula a seguir para São Paulo.
1977
Viaja para Minas Gerais, onde tem breve contato com a Escola Guignard, em Belo Horizonte. Conhece as cidades históricas do ciclo do ouro como assistente do fotógrafo Paulo Albuquerque, que registra para a editora Bruni uma série de ensaios fotográficos.
1978
Passa todo o primeiro semestre na cidade de Ouro Preto, quando mantém contato mais demorado com o “barroco mineiro”.
Frequenta a Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP) e entra em contato com a obra de Guignard, principalmente desenhos do acervo dessa instituição.
Em julho desse ano, passa a residir na cidade do Rio de Janeiro.
Visita a Escolinha de Arte do Brasil (EAB) e ganha bolsa de estudos para o Curso Intensivo de Arte-Educação (CIAE), sob coordenação da arte-educadora Noêmia Varela, tendo como professores visitantes: Augusto Rodrigues, dra. Nise da Silveira, o crítico e poeta Ferreira Gullar e as professoras Ana Mae Barbosa, Cecília Conde, Maria Luiza Saddi, Maria Lúcia Alencastro, entre outros. Através do programa do curso conhece a produção dos artistas do Museu de Imagens do Inconsciente, no bairro do Engenho de Dentro. Nesta época, entra para o Ateliê de Xilogravura da EAB sob orientação de Pilar Bennet. É requisitado como monitor para a turma de crianças de 4 a 7 anos na EAB.
1979
Passa a pertencer ao quadro de professores da EAB até o ano de 1983.
Frequenta a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), ingressando nas oficinas Permanente, do Corpo e de Litografia, sob orientação do prof. Antônio Grosso. É convidado para monitorar a Biblioteca no período da noite, sob orientação da bibliotecária Isabel Cabral.
1980
Participa da Primeira Semana de Arte e Ensino, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), organizada pela professora Ana Mae Barbosa, tendo como conferencistas o educador Paulo Freire, o antropólogo Darcy Ribeiro e os professores Augusto Rodrigues e Noêmia Varela, entre outros. Trata-se de ocasião importante de convergências políticas manifestadas pela sociedade civil em favor da anistia ampla e irrestrita, principalmente para professores afastados de suas funções, após o golpe militar de 1964.
1981
Presta vestibular para a Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É admitido, mas frequenta somente os dois primeiros meses e abandona o curso.
Faz estágio como arte-educador na Casa de Cultura São Saruê da Fundação Educacional Humberto Pelegrino, em convênio com as escolas públicas do bairro de Santa Teresa, sob orientação do artista plástico Victor Arruda.
1982
Participa do 6º Salão Carioca de Arte, primeira exposição coletiva no Rio de Janeiro. Ingressa no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística nas Faculdades Integradas Bennet.
1983
Viaja para Minas Gerais, onde tem breve contato com a Escola Guignard, em Belo Horizonte. Conhece as cidades históricas do ciclo do ouro como assistente do fotógrafo Paulo Albuquerque, que registra para a editora Bruni uma série de ensaios fotográficos.
1984
É contratado como professor de arte para turmas do ensino fundamental dos colégios Cruzeiro e Senador Correia.
1984/85
É selecionado monitor para o
Departamento de Cursos do MAM RJ, podendo, em troca de serviços prestados, frequentar seus cursos e oficinas. Desta maneira, entra em contato com diversos artistas e assuntos referentes à produção da arte contemporânea: “O olho e o espírito”, sobre texto de Merleau-Ponty, com o prof. Ronaldo Brito; “Volume/Espaço”, com o prof. Gastão Manuel Henrique; “Diálogos”, com o prof. Eduardo Sued; “Pintura”, com o prof. Aluisio Carvão; “Desenho de modelo vivo”, com o prof. Gianguido Bonfanti; “Desenho, pintura, corpo”, com o prof. Rubens Gerchman; e “Atelier de gravura em metal”, com a profa. Lena Bergstein.
Participa de grupo de estudos sobre “Arte e Psicanálise”, sob
orientação de Eduardo Passos e Anna Acioly, com Ângelo Marzano e Luiza Interlenghi.
1986
Gradua-se em Licenciatura Plena em Educação Artística pelas Faculdades Integradas Bennet. Participa do X Salão Carioca de Arte. Faz parte do grupo de monitores convidados para a “Sala especial” do IX Salão Nacional de Artes Plásticas “Lygia Clark e Hélio Oiticica”, Funarte/Paço Imperial.
