ARTE BRA Fernanda Gomes foi realizado em constante diálogo com a artista. Diferentemente dos demais livros da coleção em que priorizamos as relações entre texto e imagem, o leitor vai encontrar conjuntos de imagens de importantes exposições realizadas pela artista entre 2011 e 2012.
O crítico e curador Paulo Venancio Filho foi convidado a escrever o texto inédito do livro. O autor, que acompanha a trajetória da artista desde os anos 1980, já elaborou diversos textos sobre sua obra. Em “Habitar o espaço”, estão presentes reflexões sobre os diferentes aspectos da produção de Fernanda Gomes. Ele escreve sobre a relação da artista com os materiais que, retirados da região do descarte, desuso e abandono, são ressignificados de forma refinada e recolocados no mundo em outra condição. O texto republicado é de autoria de Lóránd Hegyi.
A entrevista foi realizada no ateliê da artista em dezembro de 2014 com a participação do escritor e professor Fernando Gerheim, do crítico e curador Felipe Scovino, da coordenadora da coleção Luiza Mello e da artista Julia Pombo. A conversa girou em torno do processo de criação de Fernanda, das relações entre vida e arte, cor e luz, e da importância do espaço.
A cronologia fartamente ilustrada priorizou as muitas exposições realizadas pela artista desde o início de sua trajetória, no Brasil e ao redor do mundo. Esta publicação pretende abrir uma pequena fresta de luz para que um número maior de pessoas possa ver e conhecer a obra dessa importante artista brasileira.
Capa
Fortuna crítica
Cronologia
Capa
FERNANDA GOMES nasceu no Rio de Janeiro em 1960. Iniciou seu percurso de exposições em 1988, obtendo desde meados dos anos 1990 ampla repercussão nacional e internacional. Realizou exposições individuais e coletivas em quase todos os países da Europa, assim como nos Estados Unidos, México, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Participou das Bienais de São Paulo (1994 e 2012), Istambul (1995 e 2013), Sidney (1998) e Veneza (2003). Seu trabalho está presente em várias coleções particulares e públicas de grande relevância, como as do Centre Pompidou (Paris), Tate Modern (Londres), Museo Jumex (México), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Miami Art Museum, e Museu Serralves (Portugal), em cujo parque criou uma escultura permanente. Sua obra tem sido objeto de análise em artigos publicados em periódicos especializados como Art Review, Flash Art, Art Press, Art News, Artforum, ArtNexus e Art in America.
“A obra de Fernanda Gomes é exemplar da arte como modo de vida, assim como da vida enquanto modo de usar a arte. (...)
A exposição é a própria obra de arte, numa reinvenção do espaço existente a partir da disposição dos objetos que o estruturam. Fernanda Gomes incorpora no seu trabalho a história, o humor e a nostalgia, de cuja combinação resulta uma profunda experiência pessoal para o espectador. (...)
Fugindo a gêneros e a categorias da arte, Fernanda Gomes recicla no espectador uma experiência da escultura e da pintura, entre o objeto e o espaço, entre a luz e a sombra, entre a composição e a dispersão.”
João Fernandes
Paulo Venancio Filho
Lóránd Hegyi
HABITAR O ESPAÇO
Paulo Venancio Filho
Se há um trabalho que divergiu tão completamente do espírito predominante da época em que surgiu – os anos 1980 –, este trabalho é o de Fernanda Gomes. Do retorno à pintura, do neoconceitualismo, da espetacularidade, das grandes dimensões, das novas mídias, enfim, de tudo o que marcou a época, Fernanda está afastada, deslocada mesmo; não se compreende seu trabalho seguindo estas diretrizes. Abstrato, de mínimas dimensões, materialmente de pouco valor, fragmentado e fragmentário, seu trabalho se destacava por essas qualidades, digamos, “negativas”. E estas pouco mudaram ao longo de sua trajetória de quase três décadas.
A mesma e inconfundível rica materialidade “pobre” dos primeiros trabalhos está presente nos trabalhos mais recentes de Fernanda Gomes. As construções/pinturas – vou chamá-las assim – de agora estão impregnadas da trajetória anterior, depurada ao longo de décadas. São, em sua maioria, pequenas e médias estruturas de madeira pintada; objetos que mantêm uma aparência de fragilidade característica e longamente desenvolvida. Delicados, quase quebradiços. Leves, quase aéreos. Despojados de cor, nada além da tinta branca. De uma brancura quase tosca e austera, mas também muito sofisticada. Os procedimentos construtivos são muito simples e claros, e, à distância, manifestam o impulso da nossa tradição construtiva. Os pedaços de madeira são apenas pregados ou encaixados; existe aí uma artesania própria inconfundível: o tratamento e atenção únicos que a artista sempre deu aos materiais. Aí está todo o claro mistério do trabalho. Estas construções/pinturas mudas, silenciosas, reclusas, chamam a atenção justamente por não chamarem a atenção. Estão ainda, como antes, fora da ordem atual, pois convocam um sentir muito preciso de qualidades despercebidas e quase imperceptíveis, hoje esquecidas. Portanto, trata-se de um refinamento.
Desde o início, os limites do trabalho são amplos e também muito estreitos. Fernanda encontra seus materiais na região do descarte, desuso e abandono, já tendo cumprido sua vida útil e perdido aquele vínculo que os unia no conjunto do dia a dia da vida comum: o vínculo da esfera da intimidade construída. Tal atitude recusa e inverte a atração voraz do consumo e do mundo pop, sem qualquer tipo de militância ou proselitismo. Antes, sugere um design às avessas, não aquele destinado à racionalidade funcional, mas ao seu término e esgotamento. É uma prática reversa, com o mesmo rigor e método da primeira, ainda que intuitiva e assistemática, sem a intenção de reconstruir ou reconstituir a coisa original, porém, mantendo no seu “inverso” o mesmo desejo de restabelecer um significado às coisas abandonadas sob a forma, em especial, da exposição e na sua singular maneira de tratar objetos e espaço. É através da exposição – do retorno à existência significativa – que se manifesta o desejo de infundir ao espaço a presença do tempo, desgaste das coisas que nos cercam, do afeto e da indiferença que temos pelos objetos que fazem parte na nossa existência.
Como sempre nos trabalhos de Fernanda, é inconfundível a natureza dos objetos selecionados: objetos domésticos, da esfera da casa, do lugar do convívio mais imediato, íntimo e próximo. Porém, raramente encontramos os objetos por inteiro, intactos, na sua condição primordial. O uso e o desgaste são o que os qualificam e que os identificam, quaisquer que sejam. Foram usados e dispensados, e agora estão aqui reunidos. Banidos do mundo das coisas novas, recém-acabadas, afundaram no esquecimento e na invisibilidade, para retornar agora em outra condição. Reunidos, transformam-se nas muitas exposições/instalações que Fernanda tem realizado em museus, galerias e grandes mostras como a XXX Bienal de São Paulo. Exposições/instalações porque coexiste uma identidade perfeita entre uma e outra. Nelas a dispersão e reunião de coisas parecem obedecer a certas forças mnemônicas latentes à procura de um sentido perdido e distante; já vivido, mas adormecido e esquecido. Surge um espaço vazio e ativo que convida ao lento vagar, a se perder, onde objetos estão juntos como se estivessem numa daquelas seções de achados e perdidos; como se, ao nos aproximarmos deles, subitamente, adentrássemos num terreno baldio. Aí, onde tem lugar certa provisoriedade das coisas largadas, sem uso, descartadas, em equilíbrio precário e instável, onde nada está fixo irremediavelmente, mas apenas deixado em um certo lugar: aqui um copo d’água, ali uma pedra, mais adiante uma cadeira, uma folha de papel... Nesse espaço criado, percebemos uma sensibilidade infundida de memórias sensoriais onde perduram a experiência de certas texturas, pesos, cheiros etc., que retornam em atenção constante à tatibilidade, à palpabilidade, às alterações ocorridas com o contato físico que os objetos com o tempo vão adquirindo.
A escolha, aparentemente arbitrária, desses singularíssimos objetos obedece a uma poética estrita, seletiva, inconfundível; nela prevalece, acima de tudo, um anonimato quase absoluto, intemporal; as coisas estão “nuas”, poderíamos dizer. Desses fragmentos tão desqualificados e dispersos, mas também tão próximos, exala, paradoxalmente, uma estranha perenidade; deles nada se sabe: têm ainda utilidade ou não, de onde vieram, a quem pertenceram? Entretanto, cada um com a sua presença física irradia a temporalidade vivida do material: madeira, vidro, tecido, papel etc., formando um mostruário da entrega e resistência ao tempo.