1988
É selecionado para o programa de exposições do projeto “Macunaíma” da Funarte, sob nova concepção e coordenação de Luiza Interlenghi, tendo como diretora do Instituto de Artes Plásticas (INAP) da Funarte a artista Iole de Freitas. Nessa ocasião, conhece os artistas Lucia Koch, Elaine Tedesco, Lia Mena Barreto, Carlos Bevilacqua, Franklin Cassaro, Simone Michelin, Carla Guagliardi, entre outros. Além da exposição coletiva de apresentação do novo projeto, os artistas selecionados realizam mostras individuais. Em 5 de outubro, o artista apresenta uma pequena série de oito pinturas-objetos, em que o plano de cor se confunde com o plano de corte do suporte/madeira. É a partir dessa exposição que o artista se insere, profissionalmente, no circuito das artes visuais do país.
Participa da exposição coletiva Novos Novos, com curadoria de Ascânio MMM e Ronaldo do Rêgo Macêdo, na galeria do Centro Empresarial Rio, em Botafogo, onde entra em contato com os artistas David Cury, Sálvio Daré, Márcia X, Maria Moreira, Brígida Baltar e Ricardo Basbaum.
1989
É selecionado para o 11° Salão Nacional de Artes Plásticas da Funarte.
Coordena a exposição Sarrafos, de Mira Schendel, na Galeria Sérgio Milliet da Funarte. É convidado pelo crítico e curador Paulo Herkenhoff a participar da exposição Rio Hoje, no MAM RJ.
1991
A convite da crítica e curadora Sônia Salzstein, então diretora do Centro Cultural São Paulo (CCSP), participa do programa de exposições daquela instituição, que nessa edição acontece no Pavilhão da Fundação Bienal de São Paulo.
Realiza sua primeira exposição individual em Fortaleza, Esculturas, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), e leva a mesma exposição para o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/RJ). Segundo o crítico Eduardo Passos, por ocasião da exposição no IAB, “os trabalhos de Eduardo sempre estiveram nesse lugar instável do objeto – quase-escultura, quase-pintura, eles parecem garantir a sua existência só porque neles insiste uma vontade de matéria: ser cor e ser plano. Mas o que se constrói com esses elementos exige para si um mínimo de definição – um mínimo desbastando os obstáculos ao puro exercício do olhar, incitando à deriva do olho que segue livre como órgão do sentido. Por isso a obra é lugar de um duplo desequilíbrio. De princípio, desequilíbrio perceptivo na forma da ilusão geométrica. Mas, poderoso, o objeto na sua concretude e pelos seus atributos sensíveis faz-se experiência do espírito, se sublima, quando, desavisado, ‘percebo’ o desequilíbrio estético na forma do indecidível do lugar da obra. Nem pintura, nem escultura, nem desenho, a obra é passagem” (PASSOS, Eduardo. A obra como passagem. Rio de Janeiro: IAB, 1991).
Participa de workshop com o escultor Amilcar de Castro, numa parceria do CCSP com a Pinacoteca do Estado de São Paulo.
1992
Volta a residir em Fortaleza, onde constrói um galpão/ateliê. Decorrente do processo de alteração da escala física da obra, o artista agrega ao processo de construção material um projeto sociocultural com seus auxiliares diretos, oriundos da circunvizinhança da oficina/ateliê no bairro do Montese, em Fortaleza. Sobre essa experiência, diz o artista: “Um corpo coletivo habita a oficina, maquina dispositivos de alteridade, que dispara sem ponto fixo, desprende energias disjuntivas em várias direções e ocupa cada microlugar desse ateliê máquina. Esse corpo opera entre ‘voltagens’ variadas de sensibilidades, inteligências e motivações corpóreas. Se autoeduca, sistematicamente, sendo o afeto, o agente transgressor que lê as individualidades dos membros desse grupo para a equação do trabalho/arte. É um corpo vertebrado em autonomias e suas singularidades, em troca múltipla de significados. Esse processo nunca poderia ter sido de um corpo anônimo, sem consciência cognitiva do fazer político. Ele se nomeia o tempo todo, se altera porque nomeia, nomeia porque se altera como um fluxo de sensibilidade operante, não se anulando frente à condição acumulativa do capital/trabalho transformado em objeto de arte/commodities.”
1993
Ganha o prêmio de Escultura do Salão de Abril em Fortaleza. Ministra cursos de desenho e pintura em seu ateliê. Realiza exposição individual na Galeria do Centro Cultural Cândido Mendes, em Ipanema, no Rio de Janeiro.
1994
Ganha o 1° Prêmio do Salão de Abril em Fortaleza.
1995
Dedica-se a desenvolver uma série de vinte trabalhos em cilindros de madeira maciça, denominados Nós, em que suprime a cor sobre a superfície da estrutura material.
1996
Junto aos escultores Ascânio MMM e Walter Guerra, participa da exposição 3 Dimensões, no âmbito do Projeto/Eventos Especiais, nas Galerias Sérgio Milliet e Lygia Clark da Funarte, no Rio de Janeiro, onde apresenta seis trabalhos da série Nós, e depois em exposição individual na Galeria de Arte do IBEU (Instituto Brasil – Estados Unidos) em Fortaleza, Ceará.
Com subsídio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), é selecionado para o primeiro programa de bolsas em parceria com a UFRJ.
Desenvolve um projeto de linguagem visual, acompanhado por visitas de artistas e críticos, como Lygia Pape, Waltercio Caldas, Ligia Canongia e Fernando Cocchiarale.
1997
Ganha o Grande Prêmio do Arte Pará da Fundação Romulo Maiorana. Fazem parte do júri de seleção e premiação os críticos e curadores Fernando Cocchiarale e Tadeu Chiarelli. Nessa ocasião, tem o primeiro texto sobre sua obra publicado em catálogo, de autoria do crítico de arte Cláudio de La Roque Leal. O autor vai afirmar que, “nas obras deste Arte Pará 97, Frota trabalha madeira em duas colorações naturais, unindo-as na agonia do ‘retorcido’, como se este fosse um recorte impossível de ser delineado fora do objeto. Agônicas no conceito, traduzem o espiritual do artista, que parece oscilar entre o bem-estar e o mal-estar, como se parâmetros fossem motivos para preocupações. As obras premiadas não partem da premissa das preocupações, e sim das inquietações, que é o que promovem. Frota parte do desenho (do retângulo?), a obra parece inserir-se em um retângulo sem qualquer prejuízo para a imagem; há um desenho anterior, que é gênese do objeto. Nem isso, nem isso, o objeto trabalhado em duas colorações, inquieto na forma, induz a questionamentos técnicos, antes mesmo de questionamentos conceituais” (LEAL, Claudio de La Rocque. The concret concert. Belém: Fundação Romulo Maiorana, 1997).
Nesse ano ainda, participa do IV Salão MAM-Bahia. Viaja a Europa pela primeira vez. Visita museus na Itália, França, Alemanha, Holanda, Bélgica e Espanha. Da Europa, segue até o Oriente Médio, Síria e Líbano, onde participa da exposição Art Brésil, na sede da Embaixada brasileira em Beirute.
Com curadoria do artista Ângelo Marzano, expõe ao lado do artista mineiro José Bento na Galeria da Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Ambos têm como matéria-prima a madeira. Segundo o curador, “essas esculturas são como linhas circunscritas numa trajetória contínua sobre si mesma. Colocadas sobre o plano da parede – espaço para o qual foram pensadas –, estabelecem uma relação rítmica entre elas, pontuada por um moto contínuo que pulsa no interior de cada uma delas. Vistas em conjunto, suas formas se avizinham como variações enarmônicas.
O artista parece privilegiar o traçado interno de suas esculturas. Ao observá-las, somos induzidos a percorrer a superfície da madeira e a refazer o seu percurso linear. Percebemos, ao refazermos esse trajeto, que a interseção de madeiras desenha triângulos que emolduram o espaço vazio. Embora sua obra seja fundamentada na variação da linha, Eduardo Frota não deixa de afirmar a importância do espaço. Une a matéria sólida (a madeira) ao ar e faz escultura” (MARZANO, Angelo. Eduardo Frota. Niterói: Galeria de Arte da UFF, 1997).