Fernanda trabalha com um tempo de longa duração; o tempo é quem produz e determina seus objetos. Uma mesma repetição e obsessão de procedimentos vêm se expandindo, renovando e atualizando tudo aquilo que havia nos primeiros trabalhos. Quando escolhe um objeto, é porque o tempo já agiu sobre ele e o relegou do mundo visível e utilitário para o esquecimento e a invisibilidade. E cada exposição é uma ocasião determinada desse processo, uma espécie de laboratório temporal, não para reviver ou resgatar a nostalgia de uma dimensão distante ou perdida. Não há qualquer apelo sentimental, não há um “tempo” específico que busca reencontrar e resgatar do passado e reviver. Tão pouco o tempo abstrato, o tempo social, o tempo cronológico, mas sim o tempo imperceptível que altera a nossa relação com as coisas; que se deposita e só é legível através da obsolescência continuada. É uma temporalidade em que não sabemos a qual “tempo” ou “época” pertenceu; absolutamente anônima, desprovida de qualquer aspiração romântica, sem qualquer tipo de proselitismo. Não encontramos no trabalho objetos identificados, coisas de outras épocas, lembranças reconhecíveis da memória coletiva; ao contrário, tudo é essencialmente anônimo e sem identidade para que volte a ser novo, atual, presente no aqui e agora.
Portanto, o trabalho de Fernanda Gomes não obedece a uma sequência estritamente cronológica. Nele não há fases, etapas, reviravoltas, mudanças bruscas – falar do início do trabalho já e falar de todo o trabalho até hoje. O trabalho absorve o seu passado, tal como absorve as coisas passadas. Nesse sentido, qualquer trabalho é plenamente atual. Do mesmo modo como suas exposições/instalações não têm um começo e fim determinados ou uma direção única a serem percorridas; podemos seguir indefinidamente e cada espectador vai encontrar seu percurso ou seus múltiplos percursos, sem que um seja mais decisivo que outro. E em cada percurso é como se refizéssemos, nós mesmos, o encontro da artista com os objetos da exposição; de modo que nós, espectadores, também vamos “encontrando”, “descobrindo” ou “redescobrindo” tal como a artista o fez. Como nada foi planejado de antemão, também ao espectador é dada a condição de “inquilino provisório”: aquele que habita um espaço indefinido ao sabor dos estímulos e impressões que o reconduzem ao contato com as coisas mais comuns e prosaicas. Ocorre-me que, nas suas exposições/instalações, Fernanda articula algumas direções da arte brasileira, aparentemente divergentes: as gravuras de Goeldi, os desenhos de Mira Schendel e os improvisos ambientais de Barrio. Do primeiro, o amor pelas coisas abandonadas e desamparadas que a cidade vai deixando de lado; da segunda, a espécie de paisagem íntima de seus desenhos, que, de tão instável, mal se configura, no momento último do desaparecer; e também a absoluta liberdade das ocupações “vivenciais” de Barrio. Pouco a pouco, ao caminhar pela exposição/instalação, em meio às coisas que se dispersam e se agrupam, é dado ao “inquilino” viver a experiência que a constituiu, ou seja, a possibilidade que todos têm de se tornarem “inquilinos temporários” do seu espaço ambiental.
A uniformidade e heterogeneidade – certo paradoxo – das coisas, objetos e materiais da artista não são casuais; é como se ela abolisse qualquer hierarquia que houvesse entre eles; são coisas sem valor, e todas têm o mesmo valor, ou melhor, todas as coisas são elevadas a um valor único: uma agulha tem o mesmo valor que uma cadeira. Já que cada uma das coisas das exposições de Fernanda pertenceu a um lugar, a uma pessoa e a um tempo que não se sabe, cada um desses objetos exerce uma afinidade aproximativa com algum outro, e a exposição/instalação se forma como sequências de cadeias articuladas até um limite que é um tanto indefinido, mas que se percebe claramente: o espaço se completou, nem mais nem menos. Tal modo de equivaler as coisas é o que permite as escolhas de Fernanda, tão diferentes do ready-made duchampiano ou do objet trouvée surrealista. Nenhum dos objetos de Fernanda é único, e todos são. Todos se aproximam. Este é o seu método de explorar e questionar o mundo e as coisas. O que tem mais ou menos importância? O que é mais ou menos relevante? Como algo de significante pode surgir da insignificância? A artista não elege nenhum fetiche. É uma lírica antifetichista que está em ação, colocando esses objetos num parêntese, num estado de dormência e repouso, todos no mesmo plano.
O espaço sempre é, junto com as coisas, um elemento fundamental do trabalho. Antes das coisas, há o espaço; ou melhor: a “nudez” do espaço, tão decisiva quanto a “nudez” das coisas. O espaço expositivo vazio que deve ser preenchido; e esse espaço, antes de tudo, precisa ser experimentado, percorrido, sentido, vivenciado intensa e exaustivamente. A artista se demora longamente no espaço antes da exposição; viveria temporariamente ali se possível, ela que é o primeiro “inquilino temporário”. Só assim o recolhimento e preservação do descartado cria a exposição/instalação. Um tipo de improvisado site-especific; assemblage total, chão, parede, teto; um lugar sem qualquer tipo de hierarquia, receptivo, inclusivo, aberto, onde qualquer vivência provisória, sem exceção, pode se abrigar. Os objetos podem então retornar a uma convivência, agora diferente daquela a que antes pertenceram, sem que saibamos qual foi, e não mais interessa saber. Estabelecem-se como em um novo abrigo. Sem qualquer nostalgia ou sentimentalismo piegas; o que poderia ser fatal. Assim, o quanto possível, cria-se uma franca neutralidade, para deixar as coisas falarem por elas mesmas na sua nudez exposta. E nos agregamos e apegamos novamente a elas através da nossa presença desarmada; que só exige a vivência prosaica com o que está ao redor, com o que está mais próximo, com o que tocamos com as mãos e sentimos com o corpo, que pegamos diariamente por toda a vida e que cria aquela intimidade primeira e fundamental.
Fragmentos, assim talvez pudéssemos categorizar esses objetos que parecem vir de um todo único, embora não sejam capazes de reconstituí-lo – e não há como. A dispersão e a agregação se fazem sem qualquer violência, mas com a maior delicadeza e cuidado. As coisas se apoiam umas nas outras, sem exigir qualquer esforço desnecessário, apenas o suficiente para o equilíbrio e a eliminação quase absoluta das tensões no espaço. No entanto, o imprevisto é inevitável e bem-vindo tal como o acidente que estilhaça o Grand verre de Duchamp ou o acaso da sua Élevage de poussière. Ao lado da melancolia e da solidão, o humor aparece em situações inéditas e inusitadas. Nesse desconjuntado de coisas que são as exposições de Fernanda, há muito do comportamento desapercebido em nós mesmos. Deparamo-nos e reconhecemo-nos nas ações de alguém que foi juntando, amarrando, colando, apoiando aquilo que encontrou pela frente. Ou que desmantelou, separou ou desmontou. Tudo que qualquer um poderia fazer, sem dificuldades, despreocupadamente – viver no provisório é o que cada exposição sugere. Faça alguma coisa com o que está aí – é o que o trabalho parece dizer de maneira franca e irônica. Este é o campo em que ele se especializou; na investigação das infindáveis qualidades comuns do universo do desgaste, do desuso, como se fosse quase um catálogo de todas as suas variadas e múltiplas possibilidades. Do grau de intensidade entre uma e outra, da combinação ou contraposição entre elas, do efeito em cada material específico, do comportamento desse efeito ao longo do tempo e dos inúmeros processos de deterioração; um estudo completo da variação temporal que as coisas sofrem, como quando algo do material reaparece em seu estado original sob o verniz, a tinta. O indício deste afloramento é uma das características que aqui se explora, ao deixar evidente esta ambiguidade entre o que as coisas são na aparência e aquilo de que elas foram feitas. Como se a matéria voltasse a reivindicar sua presença integral, emergindo sobre a face acabada das coisas e mostrando o quanto, em tudo, está presente o provisório e o inacabado, sem que haja aí um elogio do precário, pelo qual Fernanda não se interessa.
Apesar de assemblage total, esse conjunto de coisas paradoxalmente pouco tem de heterogêneo. Como na natureza-morta, há diversidade, mas ela tende para certas afinidades materiais constantes e recorrentes que identificam o trabalho logo à primeira vista: madeira, as suas diversas qualidades, tipos, tamanhos; papel, de transparências e opacidades diversas, novo, usado, amassado, rasgado, colado; copos, garrafas, cacos de vidro; fios, cordas, arame. Mais recentemente, móveis usados, cadeiras, mesas, bancos, dos mais diversos tipos; todos de madeira já gasta e marcada pelo uso. E tudo se mostra como é, sem pudor, sem disfarces, com a franqueza em aceitar o que está aí, tal como é. Variante do gênero da natureza-morta, investiga a obsolescência que a constituiu, pois aquilo que está aqui não chamaria atenção em outro lugar. Objetos que se tornaram como que invisíveis e que retornaram de um inframundo fora do alcance da atenção cotidiana à qual pertenciam. Um por um, cada um ocupa sua posição, retomando um significado, individualizando e fixando seu lugar próprio, na totalidade da exposição/instalação que, de tão instável, poderíamos, quem sabe, desequilibrá-la apenas com um sopro.