1998
Em viagem a Porto Alegre, visita o Torreão e conhece Elida Tessler e Jailton Moreira, artistas com os quais manterá fecunda amizade e frequentes diálogos sobre a produção da arte contemporânea. Junto a artistas do Ceará e de Pernambuco, participa da exposição de inauguração do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza.
1999
A convite de Alexandre Veras, idealizador do projeto, e com outros artistas e pesquisadores, como Andrea Bardawil, Carlos Augusto Lima, Manoel Ricardo de Lima, Beatriz Furtado, Solon Ribeiro, Luis Carlos Sabadia e Alexandre Barbalho, funda o Alpendre (Casa de Arte, Pesquisa e Produção), espaço dedicado à produção contemporânea nas artes visuais, vídeo, fotografia, literatura, filosofia, dança, projetos de inclusão social, entre outros.
“O Alpendre foi uma intervenção cultural e artística de fecundidade seminal em Fortaleza, por onde passaram importantes artistas, pesquisadores, professores, palestrantes, bolsistas, intelectuais de diversas áreas e público ativo de visitantes, que contribuíram de forma inventiva para o processo de formação artística na cidade.” Entre os nomes que por lá passaram, destacam-se: Wally Salomão, Elida Tessler, Jailton Moreira, David Cury, Lia Mena Barreto, Walter Guerra, Rosângela Rennó, Ricardo Basbaum, Paulo Monteiro, Ângelo Marzano, Regina Silveira, Antonio Dias, Ana Mae Barbosa, Paulo Herkenhoff, João Fiadeiro, Micheline Torres e Flavia Meireles, Paulo Caldas, Eleonora Fabião e André Lepecki, Eduardo Passos, Edson Luís de Sousa, Moacir dos Anjos, Carlito Azevedo, Miguel Sanches Neto, Ricardo Aleixo, Virna Teixeira, Arlindo Machado, Daniel Lins, Claudia Leão e Silas de Paula.
Como idealizador e coordenador do Núcleo de Artes Visuais, junto a Alexandre Veras, entre 1999 a 2002, orienta grupo de debate sobre produção e circuito na arte contemporânea para jovens artistas, e propõe a ocupação da parede da biblioteca com experiências a partir desse lugar, ao mesmo tempo em que se davam as intervenções dos artistas convidados a atuar nas galerias do Alpendre. Contribuíram mais sistematicamente para esse grupo os artistas Enrico Rocha, Ticiano Monteiro, Waléria Américo, Vitor Cesar, Jared Domício, Mariana Smith entre outros.
Participa da exposição Nordestes, no SESC Pompeia, sob curadoria do crítico Moacir dos Anjos, e tem obra adquirida para o acervo dessa instituição.
2000
A convite de Elida Tessler e Jailton Moreira, faz intervenção no Torreão em Porto Alegre e elege as escadarias internas do prédio como campo exploratório da proposição artística. A linha tubo construída por milhares de argolas de 38 cm de diâmetro, em compensado de madeira, parte de uma medida arquitetônica da janela do prédio. Essa linha tubular se estendia do primeiro degrau a partir da calçada até a janela mais distante em diagonal com a escada do quarto andar. Sobre essa intervenção, escreveu o poeta Manoel Ricardo de Lima: “Eduardo Frota toma como ideia para seu trabalho uma espécie de tripé que dialoga com: o espaço físico (em uma ideia de função desse espaço); o sujeito (em deslocamento e passagem) e a arte (como pensar isto ainda?). Monta-se sobre este tripé carregando a sua ideia central de limite: fazer nele, arriscar nele, romper nele. E, principalmente, uma serena dignidade com seu trabalho. Com isso, pensar então a arte sem enaltecer sua condição, a de pedestal, mas pensar a possibilidade de que ela aconteça no próprio trabalho, sem precisar de discurso, sem função normativa, como se, e só assim, um limite também de vida.” A partir dessa intervenção, o artista idealiza uma série de projetos em espaços independentes e instituições públicas do circuito de arte contemporânea no Brasil, denominadas Intervenções extensivas, com o radical intuito de serem pensadas exclusivamente para cada lugar de origem.
Com curadoria de Luiza Interlenghi, nesse mesmo ano, com os artistas Eliane Duarte, Ernesto Neto, Gê Orthoff, Márcia X., João Modé, Regina de Paula, Rosângela Rennó, Vik Muniz, Suely Farhi, entre outros, participa da exposição Deslocamento do Feminino, realizada no Conjunto Cultural da Caixa, Rio de Janeiro.
2001
Participa da III Bienal do Mercosul em Porto Alegre. Pela primeira vez, suspende do plano do chão essas linhas tubulares, que tecnicamente demandam reavaliação de peso, diâmetro e estrutura. Curador adjunto do II Programa Rumos Itaú Cultural – Artes Visuais (2001-2003), viaja pelos estados do Ceará, Piauí, Maranhão e Tocantins.
2002
A convite do crítico e curador Agnaldo Farias, participa da XXV Bienal
Internacional de São Paulo, com catorze cones em escala humana, no corredor de passagem do terceiro andar no prédio.
Nesse mesmo ano, realiza intervenção na Sala Vicente do Rêgo Monteiro, na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, onde volta aos tubulares, agora em diâmetro incomparavelmente maior do que 90 cm, vazados e serpenteados em linha única que se estendia pelas duas salas expositivas, com uma parte corrida no plano do chão e outra parte suspensa no ar.
Ainda em 2002, é convidado para um programa de residência “Faxinal das Artes”, concebido por Agnaldo Farias, no qual cem artistas brasileiros convivem durante quinze dias perto da cidade de Faxinal do Céu, Paraná. No último dia do projeto, realiza a instalação Carrossel, com a colaboração dos artistas residentes Elida Tessler, Jailton Moreira e Axel Lieber, artista alemão excepcionalmente convidado do programa.
2003
Após receber convite para expor no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo, invade todo o segundo andar do prédio com outra proposição da série Intervenções extensivas, agora a de número V, onde fura as paredes das salas para que o tubo/linha imigre entre os espaços expositivos como vasos comunicantes, a invadirem também lugares de passagem e tangenciar as grades do foyer central do prédio.
Nesse mesmo ano, no Espaço Cultural Sérgio Porto no Rio de Janeiro, ocupa a galeria do piso superior com a obra Círculo amarelo original, que é adquirida pelo colecionador Gilberto Chateaubriand. O crítico Guilherme Bueno afirma que três princípios organizam o trabalho de Eduardo Frota: “um elemento básico constitui uma série, que, por sua vez, resulta em uma forma. Incorpora-se o procedimento de ‘uma coisa após a outra’ de Frank Stella, levado adiante pelo minimalismo, com o diferencial de, mesmo mantido um relativo grau de impessoalidade construtiva, haver a afirmação de uma subjetividade, cabendo a esta última a tarefa de organizar estas coisas no lugar onde elas deverão se inserir.
A ocupação da Galeria Sérgio Porto reitera proposições exploradas ultimamente pelo artista: estabelecida a unidade inicial (e aí reside uma relação decisiva entre esta forma de princípio e aquela outra total), ela busca elucidar uma solução específica diante de dados locais, sem perder a parcela de autonomia reivindicada pelos objetos. No Torreão, em Porto Alegre, havia o preenchimento dos vazios, das áreas não ocupadas pelas massas (paredes, escadas, corredores etc.); no CCBB-SP, o extravasamento das paredes e o mimetismo de recortes arquitetônicos. Agora, no Sérgio Porto, a expansão se reverte em cubagem: uma densa introspecção, que intensifica a presença dos objetos nesse interior, em contrapartida à anterior dissipação de energia” (BUENO, Guilherme. Sobre intervenção de Eduardo Frota no espaço cultural Sergio Porto, 2003. [Texto publicado em folder]).
Após prestar concurso público, é admitido como professor de artes do Centro de Educação Federal Tecnológico do Ceará (CEFET-CE).
2004
Ocupa a sala Petrobras de Arte Contemporânea, na Casa da Ribeira Natal/RN, com a intervenção Casa, em que anula o espaço entre arquitetura e objeto, dividindo todo o campo arquitetônico interno da sala em 25 espaços com dimensões diferentes um do outro, mas interligados uns aos outros por mais de cem portas abrindo para ambos os lados em fluxo aleatório do público visitante.