Percebemos que o equilíbrio total da exposição/instalação está assim relacionado ao equilíbrio individual de cada peça, e o equilíbrio de cada peça ressoa o equilíbrio do todo. Tudo se organiza de uma maneira que desarticula e coloca em suspense a habitual cerimônia e neutralidade do espaço institucional do museu ou galeria. Afirma o chão como chão mesmo, como lá fora, na rua. A parede é parede, como um muro abandonado onde se apoiam coisas quaisquer. Esta invasão do mais precário dá às coisas uma gravidade própria e autêntica, sem nenhum disfarce longe de qualquer artificialismo expositivo. Assim a “narrativa” deste lugar adquire pausas, espaços em branco, cesuras, interrupções, aglomerações. Um espaço de uma solidariedade possível, não utópica, forma-se onde cada coisa vale enquanto se apoia e dá apoio à outra. São encontros de outra ordem daquele, tão famoso, entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecação, como queriam os surrealistas inspirados pelo poema de Lautréamont. Não o choque ruidoso, mas um igualitário silêncio, apenas o mesmo murmurar coletivo e solidário.
Com esses tão parcos e austeros recursos, o trabalho de Fernanda Gomes se transporta com a artista para onde ela for: a exposição/instalação é, muitas vezes, um conjunto transportável. Depende apenas da ação que cada determinado espaço vai exigir. Quando muito, leva alguns poucos objetos no bolso, próximo ao corpo. Objetos que funcionam como catalisadores e dão início àquela lenta e delicada agregação que vai se formando no espaço, trazendo e aproximando aquilo que é afim. Ajustando, através deles, a fina sintonia do todo que vai se formando. Sim, pois o trabalho é, sobretudo, a possibilidade real da reunião de semelhantes, de iguais – de qualquer lugar e de todos os lugares.
Cada exposição de Fernanda Gomes atua no sentido de restituir, até mesmo e principalmente aos materiais mais frágeis e precários, um vínculo possível com a esfera cada vez mais fragmentada e volátil, quando não banalizada, do afeto cotidiano. Elas propõem experimentar uma nova convivência significativa com as coisas no atual estado da impermanência e voltar a dirigir uma atenção demorada e intensa ao seu redor. É uma operação delicada, que exige um controle preciso e dimensionado do investimento transmitido a cada objeto e ao todo da exposição/instalação. Suas ações procuram encontrar aquele quantum perdido necessário à presença significativa das coisas que são usadas, consumidas, desgastadas e esquecidas. Na verdade, eles surpreendem pela deliberada desproporção antagônica dos valores: tão insignificantes e desprezíveis materialmente e tão preciosos imaginária e simbolicamente. De fato, não é apenas um lugar físico que pretendem reivindicar; querem vincular, ainda que através de fragmentos, a vida nas suas relações com as coisas. Certamente, o trabalho de Fernanda intriga por não ser imediatamente legível; é a decantação de ações metafóricas, elípticas, repetidas e repetitivas, compulsivas e evanescentes. Tal como a vida.
FERNANDA GOMES,
ENORMES (PEQUENAS) MUDANÇAS
Lóránd Hegyi
A força poética de diversos objetos sugerindo abandono, marca de uma inexorável efemeridade, evocando mesmo assim uma certa imutabilidade e uma ordem latente em contradição aparente com sua distribuição fortuita e caótica – são qualidades que tornam a obra de Fernanda Gomes extremamente intelectual e ao mesmo tempo emocional e que lhe confere um caráter fundamentalmente arcaico. Este arcaísmo inscreve sua obra ao contexto geral da arte contemporânea latino-americana, embora a artista evite qualquer uso de motivos populares, de inspiração “local” ou outros elementos “folclóricos”. O arcaísmo que distingue essa arte de suas contemporâneas europeias flui de uma calma quase mítica. Significa que o observador externo, um amante da arte “contemporânea” ou “consumidor de arte”, nada pode fazer para modificar a ordem inerente que reside nas relações entre os objetos numa estrutura criada pelas atividades do cotidiano. Essa estrutura oculta funciona como a base existencial que faz a atividade humana, a intervenção do homem no ambiente e sua transformação de objetos físicos aparecerem como “necessidades objetivas”. Aqui temos uma constelação atemporal, imóvel, quase "eterna”, em que os rastros deixados pelas tarefas diárias manuais e pessoais fazem parte da estrutura oculta das coisas.
Fernanda Gomes realiza intervenções mínimas, quase invisíveis, em objetos encontrados que ela dispõe lado a lado (fragmentos de móveis, livros, objetos de madeira, cerâmica, caixas de papelão etc.). Ao fazê-lo, busca, por um lado, incluir a realidade espacial, arquitetônica e natural implícita numa estrutura poética inteligível e, por outro, interpretar o objeto com o qual está trabalhando como um elemento retirado da realidade “objetiva”, fora da vontade pessoal ou representação subjetiva de qualquer pessoa.
INTERVENÇÕES QUASE INVISÍVEIS
Embora o uso de fragmentos de objetos, em sua normalidade e simplicidade, e seu trabalho com materiais efêmeros que manifestam uma “poesia com aspecto de ruína” evoquem certos aspectos das instalações de Joseph Beuys, a estratégia da artista está bem distante da escultura social de Beuys e seu pensamento alegórico, moralista e metapolítico. Por um lado, Fernanda evita qualquer indício de abordagem “terapêutica” analógica ou profética, que envolveria imperativos morais e estabeleceria um relacionamento direto entre o fazer artístico e mudança moral, social e política. Ela não busca interpretar o processo temporal que está em ação em coisas materiais como “processo educacional”; não compartilha das práticas culturais, analógicas ou outras, de povos primitivos e seus sacerdotes. Por outro lado, mantém deliberadamente uma modéstia e um grau de silêncio que a tornam quase anônima. Ela é toda sutileza e contenção. A personalidade da artista recolhe-se atrás da objetividade dessas coisas frágeis que parecem ter sido abandonadas num arranjo aleatório. Seu discurso não é o de “xamã da arte” que oferece redenção, mas sim aquele do significado de nuances aparentemente sem importância. A estratégia educacional político-pedagógica da “atividade paralela” é desarmada pela presença serena da força da impotência.
É neste ponto que se sente a feminilidade singular e sedutora do trabalho de Fernanda Gomes que, embora tremendamente contundente, escapa de um entendimento apressado. Como artista, ela é tanto delicada quanto ríspida. Age com intervenções leves, sensíveis, que deixam o mais sutil dos rastros. Para ela, algo infinitamente pequeno pode assumir enorme importância; mesmo o que é sentido por sua ausência adquire uma corporalidade frágil e suave. Ela brinca com a transparência dos materiais, utilizando sombras que modificam os contornos dos objetos e geram arranjos puramente óticos. Seu método consiste em deixar entre os objetos uma distância calculada com incrível precisão. Às vezes, dois objetos parecem quase se tocar sem nunca fazer realmente contato; o espaço entre eles é infinitesimal. Isso confere uma carga emocional e, portanto, um caráter quase humano a objetos banais, inanimados. Sua habilidade poética infunde uma força emocional que é ao mesmo tempo serena e contida.
MUNDO PARTICULAR, AFAZERES DIÁRIOS
Passo a passo, o espectador descobre as sutilezas ocultas que surgem das combinações de materiais e constelações de objetos. Assim, as fissuras num chão de pedra ganham qualidade museológica por suas relações intrínsecas com painéis de vidro, como se fossem parte do acervo pessoal de memórias da artista. Do mesmo modo, as frestas entre objetos dispostos lado a lado são como a continuação das fissuras do chão. Suas assemblages de objetos muitas vezes contêm algum elemento pessoal que é combinado com uma atividade específica, um determinado modo de estar na vida ou um movimento reconhecível por seus rastros. Fernanda muitas vezes trabalha com velhas malas ou baús, material de embalagem e sacos de papel, indicando empacotamento e transporte, ou, em outras palavras, partida e desaparecimento. A combinação de objetos tão comuns e simples com itens muito pessoais provoca a emoção e a curiosidade do espectador. Não é possível ter certeza se a ocorrência se desdobra na esfera puramente particular da artista ou no domínio das tarefas corriqueiras, cotidianas. O espectador fica profundamente desconcertado. Nessa ruína de constelação do efêmero, os objetos são o resquício de uma ocorrência, uma relíquia de um processo de transformação, o resultado de alguma atividade ou uma realidade fora do tempo, imutável e anônima.
Fernanda é mais que uma “poeta” de fragmentos e nuances. É também uma mulher pragmática, inteligente e calma. Sabe perfeitamente que as estruturas objetivas existentes não podem ser diretamente modificadas de maneira voluntarista, pela subjetividade ou por explicação didática. Ela permite às coisas sua própria existência, seu próprio enraizamento; a “passividade” anônima e evidente dos objetos se opõe à extrema atividade de uma arte social que requer a presença pessoal e quase sacerdotal do artista. O individualismo indisfarçado, paradoxalmente impessoal, que se manifesta em pequenas nuances e intervenções modestas, contrasta com os apelos de Beuys por uma arte coletiva, cujo caráter “coletivo” nada mais é que uma interação entre o xamã-artista-profeta romântico e revolucionário e o receptor manipulado, participante passivo. Em vez de uma abordagem alegórica e pseudopolítica cujas preocupações estão no futuro, Fernanda transmite uma sensibilidade que cada um de nós vivencia individualmente. O resultado do processo de transformação não tem importância por si só.
ORDEM UNIVERSAL
Sua obra abarca a coexistência do acaso e do previsto, dados físicos e manipulação artística. Estes elementos estão inseparavelmente ligados e se complementam; o paradoxo de sua coexistência é apenas aparente. Na mostra “Transparências”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, Fernanda Gomes fez as fissuras e buracos do chão de pedra parecerem indicar os eixos das constelações de objetos dentro de um determinado sistema, eixos que determinam sua composição e estabelecem uma hierarquia formal. Ela, na verdade, trabalhava com modificações fortuitas do ambiente arquitetônico. Interpretou esse ambiente, com sua estrutura estética, como uma obrigação objetiva, manifestação de uma ordem existente além de qualquer vontade subjetiva. Os objetos pequenos, frágeis, foram igualmente transformados de modo fortuito (em termos de sua cor, superfícies e formas), mas de tal maneira que as transformações parecem expressar uma necessidade imposta pela composição e a expressão de uma regra inevitável. Assim, a artista cria um elo entre as mais tênues atividades – quase imperceptíveis do ponto de vista material – e uma grandiosa estrutura abrangente e inteligível que aponta para uma esfera de valores universais, existenciais e filosóficos.
O espectador tem a impressão de que, apesar do caos aparente, tudo nesse mundo de fragmentos frágeis e fugazes é conectado a todo o resto. As menores modificações nas relações entre o prédio (chão, paredes, sala de exposição, teto, etc.) e os objetos que ela trabalha, dispõe e deixa no espaço, sugerem um afastamento doloroso. Elas invocam fatos essenciais, decisivos, cujo significado é, em termos filosóficos, absoluto. Sozinhas, essas nuances revelam uma visão do mundo. Sozinhas, essas pequenas transformações aparentemente tão insignificantes contêm a essência e a verdade do mundo. Fragilidade e acaso são uma alusão à universalidade, que, paradoxalmente, permite perceber a força objetiva da existência contida em fragmentos perecíveis, tênues, frágeis e imponderáveis de um mundo de objetos banais.
Uma realidade fora do tempo, imóvel e anônima, e uma fragilidade poética que sugere instabilidade se desdobram simultaneamente na obra de Fernanda Gomes. Mesmo que pareça contraditório que uma certa calma “pesada”, uma estranha imobilidade – a sensação que todo movimento e toda transformação é impossível – se alie a uma espécie de dramaturgia, de teatralização de pequenas tarefas, “celebrações”, “rituais” para determinar a estrutura significativa, uma evidente objetividade predomina no seu trabalho. Objetividade, no sentido da existência que se apresenta como coisa banal, perfeitamente normal.
Texto original escrito em alemão. Esta versão em português foi traduzida a partir da versão em inglês, de L.-S. Torgoff.
Esse texto foi publicado originalmente na revista Art Press n. 223, em abril de 1997.
ENTREVISTA
Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2014.
Participantes: Felipe Scovino, Fernando Gerheim,
Julia Pombo e Luiza Mello
Felipe Scovino
O branco é uma situação que percorre intensamente a sua obra.
Fernanda Gomes
Branco é luz. É a cor mais clara e a que tem mais cor, onde percebo a maior variedade de nuances. Reflete as outras cores, rebate a luz. É o espectro da luz solar, a soma de todas as cores. Sinto o branco como vazio e cheio ao mesmo tempo. Atua como um elemento de equilíbrio. E preciso buscar uma paisagem que me proteja deste mundo tão violento. Criar um ambiente onde eu possa respirar, pensar, me movimentar mais livremente.
Fernando Gerheim
No seu trabalho tem também a matéria que aparece tão crua, que é desgastada pelo tempo. A matéria aparece em um estado da realidade, e o branco como um pigmento que fala da própria luz. Penso na relação entre o que você faz, que tem a reverberação da pintura, e na cor da madeira, da matéria que aparece tão original e tem a marca do tempo.
Fernanda Gomes
Pintar de branco é como acrescentar uma capa de luz, mas me interessa ao mesmo tempo revelar o osso das coisas, uma situação potencializa a outra. Contraste e complementaridade.
Fernando Gerheim
Quando você fala sobre o branco como o espaço que pode ser o seu abrigo de vivência no meio dessa cultura, penso na questão da arte e da vida, da arte como meio de viver e da vida como meio da arte.
Fernanda Gomes
Claro, vida e arte se realimentam constantemente. As coisas são e estão misturadas. A curiosidade rejeita categorias ou hierarquias, compartimentar é artificial e improdutivo. Tudo é fato ético-estético. A arte é resultado de um amor espraiado, pelo que há de beleza na aventura humana, nesta continuidade sem sentido, mas devotada. O amor não pergunta a causa, aceita o fato, apaixonadamente. A arte melhora a vida a tal nível que é difícil imaginar como tantos podem prescindir disso. Sempre pensei muito esta relação entre arte e vida, e a cada dia o que me interessa mais ainda é arte e amor. E, além de amadora, vivo de arte, literalmente!
Felipe Scovino
Penso que você torna as coisas invisíveis, para torná-las visíveis. Nesse caso, lembro-me dos Objetos ativos de Willys de Castro, que possuem uma qualidade semelhante e se situam entre fronteiras.
Fernanda Gomes
O objeto ativo é uma revolução. Vamos nos alimentando do que veio antes, e há tanto! Recentemente apareceu que a primeira obra de arte encontrada tem 40 mil anos, e vê-se que aquilo é arte mesmo, não é outra coisa, e é totalmente contemporânea. Penso que essa continuidade talvez seja a essência do ser humano. As questões permanecem as mesmas, é saber que vai morrer, não saber o que está fazendo aqui, é esse espanto. E através da arte é possível estabelecer uma comunicação profunda com tantos outros seres humanos que viveram essa aventura, de maneiras tão emocionantes e estimulantes, em tempos e lugares tão distantes. Isso nos traz uma outra dimensão para seguir vivendo, mesmo sem encontrar sentido para isso. Se é para fazer algo, é tentar colocar em aparição concreta isso que ninguém sabe bem o que é, mas que podemos reconhecer. Materialização simples do mistério.
Fernando Gerheim
Outra questão que eu acho interessante no seu trabalho é como as coisas acontecem no espaço de exposição. O trabalho muitas vezes é a exposição e a exposição se desmancha. Ele é efêmero e ao mesmo tempo lida com a memória. Como é isso?
Fernanda Gomes
A exposição é uma situação que nunca mais vai se repetir, como tudo, aliás. Aquele conjunto preciso, em um espaço determinado, se perde. Algumas obras que só existem plenamente naquele contexto, prefiro desfazer do que reduzir. Mas há obras completamente autônomas, que dificilmente são percebidas como tal por causa da integração do conjunto. Estas muitas vezes existem até melhor individualmente. E claro, há a memória, que é a experiência destilada.
Fernando Gerheim
Nesse sentido, a exposição ser o trabalho, como muitas vezes acontece, cria uma relação que já é crítica ao sistema da arte. Mas a crítica aparece embutida no trabalho, nas táticas que você usa, não vem de fora. Acho que uma característica bem forte nas suas exposições é que você constrói direto no espaço, mas sem projeto, de um modo processual.
Fernanda Gomes
Gosto de começar colocando tudo em questão outra vez, da forma mais elementar. É minha natureza, sinto que sou a mesma criança de sempre, ainda que muito mais experiente. É também uma escolha, difícil, mas produtiva. Geralmente a primeira coisa que me vem à cabeça é: “O que estou fazendo aqui?” Pergunta primitiva e terrível, que só gera mais perguntas, em vários níveis. E a melhor resposta é o resultado concreto, o que vou vivendo, o que vou fazendo.
Felipe Scovino
A exposição do MAM, em 2011, foi emblemática. Nela acontecia algo que está acontecendo agora, diante dos meus olhos, nesta parede, que é o conceito de acidente. Você usou todos os acidentes ou toda história que aquele piso sofreu, as ranhuras, as quebras do piso. De certa maneira você reviu a história do próprio MAM, eu vi obras antigas sendo arrastadas ali, sendo deslocadas. E aquilo, ao invés de ser erro, como se estivesse chamando atenção para o fato de o piso do MAM estar danificado, foi transformado magicamente em poesia. Usou o próprio lugar como uma ação escultórica. Quando chego ao seu ateliê, a minha experiência é de uma desaceleração. As insignificâncias, acidentes, vazios, a invisibilidade, ranhuras e defeitos que habitam o mundo também estão aqui, acumulados. Mas eles magicamente me transformam. Saio melhor.
Fernanda Gomes
Que bom! Isso é o fundamental, transformar a visão das coisas! Arte é essa possibilidade de transformar tudo a partir de uma visão. Visão no sentido mais amplo, que inclui intuição, imaginação, poesia. É fundamental também criar uma desaceleração, poder se conceder viver outro tempo, fora deste tempo comum. E também a ideia de erro, do imperfeito, sendo a natureza mesma das coisas, da vida. Aceitar a beleza da precariedade que nos constitui.