Para Zalinda Cartaxo, “o diálogo que Frota estabelece entre a escultura e a arquitetura está relacionado a uma questão contemporânea, cujo enfrentamento se deu também na pintura, na fotografia e em tantos outros meios. A reflexão entre a arte e a realidade, podemos observar, confere à obra uma dimensão filosófica que a coloca no plano da existência. Suas esculturas, com seu incessante diálogo com o real, oferecem ao sujeito uma experiência temporal, à medida que o impulsiona à captura e ao reconhecimento de uma nova realidade” (CARTAXO, Zalinda. No reverso da escultura. Natal: Casa da Ribeira, 2004).
Depois de fazer doação de obra para o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), a convite do crítico e curador Moacir dos Anjos, participa da exposição coletiva Doações 2001/2004, na mesma instituição.
2005
Desenvolve grande projeto para o galpão de exposições do Museu Vale, em Vila Velha/ES, a convite do diretor Ronaldo Barbosa. Essa Intervenção extensiva de número X tem como ideia original o entendimento da vocação portuária para a economia das cidades de Vitória e Vila Velha, com seus grandes carretéis de escala monumental em funcionamento direcionados para a indústria do petróleo. A partir desses elementos escultóricos de visualidade pública inseridos no contexto simbólico da cidade, o artista constrói outros carretéis em grande escala, de compensado de madeira reflorestada, e sem funcionalidade normativa os empilha aleatoriamente no galpão expositivo, mas como gesto relacional tanto para os carretéis do porto, como para a acidentada topologia onde está inserido o museu e a cidade, no lugar geográfico. O texto crítico do catálogo é de Paulo Herkenhoff.
2006
Depois de realizar as Intervenções em trânsito I (MAM RJ) e as Intervenções em trânsito II (Palácio das Artes, Belo Horizonte), desenvolve projeto como artista residente para o MAMAM do Pátio, na cidade do Recife, onde pela primeira vez usa papelão industrial como estrutura síntese para a intervenção. “À maneira de um jogo para a percepção, este ‘estudo para o espaço’, como definiu Eduardo Frota ao conceber seus planos transversais, atuava de modo a mediar a relação do meu corpo com todo aquele ambiente. E, dado que é modulando o espaço que a obra se constitui, aquele não é mero suporte neutro, e sim parte de sua substância”, afirma Silvia Paes Barreto. (PAES BARRETO, Silvia. Um jogo para a percepção. Recife: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, 2006. [Texto publicado em folder]).
No mesmo ano, na série Intervenções extensivas, realiza a de n° XII, que projeta um plano/lâmina de 19,5 metros de comprimento por 5 metros de altura e 4 centímetros de espessura radicalmente mínima, apoiado somente entre duas colunas e pressionado com pequenas cunhas entre o teto e a parte superior do plano/lâmina, na sala de passagem do segundo andar do Centro Universitário Maria Antonia da USP, em São Paulo.
2007
Sobre a proposição Extensões da fenda, na Galeria Virgilio, o crítico Adolfo Montejo Navas afirma que, “de fato, aqui não existe centro, eixo, lugar hegemônico, pois tudo é vinculante em sua articulação. A obra se abre e se fecha, se articula (aciona uma circularidade espacial, vivencial e conceitual). As suas articulações favorecem o aberto que parte do interior, enfatizam o lado intrauterino que tem a instalação, com uma coloração vermelha acrescentada, uma cor interna que guarda memória da casa-corpórea, aquela que se importa ‘pelos espaços de dentro / não pelo que dentro guarda’, segundo um poema de João Cabral, lembrado há tempo pelo artista. O corpo é a casa, e vice-versa” (MONTEJO NAVAS, Adolfo. A escultura-cesura de Eduardo Frota. São Paulo: Galeria Virgilio, 2007).
Depois de intervir na Galeria Virgilio com a proposição Extensões da fenda, o artista segue para a região da Umbria, na Itália, como bolsista do programa de residência da Civitella Ranieri Foudation. Durante o período de sete semanas, apresenta quatro proposições, com destaque para a proposição intitulada Para medir a idade do fogo, montada no bosque de passagem entre apartamentos e ateliês do Civitella Ranieri Center. Pouco antes do final do período de residência, o artista é convidado entre os bolsistas daquela edição do programa para realizar um projeto expositivo na Galeria do Centro per L’Arte Contemporanea – Cella di Fortebraccio Umbertide, em Perúgia, na Itália. Nesta ocasião, realiza a intervenção Uma experiência para espaço, tempo e lugar na Rocca de Umbertide.