Luiza Mello
O que me chama atenção no seu processo de trabalho é que, quando vai montar uma exposição, você tenta ficar o mais confortável possível para ter a liberdade que precisa para fazer seu trabalho. Como é este momento de ir para um lugar montar o trabalho, quando você não sabe o que vai fazer? Existe um embate?
Fernanda Gomes
Adoro este momento de entrar em um espaço vazio e começar a me movimentar, a imaginar! Tudo é possível no início, são infinitas possibilidades, é uma alegria! O principal é chegar com entusiasmo, tesão. Renovar o interesse genuíno pelo que se está fazendo, no momento mesmo em que se faz. É estar ali inteira, o mais relaxada e livre possível. E claro que também é preciso uma certa tensão. Fico em um estado de alerta total. São equilíbrios. Mesmo o indesejável ou inconveniente, como sono ou cansaço, podem ser aproveitados positivamente.
Felipe Scovino
Nas suas exposições, eu fico procurando situações que vão além das obras, como se algo estivesse camuflado. Você trabalha com o inesperado, com lugares, situações, objetos e formas que se confundem com o próprio lugar. Ou, em determinados casos, o lugar é a própria obra. O fato de o lugar também ser obra causa uma confusão no espectador, não?
Fernanda Gomes
Prefiro aceitar a indeterminação, acho aborrecido explicar ou categorizar. De certa forma tudo faz parte, se está ali, naquela situação. Fica mais divertido brincar com as coisas. A base também vira escultura, a pintura incorpora a espessura, vejo as coisas como são. A construção é uma articulação da linguagem, visual, concreta.
Julia Pombo
Como você vê a questão do método e da repetição no seu trabalho? Como é esta prática para você?
Fernanda Gomes
A palavra “trabalho” parece inapropriada, mas faltam sempre palavras, vamos lá. O trabalho em si é feito sem método e sem esforço, o guia é o prazer. Se estou sem vontade de fazer, não faço, mas em geral tenho mais vontade do que seria conveniente para uma vida mais social. O esforço é criar uma estratégia para transformar uma atividade lúdica em meio de vida, em vários níveis, mantendo sua essência, que para mim é vital. É um desafio que envolve todas as esferas. A ideia de método é mais uma disciplina de vida. Cuidar para que eu possa estar no meu melhor. Uma disciplina que inclui procedimentos banais, movimento, alimentação, estímulos. Desenvolver delicadeza e força, física e mental. Ampliar o humor. Dançar, cantar, nadar, ouvir música e histórias bonitas. Evitar ao máximo o lado estúpido da vida. Diminuir o supérfluo, a burocracia, as tarefas ridículas, levar uma vida mais simples.
A ideia de repetição poderia fazer parte deste todo. As atividades de todos os dias, as mais básicas, sugerem certas coisas que faço, desde o início. Continuo como se fossem as mesmas, ou a mesma, mas são sempre diferentes, únicas. E frequentemente inacabadas.
Felipe Scovino
Acho que a Fernanda torna diferente o mesmo. Esse branco aqui não é igual àquele de lá, e isso não é só porque a tonalidade é diferente, mas porque a forma é distinta, o lugar é outro. É de uma economia muito pequena. Você trabalha praticamente com nada.
Fernanda Gomes
Não, é com muita coisa! Queria que fosse muito menos. (risos)
Fernando Gerheim
Tem uma coisa interessante também: ao mesmo tempo são coisas muito contingentes e há um rigor, uma exatidão, uma precisão. É um trabalho em que você pode ver transformações, mas que por outro lado parece sempre o mesmo.
Luiza Mello
Mas eu acho que o trabalho da Fernanda mudou muito desde que eu passei a acompanhar. Vejo isso claramente.
Fernanda Gomes
Também vejo.
Fernando Gerheim
Mas você continua fazendo o trabalho com papéis de cigarros, por exemplo. São variações infinitas em cima de uma gama estreita. De repente você introduz as mobílias, agora a luz artificial. Antes tinha mais uso de elementos do cotidiano, sabonete, fio dental, palavras que são descascadas. Acho que de repente ficou uma coisa mais muda, silenciosa. E mais arquitetônica, sem dúvida. Talvez mais seca, não sei. A tal ponto de chegar a ter trabalhos que são a luz, sem o pigmento branco, a luz fazendo o branco direto na parede.
Fernanda Gomes
Sinto que vou abrindo vários caminhos, e sem precisar fechar nenhum. Deixo disponível, tudo está ali. Faço muitas coisas ao mesmo tempo, uma continuidade dispersa, concentrada neste espaço atulhado de coisas. Vivo uma continuidade de tempos em uma espécie de memória física das coisas. Encontro como novo algo muito antigo, esquecido, olho com espanto: o que é isso? É como se tivesse sido feito por outra pessoa, uma dessas que já fui e esqueci. É um processo de autoconstrução também. Descartar e guardar, distinguir o que é significativo. Guardo muitas coisas, olho para elas durante anos. A distância no tempo acentua a distância crítica também.
Luiza Mello
Lembro que quando conheci a Fernanda, em 2001, na exposição do Agora, só quiseram comprar uma peça, mas ela não quis vender. Tem determinados trabalhos que ela não vende porque são geradores de outros trabalhos. Até porque tem uma eleição daquilo com o que você quer conviver e daquilo de que você se desprende.
Fernanda Gomes
Tento soltar o máximo que posso. Algumas vezes faço obras que penso serem as primeiras de uma série, já imaginando muitos prosseguimentos, mas não continuo. Aí prefiro guardar esta primeira para desenvolver melhor. Mas outras vezes o fato mesmo de não ter mais a obra traz uma urgência de continuar, para poder pensar olhando. Ou aquela determinada obra é indispensável em uma exposição, e deixo ir, o que é bom também, porque já tenho muita coisa.
Luiza Mello
O fato de você pensar em séries é interessante, dá para ver no trabalho, acho que se relacionam com a repetição.
Fernanda Gomes
Algumas são séries inexistentes, ou que existem só na imaginação! E algumas repetições entendo como equivalentes, partes de um todo maior que podem se dispersar porque concentram um gesto contínuo, em um determinado período de tempo. Uma semana ou um ano, é uma questão de tempo, quantitativo, acumulativo. O ciclo marcante é o dia. Manhã, tarde, noite, madru-gada. Um dia depois do outro. A repetição traz nuances, diferenças sutis e radicais ao mesmo tempo. Traz a percepção simples de que basta um movimento para que tudo se transforme.
Luiza Mello
Acho que, além da repetição, existe um sistema, um procedimento.
Fernanda Gomes
Gosto de deixar as coisas acontecerem e seguir fazendo sem tentar regular muito. Muitas vezes penso em fazer uma coisa e acabo fazendo outra. Tem muitas coisas que imagino e quero fazer, mas vou adiando e, mesmo querendo ver aquilo concretizado, demoro a fazer. E frequentemente acabo fazendo coisas que não imaginei, porque elas vão acontecendo.
Luiza Mello
Como é seu processo de criação?
Fernanda Gomes
Difícil resumir, estou sempre em certo estado de atenção, especialmente quando estou distraída, o que é frequente. As coisas me saltam aos olhos, na rua, em casa, em qualquer lugar. Assim o pensamento vai sendo ativado por vários estímulos. Gosto da ideia de uma dispersão positiva, contrária à obsessão por concentração que nossa cultura valoriza. Coisas aparentemente sem sentido criam fagulhas de possibilidades totalmente insuspeitas, que vou desenvolvendo sem saber onde vai dar. Mas também há o procedimento oposto, de coisas que aparecem na imaginação, sem estímulo externo, de olhos fechados, na cama. Tenho sempre vários cadernos de anotações, um sempre na bolsa, outros maiores em casa, alguns específicos para uma exposição. Estou sempre em movimento, fazendo coisas, desde criança. Gosto também de fazer as coisas aos poucos, pequenas ações que vão se somando e criando estruturas mais orgânicas, resultado de processos longos e muito variados, às vezes contínuos, às vezes com interrupções. E parte consistente do trabalho é olhar as coisas, durante muito tempo, em situações e perspectivas diferentes, tanto físicas quanto mentais. Também por isso gosto de trabalhar em casa, para viver olhando as coisas que estou fazendo. Além de fazer, é fundamental olhar muito, para ver e pensar simultaneamente, e desenvolver o máximo de rigor e autoconfiança crítica. Saber o que de fato me interessa e o que é apenas parte de um processo para chegar a algo significativo.
Luiza Mello
Os próprios trabalhos geram outros trabalhos.
Fernanda Gomes
Exatamente. Gosto de estar com muitos trabalhos em volta, é uma espécie de pensamento materializado. Posso ver de fora, de fato. Fico imaginando várias possibilidades, algumas vou fazendo, outras anotando, outras esquecendo.
Julia Pombo
Em algum momento você se viu escolhendo uma concentração maior em um meio específico, algum processo criativo em particular, ou interesses específicos que se cruzavam?
Fernanda Gomes
Escolhi assumir minha dispersão natural, tento não domesticar. O mais importante é desenvolver um olhar e um pensamento crítico, estar aberto para ver de fato o que vai acontecendo, com tempo, com calma. Vou fazendo o que me dá gana de fazer, sem planejar muito. Algumas vezes faço mesmo coisas que me parecem despropositadas, mas algo me faz continuar. Fiz coisas importantes assim, que no momento me pareceram até ridículas ou desagradáveis.
Fernando Gerheim
Tem também a questão das coisas encontradas. Muitas coisas no seu trabalho já são usadas, e têm as marcas do uso. Elas foram encontradas por um olhar seletivo, num misto de contingência e rigor.
Fernanda Gomes
É o inesperado acrescentado à imaginação. São possibilidades além da minha imaginação, coisas que eu jamais pensaria ou poderia fazer. Sempre me agradou a ideia de utilizar o que tenho a meu alcance imediato. E resgatar o que foi descartado funciona em vários níveis. Atua também contra o excesso, o desperdício, que me incomoda demais. É uma maneira de não acrescentar mais coisas no mundo. Especialmente neste momento, em que tudo parece caminhar para um desastre inevitável, em que o consumo desenfreado é estimulado como política de Estado. Prefiro buscar formas de vida mais consequentes, valorizar cada coisa pelo que representa de trabalho, de recursos empregados. É economia como princípio e prática. Contrariar o atual sistema de valores. Pensar a ideia de valor em várias frequências.
Julia Pombo
Isso é uma subversão, da mesma forma que seguir sua gana de fazer, sem se preocupar com categorizações.
Fernando Gerheim
Me parece que o trabalho sempre nega qualquer tipo de imposição. Inclusive, se há algo que parece que vai tornar possível classificá-lo, como, por exemplo, o uso de materiais pobres, você usa o ouro. O próprio trabalho dá os desvios e sai, como se ele tivesse sempre que surgir, que vir antes, talvez antes das palavras.
Fernanda Gomes
Vivemos sequestrados pela linguagem verbal. Há uma sensação de achatamento, como se tudo tivesse que se submeter a esquemas predeterminados. A linguagem visual é um alívio! Traz outras perspectivas, cria outras estruturas de pensamento. Sinto que construímos a vida no pensamento. Faço estas coisas para pensar melhor. O cerne é o pensamento poético, unido à emoção, mais livre.
CRONOLOGIA
Organizada por Fernanda Gomes, Luiza Mello e Julia Pombo
1960
Nasce em Copacabana, no Rio de Janeiro. Desenha desde muito cedo, intensificando progressivamente interesses e práticas em arte e artesanatos variados, durante a infância e a adolescência.
1977
Realiza algumas tentativas de estudos de arte. Desiste depois de três semanas no curso básico da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
1978
Ingressa na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ), que conclui em 1981. Trabalha alguns meses como fotógrafa na Sala Corpo e Som do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
1981
Estágio no Instituto de Desenho Industrial do Museu de Arte Moderna. Visita a Bienal Internacional de São Paulo.
1982-83
Contratada como responsável pela programação visual do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, incluindo projetos de sinalização de exposições, impressos e coordenação da gráfica.
1983-84
Recebe bolsa do governo italiano para seis meses de estágio na área de design em Milão. Visita museus e exposições. Viaja por mais três meses para Alemanha, Amsterdã, Paris, e Veneza, durante a Bienal. Após o retorno ao Rio de Janeiro, continua trabalhando como programadora visual autônoma em diversos projetos de identidade visual, cartazes, capas de livros, discos, entre outros.
1985
Faz os primeiros trabalhos com linguagem própria: folhas de papel impresso pintadas de branco, com palavras coladas, recortadas de jornal.
1988
Realiza a primeira exposição, na Galeria Macunaíma, Funarte. Mostra trabalhos diversos de pequenas dimensões, predominantemente brancos, em montagem bastante esparsa. Na parede do fundo, uma linha de papéis de cigarros colados movia-se quando o visitante se aproximava. Participa das coletivas Papel no Espaço, Galeria Aktuel, Rio de Janeiro, e da exposição de apresentação do Projeto Macunaíma, Funarte, Rio de Janeiro.
1989/90
Começa a trabalhar com a galerista Luisa Strina, com quem expõe na feira de Basel.
Participa das mostras coletivas A Ordem Desfeita, na Galeria 110 Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro; Pequeno Infinito e o Grande Circunscrito, Galeria Arco, São Paulo; Rio Hoje, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; e 11º Salão Nacional de Artes Plásticas, Funarte, Rio de Janeiro.
1990
Realiza exposições individuais na Galeria 110 Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, e no Centro Cultural São Paulo. Participa das coletivas Projeto Arqueos, Fundição Progresso, no Rio de Janeiro e Panorama da Arte Atual Brasileira, Museu de Arte Moderna, em São Paulo.
1991/92
Participa da coletiva 7 x Ar, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Passa temporada de um ano na Europa: Colônia, Berlim, Paris e interior da França, vivendo intenso processo de trabalho e visitas a museus e galerias. Participa do Projekt Little Akademie, em Düsseldorf, Alemanha, e de exposições na Galerie 1900/2000, em Paris, e Galerie Wanda Reiff, em Amsterdã.
1993
Realiza exposições na Galeria do Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU) e na Galeria do Espaço Cultural Sérgio Porto, ambas no Rio de Janeiro. Duas mostras quase simultâneas e bem diferentes: uma com trabalhos desenvolvidos no ano anterior, e a outra como um prolongamento da ação no ateliê. Primeiro resultado positivo da tentativa, fracassada anteriormente, de trazer uma condição mais imediata e instável para o espaço de exposição.
Participa de coletivas no Museu de Arte de Brasília, no Parque Lage, e da itinerante Segni d’Arte, no Querini Stampalia, em Veneza, na Biblioteca Braidense, em Milão, na Biblioteca Nazionale, em Firenze, e no Palazzo Pamphili, em Roma, Itália.
1994
Primeira exposição na Galeria Luisa Strina. Montagem unificada de obras autônomas, com características diversas, tanto de materiais quanto de processos e pensamento. Na parede frontal da galeria, fios de seda movem-se constantemente.
Participa da 22ª Bienal de São Paulo. Traz consigo duas caixas com obras e materiais e permanece trabalhando no local, como continuidade da prática diária, por quase um mês. Algumas obras foram feitas diretamente na parede de madeira e recortadas na desmontagem.
Participa das coletivas Diário, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e na Galerie Hohenthal und Bergen, Colônia, Alemanha; A Espessura do Signo, Karmeliterkloster, Frankfurt, Alemanha; Livro-Objeto, A Fronteira dos Vazios, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro; e Potências do Orgânico, Museu do Açude, Rio de Janeiro.
1995
Passa cinco meses viajando e trabalhando, principalmente em Nova York, participando das exposições Selections Brazil, no The Drawing Center; Chocolate!, no The Swiss Institute; e The Education of Five Senses, na White Columns. Nesta temporada, viaja também para Berlim, participando da mostra Havanna / São Paulo, no Haus der Kulturen der Welt. O trabalho é contínuo, incorporando os deslocamentos em uma espécie de ateliê portátil, e utilizando os espaços expositivos como ateliê.
Participa em novembro da 4th International Istanbul Biennial. A pequena sala saturada de ocorrências aparenta estar vazia. As obras, no limite da invisibilidade, foram feitas diretamente na superfície da parede e tudo se perdeu. Fez pela primeira vez a iluminação do espaço, prática que passa a manter e desenvolve progressivamente até os dias atuais.
1996
Participa da exposição coletiva Transparências, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Realiza um trabalho com objetos no chão do segundo andar do museu. Este momento é como um embrião da individual que seria realizada em 2012.
Participa também das coletivas Small Scale, na Joseph Helman Gallery, Nova York; America Latina 96, no Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires; e Escultura, no Paço Imperial, Rio de Janeiro.
1997
A exposição individual na Chisenhale Gallery, em Londres, é uma experiência importante, com processo de montagem de longa duração, em um amplo espaço.
Realiza diversas viagens, levando materiais e obras para montar in loco várias exposições, como a mostra na Galleri Ping Pong, em Malmö, e as coletivas: Suspended Instants, Art in General, Nova York; Around Us, Inside Us, Borås Konstmuseum, Boras, Suécia; Así Está la Cosa, Centro Cultural Arte Contemporáneo, Cidade do México; e Sueños Concretos, Biblioteca Luis Angel Arango, Bogotá, Colômbia.
Participou também da mostra Material Immaterial, na Art Gallery of New South Wales, em Sydney, Austrália. No Brasil, esteve nas exposições Arte Cidade, Indústrias Matarazzo, São Paulo; e Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
1998
Em exposição na Galeria Luisa Strina, exibe obras de materialidade mínima, em metal, fios e outros elementos, e uma escultura sonora composta de uma pedra que toca um cilindro de ferro, presos por fios.
Estadia de um mês para a 11ª Bienal de Sydney. Intervenções na arquitetura, obras diretamente relacionadas ao espaço, incluindo, entre várias outras, dois cubos ligados por um elástico, bolas de tecido contendo ervas aromáticas e cilindro de vidro suspenso no espaço, para que se escute, obra sonora silenciosa.