Com curadoria de Agnaldo Farias, participa da exposição Anos 80 e 90 Modernos, Pós-modernos, que compõe o quarto módulo expositivo do panorama da arte brasileira no século XX no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. A exposição reuniu cerca de setenta nomes da geração que surgiu de meados da década de 1980 a meados dos anos 1990, “destacando sobretudo o diálogo que a nova geração estabeleceu com o que fora feito antes dela e, no âmbito internacional, daquilo que vinha sendo feito ao mesmo tempo que ela”, ressalta o curador.
2008
Realiza a III Intervenção em trânsito no Museu Oscar Niemeyer (MON) em Curitiba, e constrói o Objeto in situ: uma indiscreta não moldura para o vazio, objeto monumental na grande galeria do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB) em Fortaleza/CE.
Viaja para a Espanha a fim de participar da ARCO, Feira Internacional de Arte Contemporânea.
2009
Ao lado dos críticos de arte e curadores Aracy Amaral e Paulo Herkenhoff, compõe o júri de premiação do Prêmio CNI/SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009/10.
2010
Depois de conceber o programa de intervenções para a galeria de artes visuais do Alpendre, dez anos antes, a convite de Alexandre Veras propõe agora um Projeto para o edital Conexão Artes Visuais (MinC, Funarte e Petrobras), quando realiza especialmente para o Alpendre a intervenção Associações disjuntivas: experiência Alpendre: Espaço I – A escultura no plano escavado/o lugar como subtração; Espaço II - O objeto da escultura/o consumo da arte medida por quilo; e Espaço III - O duplo assimétrico.
Nessa proposição, são quebradas todas as partes internas da Galeria (cubo branco) e o reboco das paredes, além de serem retirados o forro do teto e o piso do chão, sendo esse amontoado de entulho recodificado em operações escultóricas e transferido para outra sala, onde, sobre esse entulho, é montada uma balança de precisão para aferir a quantidade do peso escolhido pelo público comprador, posta dentro de um saco de plástico especial com o carimbo do Alpendre e assinada pelo artista em tiragem de duzentos sacos/unidades selados como obra de arte. O preço valorado por quilo pelo artista era de R$ 10, facilitando a aquisição de uma obra de arte por preço popular.
2012
A convite da Fundação Vera Chaves Barcellos e sob curadoria de Neiva Bohns e Vera Chaves, é palestrante, como artista convidado, da exposição coletiva Des/Estrutura. Realiza proposição com o público na Galeria do Centro Cultural Banco do Nordeste do Brasil, em Fortaleza, intitulada Monocromos em diagramas:
A) da autonomia da cor à linha no espaço.
B) da alteridade do metro ao gesto inacabado.
Nessa proposição, todas as medidas são dadas através da metragem das borrachas monocrômicas, tensionadas pelo público em gesto de desenhar sobre o plano da parede, alterando seu tamanho original pelo esticamento da borracha. Sendo assim, o público poderia desenhar com essas borrachas/elásticos de cor única com gestos livres fazendo e desfazendo os desenhos no plano da parede ou sobre o piso do chão. Entre os anos de 2009 e 2013, aprofunda pesquisa sobre as questões do semiárido nordestino e elabora alguns projetos a serem realizados.
2013
Participa da exposição Mundos Cruzados – Arte e Imaginário Popular no MAM do Rio de Janeiro, com a obra Círculo amarelo original, da coleção Gilberto Chateaubriand.
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SOUSA, Edson Luís André de. Antes: depois. Arte Futura e Companhia, Brasília, n. 5, out. 2005. p. 14-15.
Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.
CRÉDITOS
TÍTULO DO PROJETO
ARTE BRA Eduardo Frota
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Luiza Mello
Marisa S. Mello
DESIGN
Dínamo | Alexsandro Souza
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Luisa Hardman
TRATAMENTO DE IMAGEM
Trio Studio
REVISÃO
Duda Costa
VERSÃO INGLÊS
Isadora Gonçalves
Paul Webb
Rebecca Atkinson
PROJETO LEI ROUANET E PRODUÇÃO [FORTALEZA/CE]
Luis Carlos Sabadia
TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA
Arlindo Hartz
REVISÃO DA TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA
Julia Pombo
GESTÃO
Marisa S. Mello