Viaja ao Japão para realizar uma sala na exposição Is this Art?, no Toyota Municipal Museum of Art, com itinerância no Kawamura Memorial Museum of Art e Art Tower Mito. Projeta uma sala com teto de tecido, com a luz passando através, criando uma iluminação perfeitamente difusa, utilizada posteriormente, entre outras, na Bienal de São Paulo de 2012.
Além disso, sua obra integra mostras como Loose Threads, na Serpentine Gallery, em Londres; Anos 90 Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro; Der brasilianisch Blick, Haus der Kulturen der Welt, Ludwig Forum, Berlim; Aachen, Kunstmuseum Heidenheim, Alemanha; e Teoria dos Valores, no Museu de Arte Moderna de São Paulo e na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro.
1999
Primeira individual na Baumgartner Gallery, Nova York, que publicou um pequeno catálogo para a exposição. Dois pratos unidos por fios e suspensos do teto, caixinhas com diversos conteúdos, papéis colados, bolas de pingue-pongue transformadas, bilhas, ímãs, obras cinéticas e sonoras, algumas a serem ativadas pelo público.
Realiza obra no Kunstmuseum Bonn, na mostra Zeitwenden, em uma ampla sala com iluminação zenital. Cobre todo o solo com diversos elementos sobrepostos, lençóis, papéis, colchões, livros, cobertas, travesseiros, ervas aromáticas. As pessoas, sem sapatos, transitavam à vontade ou deitavam-se.
Participa de Cotidiano/Arte: Objeto Anos 60/90, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Itaú Cultural, São Paulo.
2000
No Fridericianum Museum, Kassel, na exposição Das Lied von der Erde, o núcleo do trabalho é uma mesa, na qual um papel se move com o vento através das janelas abertas, preso por um fio que atravessa a sala em diagonal. Vários outros elementos reverberam este movimento.
Para a itinerância da exposição Zeitwenden, no Museum Moderner Kunst em Viena, foi construída uma sala de estrutura de madeira, com tecido esticado, atravessado pela luz. Todo um conjunto de novas peças foi realizado utilizando a situação.
A exposição realizada na ocasião do IV Premio Scipione, na Galleria Galeotti, Macerata, Itália, também foi feita no calor da vivência direta, com a chegada de mãos vazias, ou quase. Auf der Suche nach Identität, apresentada na Ursula Blickle Stiftung, Kraichtal, Alemanha, também teve projeto desenvolvido no local.
2001
A exposição no Espaço Agora/Capacete, no centro Rio de Janeiro, foi marcada pela rara proximidade do ateliê. A facilidade em colocar no carro quaisquer obras e coisas disponíveis na casa-ateliê se transformou em dificuldade em lidar com uma situação de excessos positivos, e afetivos, que foi longa, lenta e intensamente depurada.
Na segunda individual da Baumgartner Gallery, em Nova York, a galeria é literalmente utilizada como estúdio, durante todo o mês de agosto e início de setembro. Um andaime foi montado até o teto, logo na entrada, sob a claraboia. Contou ainda com facas cinético-sonoras suspensas do teto, madeiras em construções de equilíbrio, lentes, coisas em várias frequências, culminando em uma lâmina mínima encravada na parede.
Project Room, com Luisa Strina, na feira Art Miami Basel. Participa da mostra Locus Focus, Sonsbeek 9, Arnhem, Holanda. No ano em que as moedas nacionais europeias se unificaram no Euro, o valor do orçamento do projeto foi transformado em moedas específicas dos onze países, que, unidas por fios, foram penduradas nas árvores, como isca, para as pessoas pegarem. Incluíram-se também as notas holandesas com um girassol.
No Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, em Da Adversidade Vivemos, uma sala teve o chão coberto de pallets de madeira, como estrutura para vários elementos – alguns escondidos –, um cubo de pallets empilhados, tinta fresca, pincel e grandes sacos de papel com ervas aromáticas.
Auf der Suche nach Identität, na Galleria Comunale d’Arte Moderna, Bolonha, também contou com um projeto realizado in loco. Participa também das mostras Home, na The Douglas Hyde Gallery, Dublin, Irlanda; Rupertinum Museum, em Salzburg, Áustria; Côte à Côte, no CAPC Musée d’Art Contemporain de Bordeaux, França; Trajetória da Luz na Arte Brasileira, no Itaú Cultural, São Paulo; e Ideia Coletiva, na Galeria Camargo Vilaça, São Paulo.
2002
Exposição na Galeria Luisa Strina, com texto da artista: “Esta exposição traz à tona a palavra pintura, sem ser exatamente uma exposição de pinturas. É materialização de pensamentos sobre pintura em pleno processo, deliberadamente instável e disperso. Calcado no essencial: luz, espaço, tempo. Branco, também como lacuna, expansão da parede, todas as cores, nenhuma cor.”
A exposição na Galeria Artur Fidalgo, no Rio de Janeiro, brinca com o contexto das lojas de antiguidades vizinhas à galeria. Sem letreiro na fachada, o espaço é cheio de mesas, que sustentam obras autônomas. Um longo fio sai do teto até uma lâmpada no chão. Desenhos são escondidos em gavetas.
Realiza individual na Adam Art Gallery, Wellington, Nova Zelândia. Participa das mostras coletivas: Vivências, The New Art Gallery Walsall e no Sainsbury Centre for Visual Arts, Reino Unido; Shift, Center for Curatorial Studies, Bard College, Annandale-on-Hudson, Nova York; Love’s House, Agora, Rio de Janeiro, com trabalho realizado em colaboração com Fernando Gerheim; 20 Anos/20 Artistas, Centro Cultural São Paulo; Recorrências, Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Morro/Labirinto, Paço Imperial; Paralela, São Paulo; e Desenhistas e Coloristas, Galeria Luisa Strina, São Paulo; Apresenta Interferências Urbanas, em Santa Teresa, Rio de Janeiro, na qual faz trabalho com moedas de 1 real escondidas na rua.
2003
Participa da 50ª Bienal de Veneza, Itália, no Arsenale. Define um espaço específico no prédio, interior, porta, exterior. Projeção de luz solar com espelhos em copos com água. Participa também da Fuori Uso 03, Pescara, Itália; Infantil, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro; Palavras +, Espaço Sesc, Rio de Janeiro.
2004
Realiza individual no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte, e no Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo; e exibe em uma sala na mostra Non Toccare la Donna Bianca, Fondazione Sandretto Re Rebaudengo, em Torino, Itália.
Participa ainda das coletivas Encontros com o Modernismo, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Fragmentos e Souvenirs Paulistanos, vol. I, Galeria Luisa Strina, São Paulo; Visões Espanholas, Poéticas Brasileiras, Conjunto Cultural da Caixa, Brasília; Paralela 2004, São Paulo; e 30 Artistas, Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro.
2005
Expõe no Museo Patio Herreriano, Valladolid, Espanha. Na capela de dimensões monumentais, introduz elementos simples em escala humana. Aproveita a luz solar, com reflexões.
Realiza individual na Galeria Luisa Strina, São Paulo. “Na escala da nossa humilde humanidade de todos os dias, podemos recuperar com as coisas afeto e memória, encontrar perspectivas mais vivas de realidades. Jogo de encaixe aberto a toda conexão que se possa imaginar, a participação de quem se interessar é simples e imediata. Favor não tocar. Silêncio é o acompanhamento ideal”, escreve a artista.
Nesse ano, também integra as coletivas: Desenhos: A-Z, Colecção Madeira Corporate Services, Porta 33, Funchal, Ilha da Madeira; L’Autre Amérique, Art Contemporain du Bresil, Passage de Retz, Paris; Educação, Olha!, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro; Redemergências, Rede Nacional de Artes Visuais, Funarte, Rio de Janeiro; e Diálogos, Museu do Piauí, Teresina.
2006
Realiza exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, Portugal. O processo de montagem é prolongado. Define a utilização de duas salas e do jardim, utilizando a arquitetura original do museu, sem alterações.
Inclui uma publicação com fotos de Pat Kilgore e da artista e textos do curador e diretor do museu, João Fernandes, de Paulo Venancio Filho e Fernando Gerheim.
Nesse ano, faz também uma individual na Baumgartner Gallery, Nova York. E participa das mostras coletivas: Shift, Galerie Grita Insam, Wien, Áustria; Contrabando, Galeria Luisa Strina, São Paulo; Paralela 2006, São Paulo; Arquivo Geral, Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro; Manobras Radicais, Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo; Juan Brossa, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; e Sinais na Pista, Museu Imperial, Petrópolis.
2007
Faz o cenário da peça Molly Bloom. Participa da coletiva 80/90 Modernos, Pós-Modernos Etc., no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo.
2008
Realiza três mostras individuais, na Galerie Grita Insam, em Viena, Áustria, na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, e no Matadero Madrid, na Espanha.
Na Galeria Luisa Strina, a exposição usa todo o espaço, incluindo o terraço. Na primeira sala, exibe quatro pinturas; a segunda também trata de questões de pintura, em elementos desarticulados. No segundo andar, pinturas esculturais, trabalhos precursores daqueles que serão expostos pela primeira vez na mesma galeria em 2011.
No terraço, peças reverberando a paisagem em torno, sol e chuva. Na exposição no Matadero, em Madri, o trabalho iniciou-se pelo uso da luz. O espaço degradado, com paredes negras de fuligem, foi iluminado, revelando diversas ocorrências. Inúmeros elementos foram adicionados a estas situações, alguns diminutos, como dois cubos de açúcar. E carvão, giz, fios traçando desenhos, linhas de pintura branca até grandes placas de acrílico que refletiam o espaço. Elabora também uma pequena publicação, fazendo fotografia, texto e design. Este envolvimento com as peças gráficas acontece sempre que possível.
Em Faro, Portugal, na fábrica da Cerveja, na exposição Articulações, o chão da grande sala recebeu terra e areia em cores variadas, e elementos simples que se fundiam com a arquitetura do prédio abandonado. Seu trabalho integrou também as coletivas: No Information Available, Gladstone Gallery, Bruxelas, Bélgica; Panorama da Arte Brasileira 2003, (Desarrumado) 19 Desarranjos, Museo del Arte Del Banco de la Republica de Bogotá, Colômbia, Museo de Arte Contemporáneo de Vigo, Espanha (2005), MAMAM, Recife (2004), MAM, São Paulo e Paço Imperial, Rio de Janeiro (2003); Travessias Cariocas, Centro Cultural da Caixa, Rio de Janeiro; N Múltiplos, Arte 21, Rio de Janeiro; e Intimidades, Marilia Razuk Galeria de Arte, São Paulo.
2009
Na Galeria Graça Brandão, em Lisboa, pintura e escultura foram tratadas em seus elementos mais primários: tela e base. Na sala principal, um conjunto de telas e elementos de pintura, obras autônomas configurando um sistema totalmente integrado no espaço. No piso inferior, que também se via de cima, havia um conjunto de bases.
Na 401contemporary, em Berlim, os mesmos princípios criaram uma situação diferente, além de uma obra feita para a parede de vidro na entrada da galeria, criando ritmos translúcidos e bloqueando a visão. Para a exposição Slow Movement Oder: Das Halbe und das Ganze, faz uma sala com obras feitas apenas utilizando objetos que se encontravam no depósito da Kunsthalle Bern. Emprega o mínimo de esforço material, sem qualquer custo, compensado por um investimento mental que inclui todos os procedimentos de realização da obra. Desenvolve durante um ano uma grande escultura no parque de Serralves, em quatro etapas correspondentes às estações. Foi escolhido um pequeno bosque fora dos jardins formais, onde fios trançados entre as árvores e outros elementos criam um ambiente em que se pode estar longamente, e também deitar sobre a trama, contemplando a vegetação.
Também participou das mostras Linie, 401contemporary, Berlim, Alemanha; Italics: Italian Art between Tradition and Revolution, Museum of Contemporary Art, Chicago, EUA; Collecting History: Highlighting Recent Acquisitions, Museum of Contemporary Art, Los Angeles, EUA; Elements of Photography, Museum of Contemporary Art, Los Angeles, EUA; Private Universes, Dallas Museum of Art, Dallas, EUA. Além disso, publica um texto manuscrito na revista belga Gagarin – The Artists in their Own Words, posteriormente exposta no SMAK (Stedelijk Museum voor Actuele Kunst), em Gent, Bélgica.
2010
Realiza individual na Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, na qual explora os elementos essenciais da pintura. Participa das coletivas: In Which the Wind is also a Protagonist, La Générale, Sèvres, France; El Gabinete Blanco, Fundación Colección Jumex, Cidade do México; Still Vast Reserves, Gertrude Contemporary Art Spaces, Melbourne, Austrália; De Frente al Sol, Galerie Martin Janda, Viena, Áustria; Paralela 2010, São Paulo; Sempre à Vista (Miragem), Mendes Wood, São Paulo; Zeichnung Wien, Galerie Grita Insam, Viena, Áustria.
2011
Para exposição da Galeria Luisa Strina, a artista escreve: “Pintura, escultura, arquitetura. Tradição de rupturas. O pensamento é plástico. Planos de reflexão, com múltiplos sentidos. Tantas questões no cerne desta investigação, luz!, cor: branco. Linha, plano, volume, espaço. Simples. Ativar os sentidos. Descolamentos, deslocamentos, também na imaginação. Pintura e escultura articulam um espaço total, e autonomia. Perspectivas reveladas no movimento do observador. Incluir a paisagem do mundo. Jogar livremente com as coisas, porque afinal são coisas. Deixar de lado o verbo, com rigor e emoção.”
A exposição na OPA (Oficina para Proyectos de Arte) é realizada em um espaço no 23º andar de um prédio comercial no centro de Guadalajara, com vista de 360 graus e um terraço. Todos os trabalhos são produzidos no espaço expositivo, com materiais adquiridos e encontrados na cidade.
Realiza exposição no Centro Cultural São Paulo, com algumas obras antigas, articuladas com intensa intervenção arquitetônica, iluminação desigual, projeções e obras feitas com luz, e várias obras feitas no local.
No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a mostra ocupa todo o espaço de 1.800 m2 da sala principal do segundo andar. Praticamente todo o conteúdo da casa-ateliê foi transferido para o museu. Um espaço contíguo à sala expositiva, vedado ao público, é usado como ateliê durante a montagem e todo o período de exposição. Participou da mostra From page to space no Weserburg Museum, em Bremen, Alemanha e no Museu Serralves, em Porto, Portugal.
2012
Na Galeria Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, utiliza mais uma vez a galeria como prolongamento do ateliê, acrescentando a varanda como oficina, no período da montagem e durante a exposição. Procura expandir as atividades com uma apresentação sonora com Daniel Perlin e Marcos Chaves, e outro evento com Jarbas Lopes, na praia.
Na individual no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, em Lisboa, o jardim se incluía visualmente no espaço envidraçado, contando ainda com quatro salas com frequências diversas, esculturas em madeira, telas, objetos variados e livros. Para a exposição na Galerie Emmanuel Hervé, em Paris, feita imediatamente depois, tudo também é produzido no local. A Biennale d’Art Contemporain, Les Ateliers de Rennes, completa a sequência, em tom análogo.
A participação na 30ª Bienal de São Paulo é um momento especial. Inicia-se pelo projeto do espaço, utilizando a situação de uma arquitetura provisória inserida em um prédio histórico, com diversas situações de luz. Há a luz perfeitamente difusa de uma sala com neutralidade máxima de quatro paredes e teto de tecido. Há o espaço da arquitetura da exposição, painéis e luz razoavelmente neutra, e espaços marginais, com luz natural e luz solar direta. E uma obra de luz sobre tela, em que a projeção quadrada idêntica à tela é deslocada, criando uma espécie de díptico. São obras em variadas frequências e materiais, algumas aproveitadas do descarte da construção da exposição, todas realizadas no local.
Além disso, participou de The Charm of Quasi-Parallel Lines, Rhona Hoffman Gallery, Chicago, EUA; Champ d’Expériences, Centre International d’Art et du Paysage Île de Vassivière, França; From Page to Space, no Leopold-Hoesch-Museum, em Düren, Alemanha, na Galerija Murska Sobota, Eslovênia; E os Amigos Sinceros Também, Instituto Brasil-Estados Unidos, Rio de Janeiro; e Performances da Abstração, Luciana Brito Galeria, São Paulo.
2013
Para a primeira exposição na Alison Jacques Gallery, em Londres, leva obras prontas, materiais e obras em processo para três semanas de intenso trabalho na galeria. Individual no Centre International de l’Art et du Paysage, em Vassivière, França, transformando a arquitetura do museu com placas de madeira, vedando passagens e vistas, ligando outros espaços, transformando o sistema de iluminação em esculturas provisórias.
Participa das mostras: 13ª Bienal de Istambul, Turquia; Imagine Brazil, no Astrup Fearnley Museum, em Oslo, Noruega; e no Musée d’Art Contemporain de Lyon, França; Concrete Remains: Postwar and Contemporary Art from Brazil, Cristine Tierney Gallery, Nova York, EUA; e The Earth Turns and All Things Slip Away, Hunt Kastner, Praga, República Tcheca.
2014
Na individual da Galeria Luisa Strina, São Paulo, o espaço é dividido em quatro salas, tratando especialmente de luz, desde a luz geral do espaço até peças específicas usando luz. Desenvolve outros projetos de luz sobre tela, iniciados na Bienal de São Paulo de 2012. Duas obras da coleção do Centre Pompidou são expostas em Une Histoire, Art, Architecture et Design, des Années 80 à Aujourd’hui, até 2016. Participa também da exposição Crossroads: Contemporary Art in Brazil, Wexner Center for the Arts, Columbus, EUA.
CRÉDITOS
TÍTULO DO PROJETO
ARTE BRA Fernanda Gomes
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Luiza Mello
Marisa S. Mello
DESIGN
Dínamo | Alexsandro Souza
ASSISTENTE EDITORIAL
Julia Pombo
PROJETO E PRODUÇÃO
Automatica Edições
TRATAMENTO DE IMAGEM
Ipsis
REVISÃO
Duda Costa
VERSÃO INGLÊS
Rebecca Atkinson
TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA
Julia Pombo
GESTÃO
Marisa S. Mello
Arlindo Hartz